A clandestina poesia de Facebook, por Tomaz Amorim

“A poesia de Facebook tem algo de pregador de trem: ocupa um espaço inesperado, lotado, e falando em uma linguagem estranha, mas reconhecível, tenta catequizar os cansados usuários, indo e voltando do trabalho”

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“A poesia de Facebook tem algo de pregador de trem: ocupa um espaço inesperado, lotado, e falando em uma linguagem estranha, mas reconhecível, tenta catequizar os cansados usuários, indo e voltando do trabalho” Por Tomaz Amorim A poesia brasileira vive e se renova. Que isso não aconteça sempre nos espaços convencionais, passa às vezes a impressão de que morrem os velhos poetas sem que surjam os novos. A própria crítica, muitas vezes, se recusa ou, desatenta, perde a chance de sair para procurar novas vozes em novos espaços. O que não aparece criticado na coluna especializada de um grande jornal, palestra de universidade ou o que não chega cerimoniosamente pelo correio, com reverência, como presente com dedicatória elogiosa ao crítico pelo aspirante a escritor, acaba ficando fora do radar como se não merecesse, talvez, leitura e reflexão. Quem acompanha a cena literária pelas grandes cidades do Brasil, no entanto, sabe que há uma cena viva de trocas e disputas entre poetas e críticos de tamanhos diversos que vivem em um tipo de mundo paralelo da literatura escolar mais oficial. Esse surgimento do fora, a ser eventualmente incorporado pelo sistema literário institucional dos grandes concursos, festivais, editoras e críticos universitários, não é inédito na literatura brasileira, muito pelo contrário. Em um país com histórico colonial e com amplas cifras de analfabetos, funcionais ou não, ou seja, em um país em que se lê pouca literatura que não seja bíblica, é fatal que o que se produz seja ao mesmo tempo “salvo” e “guardado à distância” do resto da sociedade pelas instituições literárias. O que faz com que sua renovação, de geração em geração, surja frequentemente dos espaços ainda clandestinos. É assim desde o Barroco brasileiro, clandestino em sua relação com a matriz portuguesa, foi assim com os estudantes românticos das “repúblicas” do Largo São Francisco no século XIX, foi assim com a intervenção intelectual não-uspiana do Concretismo e da Tropicália, foi assim com a “Geração mimeógrafo” na década de 1970, é assim com a chamada “Literatura marginal” e tantos outros movimentos em épocas e partes do país, etc. Trata-se de um movimento constante de uma parte relevante da literatura brasileira: surgimento clandestino e posterior institucionalização, com crítica, ampliação ou revisão da própria ideia de literatura (basta pensar nos debates acerca da obra de Carolina Maria de Jesus e da chamada poesia indígena!). Algo desta irrupção clandestina parece acontecer agora, na segunda década do século XXI, em espaços inesperados como as praças das grandes cidades e as redes sociais na internet. O que os saraus e slams significam para a renovação da poesia brasileira falada, os blogs, revistas eletrônicas e linhas do tempo no Facebook representam para a poesia escrita. Revistas literárias, quase todas exclusivamente virtuais, têm usado o Facebook para espalhar poesia de novos autores. A qualidade da poesia, ainda que variada, muitas vezes impressiona, sobretudo na diversidade de vozes. Alguns exemplos importantes são a Escamandro, a Mallarmargens, a Raimundo, a Modo de Usar & Co., entre muitas outras. Mas muitos poetas optam por publicar diretamente em suas linhas do tempo, levantando a questão que o título deste artigo propõe: já existe um gênero chamado “poesia de Facebook”? Talvez se possa pensar nele como gênero em formação, como possibilidade futura. Porque se é verdade que muito do que circula seja mera reprodução, divulgação de uma poesia produzida em e para outro meio, também é verdade que aos poucos os poetas passam a escrever pensando nos leitores e no contexto do Facebook. Isso se deve em muito às comunidades que trocam poesia entre si, ou seja, lêem e criticam. Os agrupamentos políticos que o Facebook ampliou e modificou, como grupos de mulheres, negros, LGBTs, ambientais, etc, também se refletem em grupos interseccionais de mulheres escritoras, negros escritores, LGBTs escritores, etc. Não apenas as pautas, mas tradições e formas específicas (como a influência do RAP e de tradições orais) compõem a poesia destes grupos misturados às outras características do meio. O apoio mútuo dentro destes grupos, das curtidas e comentários ao compartilhamento, também acontece, formando nichos de poetas e leitores, às vezes inclusive com revistas e edições temáticas. Se a questão da existência ou não do gênero talvez não seja interessante agora, a influência que os meios de publicação têm na forma e nos temas desta poesia já rende boas reflexões e hipóteses. E se isso não bastar, a qualidade inegável de certos autores que usam o Facebook e outras redes sociais como meio privilegiado de publicação, já deveria chamar a atenção da crítica. É o caso, por exemplo, de Carla Diacov, uma das poetas mais importantes da poesia brasileira recente, tanto na quantidade de publicações, quanto na qualidade inegável, quanto na diversidade surpreendente (que inclui seus trabalhos de artista plástica, sobretudo em seus desenhos com sangue menstrual). Uma primeira hipótese em relação à influência do meio diz respeito ao contexto de leitura de poesia no Brasil. Na falta de um público amplo estabelecido, seja de livros impressos, seja em revistas e portais dedicados à literatura, os poemas publicados no Facebook acabam se infiltrando clandestinamente no cotidiano das pessoas, se espremendo entre as notícias, a propaganda, as postagens pessoais e o entretenimento, assumindo também de alguma maneira algo da forma destas outras manifestações. A poesia de Facebook tem algo de pregador de trem: ocupa um espaço inesperado, lotado, e falando em uma linguagem estranha, mas reconhecível, tenta catequizar os cansados usuários, indo e voltando do trabalho. Walter Benjamin, em uma resenha ao poeta Erich Kästner, descreve em uma imagem irônica, porém precisa, a relação do texto com o contexto na época da poesia publicada em jornal no começo do século passado: “Os poemas de Kästner estão reunidos hoje em três imponentes volumes. Mas quem pretende investigar as características dessas estrofes deveria de preferência lê-las em seu formato original. Em livros, elas parecem comprimidas e um pouco sufocadas, ao passo que nos jornais deslizam como peixes na água. Se essa água nem sempre é das mais puras e se muitos detritos nela flutuam, tanto melhor para o autor, cujos peixes poéticos podem assim desenvolver-se mais e engordar com maior facilidade”. De maneira semelhante, os poemas do Facebook lidam com as reportagens e memes, com a indignação da esquerda e dos movimentos sociais, com as tristezas e alegrias, compondo também, corrompendo também, quem sabe, com sua sintaxe e ritmos específicos, a misteriosa matemática do algoritmo. Assim, é talvez uma característica (feliz ou infeliz) desta poesia uma atenção jornalística, de cronista, de comentarista, aos acontecimentos do dia. Isso, claro, não garante sua contemporaneidade. O presente está raramente na manchete de jornal. Isso prejudicaria até, quem sabe, o lado intempestivo da poesia? Da poesia como sismógrafo? Da poesia como olhar que resgata o passado enterrado, esquecido? Apenas a leitura sistemática deste novo contexto de produção e dos poemas em si pode responder. Outro aspecto “jornalístico” desta poesia está em sua efemeridade. O que se publica é visto, ou não, e rapidamente desaparece sendo encoberto pela tempestade de escombros que é a linha do tempo no Facebook. Ali, o texto poético perde algo da imortalidade que adquiriu desde que se passou a guardar a poesia em papiros e livros (uma captura de tela, quem sabe, salvará para as gerações futuras um bom poema da geração!). Sobre esta efemeridade nova, muito mais própria da poesia falada do que da escrita, a poetisa Bianca Pataro escreve: “Como as demais postagens, são efêmeras e passam rápido. Somem. Nem os autores acho que voltam aos textos. São suspiros”. Isso coloca também uma questão interessante em relação à forma livro. Os poemas estabelecem mais relações com conteúdos extra-literários do que com outros poemas do mesmo autor ou do mesmo tema. A antologia é singular e diária, não faz mais uma constelação com a produção do autor. A poeta e atriz Isabela Rossi define: “O poema não é para a obra, o poema quer explodir a tela do Facebook”. A forma dos poemas também parece se adaptar aos costumes de leitura da rede social. Os poemas tendem a ser mais curtos, mais reconhecíveis, sem exigir tempo demais do leitor (TL;DR ou, em versão brasileira, “Nem Ly, Nemlerei”!). Também se reconhece nos títulos e primeiros versos a influência das estratégias de marketing, iscas de cliques, que tentam prender a atenção tão disputada dos leitores com termos chamativos, polêmicos ou engraçados. A forma trocadilho, tão querida de escritores como Oswald de Andrade e tão rejeitada em certos círculos literários mais “sérios”, encontra uma vizinhança confortável ao lado dos memes. As estratégias que a publicidade aprendeu com as vanguardas literárias e instrumentalizou durante o século XX são talvez agora reapropriados novamente para a gratuidade relativa da poesia. (Relativa já que cada manifestação, por críptica, desinteressada, hermética que seja, é também propaganda do enunciador). E se o Facebook impõe certos limites à experimentação visual com o verso, pois é limitado o uso de espaçamentos entre as palavras e os versos, há quem escape bem da limitação seja publicando os poemas em imagens, a partir de um documento do Word, por exemplo, produzindo diretamente poesia-visual, como é o caso do poeta André Vallias, ou produzindo poesia exclusivamente a partir de emojis e caracteres especiais. Para aqueles que quiserem acompanhar de perto este movimento em formação (ou já em decadência, quem saberá?), segue uma lista de poetas contemporâneos, da minha limitada lista de conhecidos-poetas que postam poesia com alguma frequência direto no Facebook, para buscar e seguir, com perdão aos esquecidos: André Nogueira, Mari Alter, Thiago Cervan, Cássio Corrêa, Pedro Tostes, Nina Rizzi, Nil Kremer, Lisa Alves, Alexandre Guarnieri, Marcelo Labes, Júlia Vita, Camila Santos, Cândido Rolim, Aline Bei, Alberto Lins Caldas, Líria Porto, Sérgio Villa Matta, Tarso de Melo, Michele Santos, Maia Meirom, Bianca Pataro, Leandro Durazzo, Mariana Basílio, Ana Farrah, Ricardo Domeneck, Nydia Bonetti, Chris Herrmann, Tiago Rendelli, Casé Lontra Marques, Claudinei Vieira, Elizeu Braga, Julia Mendes, Isabela Penov, Teófilo Tostes, Gabriel Sanpêra, Joaquim Bührer, Pedro Venturini, Everton Behenck, Pedro Spigolon, Nydia Bonetti, Otávio Campos, Júlia Hansen, Marceli Becker, Rafael Zacca, Jeff Vasques, Marília Moschkovich, Augusto Meneghin, Natália Luna, Pedro Blanco... Crédito da imagem: Jack Zylkin