Documentários na Quarentena: Feliz dia dos avós com “Ligue Djá” e “Não Toque em Meu Companheiro”

Dirigido por Cristina Constantini e Kareem Tabsch, “Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado”, sobre esse personagem título que hoje é uma sombra pálida do gigante de outrora, um senhorzinho andrógino que poderia ser nosso avô (ou avó), por Filippo Pitanga

Cena do documentário sobre Walter Mercado. No detalhe o título original (Montagem)
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Por Filippo Pitanga*

É curioso pensar em como alguns filmes costumam ter seus títulos traduzidos para o Brasil. Muitos podem receber uma tradução literal, enquanto outros são completamente modificados, e às vezes até distorcidos ou deturpados.

É o caso do documentário recém estreado na Netflix, dirigido por Cristina Constantini e Kareem Tabsch, “Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado” (2020), sobre esse personagem título que hoje é uma sombra pálida do gigante de outrora, um senhorzinho andrógino que poderia ser nosso avô (ou avó).

Pois o nome original do filme é “Mucho Mucho Amor: The Legend of Walter Mercado”, aludindo à sua mensagem de amor universal, ao invés de apenas ser reduzido à pejorativa alcunha com que talvez seja mais lembrado no Brasil de “Ligue Djá”: uma corruptela com sotaque portunhol advinda de um comercial de televendas em que o astrólogo famoso mundialmente vendia serviços de mediunidade por telefone.

Sim, seu império comercial chegou a ser voraz. Um precursor do que empresas como Shoptime depois dominariam o mesmo formato de mercado com televendas no Brasil e no mundo. Entretanto, existia um ser humano por trás deste ícone extremamente fascinante e ambíguo, para além do que a velhice e a decrepitude podem nos soar permissivos ou condescendentes com as falhas e erros cometidos em sua trajetória.

Não é só por causa da nostalgia ou saudosismo deste sábado de dia dos avós, confinados à distância em plena quarentena, que nos obriga a ter simpatia... E sim um real carisma do estudo de personagem que evoca questões culturais e geracionais por parte de Walter Mercado, para além do sucesso de seu trabalho por mais de cinco décadas na TV – de modo que são nossos avôs e avós que mantiveram a chama acesa da tradição que hoje viraliza em memes dos netos e netas (e Walter é tão viralizado na internet na América Latina quanto Gretchen é no Brasil, tamanha a proporção do mito pop).

Nascido em família humilde numa cidade do interior de Porto Rico, a sua mediunidade ganhou vários mitos de origem, um mais onírico do que o outro, como se operasse milagres desde a infância. E o documentário evoca estas mitologias escolhendo traduzir o passado em técnicas de animação. Bem como é uma decisão acertada de seus diretores dividir os capítulos da história em cartas de tarot (como a estrela, a fortuna e a torre), ampliando o tom fabular e kitch.

Aliás, toda a narrativa é igualmente sofisticada e brega-chique, de modo a refletir o estilo de vida do protagonista. Se ele acredita piamente em seu meio de vida e poderes especiais, o fato de as câmeras ganharem intimidade para filmar livremente dentro de sua casa amplia numa lente de aumento todas as personas que ele interpreta de si para ele mesmo desde que acorda até dormir. Não existe mais separação do real e da autofabulação. – nisto sim talvez o documentário ganhe um olhar carinhoso a ponto de passar pano em algumas questões, como a sua sexualidade, que apesar de evidentemente não binária, jamais é assumida como tal (em parte por terrível intolerância e preconceito da época na América Latina, onde exercia sua maior fama).

A questão é que o Brasil escolheu o trecho mais duro e perverso da vida de Walter Mercado para nomear seu filme, já que o processo investigativo do documentário talvez tenha sido o mais franco e eficaz quando enfim aborda o ex-empresário que administrava a carreira do astrólogo.

Foi dele a ideia da televenda que associou toda a excentricidade num produto ainda mais rentável, e forçou um contrato draconiano que retirou do protagonista até mesmo o direito de usar seu nome. Percebe-se, para além da ânsia em permanecer na frente das câmeras, que Mercado genuinamente tinha boa intenção com suas mediunidades, fossem verdadeiras ou apenas um esquema piramidal.

Mas o fato é que ele foi enganado e roubado por anos, e o documentário apenas foca nisso em talvez um quarto da projeção, preferindo desenvolver o aspecto amoroso do título original “Mucho Mucho Amor”. É tão irônico quanto revelador o Brasil só conseguir associar esta figura fascinante com sua faceta mais mercadológica.

Temos uma cultura que não dá a mesma importância a suas avós que outros países da América Latina dão às suas “abuelitas” (as principais fãs de Walter Mercado e o porquê de sua história ser passada através das gerações, e hoje ser meme entre jovens). Abuelitas na América Latina são matriarcas com força espiritual e centralizadora na cultura social, diferente de um Brasil colonizado e por demais eurocêntrico para dar o devido valor às suas raízes (com raras exceções, como a importância das mulheres mais velhas em tribos indígenas ou em aquilombamentos).

Esse descaso com os mais velhos e suas histórias também é tema de outro documentário recente a estrear no streaming (nas plataformas NetNow, Vivo Play, Oi Play, FilmeFilme e Looke): “Não Toque em Meu Companheiro” da renomada cineasta brasileira Maria Augusta Ramos (de cults como “Justiça” de 2004, “Juízo” de 2007 e “O Processo” de 2018).

Desta vez, o título original se baseia numa tradução certeira que o movimento homônimo trouxe das lutas sociais na França com o slogan “Touche pas à mon pote” (no Brasil, até música de Gilberto Gil essa famosa expressão virou). O filme versa sobre um momento da Era Collor (do presidente Fernando Collor de Mello) e como nossos pais e avós enfrentaram uma série de demissões injustas na Caixa Econômica Federal em 1991, numa tentativa de desmantelamento das instituições públicas – assim como andamos passando de novo no tempo presente pelo governo atual.

A comunicação entre as lutas daquela época e a deste momento, ainda mais para brasileiros que costumam ser famosos por ter memória curta, chega a ser evocada por especialistas durante o filme. E não à toa, pois Maria Augusta, cineasta por excelência do cinema de observação, oferece dispositivos fílmicos para aproximar estas realidades: seja buscar servidores públicos atuais e exibir coisas da época, como a transmissão de Collor sobre as demissões quase tratando os funcionários como criminosos que “sugavam as verbas públicas” (muito como são tratados também hoje); seja contrapor imagens de protestos em preto e branco de 1991 com reuniões contemporâneas das pessoas outrora demitidas, nas mesmas vias públicas em que lutaram naquela época (vias estas ora usadas para as causas atuais, como a Paulista em frente ao MASP).

Maria Augusta Ramos possui algumas assinaturas de linguagem, como, diferente de “Ligue Djá”, evitar o estilo “talking heads” (cabeças falantes) em depoimentos típicos de documentários mais tradicionais. Tanto quanto não usa de trilha sonora extradiegética (a não ser que alguma música esteja tocando naturalmente no ambiente filmado), apesar de abrir uma única exceção ao final desta obra. E a abordagem observacional mais seca lhe rende maior credibilidade no resultado de seus entrevistados – pois eles têm maior espaço e liberdade para interagirem naturalmente, sem as performances do dia a dia com a qual erigimos nossas defesas.

Podemos até possuir performances de nós mesmos, porém até mesmo uma performance pode exprimir verdades que atravessam a tela até o espectador, como diria o grande e saudoso documentarista Eduardo Coutinho. E essa é a maior mensagem deste filme, de certa forma muito próxima de modo inversamente proporcional à mensagem de Walter Mercado: é na preservação da memória e na luta por ela que reside o verdadeiro amor, e não fechando os olhos para viver apenas presos numa ilusão do que já passou, como diriam nossos avós. 

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema