Black Mirror: uma crítica que não serve pra nada

Escrito en CULTURA el
Na crítica ao avanço desenfreado das questões científico-tecnológicas feita pelo seriado Black Mirror não há uma proposta de mudança, mas sim de "melhora" do sistema. Saiba no artigo do historiador Raphael Silva Fagundes Por Raphael Silva Fagundes* O sociólogo Ulrich Beck, ao lado de Anthony Giddens, é um dos baluartes atuais da luta contra a ideia de que vivemos em uma sociedade de classes. Ele acredita que vivemos em uma segunda modernidade, uma modernidade reflexiva que não tem mais como crítica a tradição, mas ela mesma. Ajude a Fórum a fazer a cobertura do julgamento do Lula. Clique aqui e saiba mais. A crítica à industrialização e os riscos que ela provoca, não enxerga a questão da classe social. São “ameaças globais supranacionais e independentes de classe”1. Segundo Beck, “os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucram com eles. Eles contêm um efeito bumerangue, que implode o esquema de classes”.2 O seriado da Netflix, Black Mirror, adota essa visão crítica do mundo. Focaliza principalmente o avanço desenfreado das questões científico-tecnológicas. O diretor e os roteiristas da série parecem ter seguido a sugestão de Beck: “É preciso, por assim dizer, através de alterações em sua autoimagem e em sua configuração política, introduzir freios e contrapesos no ‘desgoverno’ do avanço científico-tecnológico, atualmente em desabalada e explosiva carreira”.3 O pensamento reacionário Chega ser ridículo pensar em uma ação política estrutural sem pensar nas lutas de classes. Lenin criticava o partido dos “revolucionários pequeno burgueses” justamente porque “repudiava o marxismo, obstinava-se em não querer compreender (talvez fosse mais justo dizer não podia compreender) a necessidade de levar em conta, com estrita objetividade, as forças de classe e suas relações mutuas antes de empreender qualquer ação política”.4 Esse é o tipo de esquerdismo que o marxismo deve repudiar.No entanto, é esse esquerdismo que ganha cada vez mais espaço. Um político forçado a transar com um porco, mas que no final continua sendo um político propenso a voltar ao poder. Um homem que se revolta contra um implante que grava a memória, porque afetou seu casamento. A quarta temporada, por seu turno, abre com um episódio onde uma mulher se revolta contra um ditador lunático do ciberespaço, no entanto, tudo passa a ser aceitável quando a ideia de liberdade é respeitada. Em outro episódio, vemos um casal revoltar-se inúmeras vezes contra um aplicativo que promove encontros até chegar ao par perfeito, mas no fim continuam usando o aplicativo. Nada muda no fim dos episódios, pelo menos não de forma substancial, estrutural. Não há uma proposta de mudança, o que se quer é melhorar o sistema, corrigir seus defeitos. Deve ser por isso que tive a sensação de uma circularidade inútil. Todos os personagens circulam em volta do mesmo eixo. Marx criticava o socialismo burguês ou conservador, aquele onde “uma parcela da burguesia deseja corrigir as mazelas sociais para assegurar a continuidade da sociedade burguesa”. Hoje o que vemos, com a ideia embusteira de uma sociedade de risco que despreza a luta de classes, é uma tentativa de remediar os males do capitalismo no sentido do risco e ameaças que a tecnologia pode acarretar em nossas vidas. No entanto, como destaca István Mészáros, “o capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível”.5 Não há como “melhorar” o capitalismo, porque ele é exatamente do jeito que o vemos: destruidor. O lucro não é humanitário, é matemático. Não existe um capitalismo mais humano. A tecnologia avança de acordo com as exigências lucrativas, jamais devido a necessidades humanas. E nesse ponto, os cientistas do mais alto gabarito estão de acordo.6 “É por isso que é necessário romper com a lógica do capital”. O capitalismo é reacionário, e quem pretende “melhorá-lo” é mais reacionário ainda. Em nome do lucro, impede o desenvolvimento das pessoas. Tudo lembra o conto de Robert Silverberg, “O circuito de Macauley”. O personagem que narra a história recebe o circuito do cientista Macauley, um sintetizador capaz de controlar “os aspectos interpretativos da música”, reproduzindo sinfonias sofisticadas como a de Beethoven, Bach, Chopin etc.. Sinfonias até mesmo incapazes de ser criadas pelo ser humano. Mas o narrador prefere não revelar ao mundo o tal circuito porque se comoveu com Kolfmann, um músico pianista de oitenta anos que ficou desempregado devido ao avanço tecnológico dos diversos circuitos musicais. Ele explica que fez tudo por pura bondade e que não foi “movido por nenhuma intenção malévola ou reacionária”. O conto tem como moral o medo de se criar uma máquina capaz de produzir arte, tornando o ser humano obsoleto, já que a arte é a principal característica, no entender do autor, que diferencia o ser humano das máquinas. No entanto, impedir o progresso da ciência não é ser reacionário? O fato é que o capitalismo conduz a ciência para uma direção que está forçando o reacionarismo. Temos que derrubar o sistema capitalista e dar outro sentido a ciência, libertá-la das garras do capital. Precisamos ver além das pobres críticas apresentadas pelo seriado Black Mirror e ver que a ciência só se preocupará em ser humanista, se dobrar aos interesses da humanidade, quando o capitalismo for sepultado definitivamente. *Raphael Silva Fagundes é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí 1BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011, p.16. 2 Id. p. 27. 3 Id. p. 273. 4 LÊNIN. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. p. 10. Acesso em: www.enlacers.com.br 5MÉSZÁROS, István (org.). A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 27. 6 http://diplomatique.org.br/ciencia-vs-lucro-educacao-para-o-progresso