O Bufo Poder de uma Rainha Cansada ("A Favorita")

"A Favorita" está entre os favoritos de Marina Costin Fuser ao Oscar, por seu humor lúgubre. A trama satírica, dirigida pelo grego Yorgos Lanthimos, é costurada com uma agulha precisa que escancara a relação espinhosa entre sexo e poder de Anne, a patética rainha inglesa do século XVIII

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Por Marina Costin Fuser* A Favorita está entre os meus favoritos do Oscar, por seu humor lúgubre. A trama satírica, dirigida pelo grego Yorgos Lanthimos, é costurada com uma agulha precisa que escancara a relação espinhosa entre sexo e poder de Anne, a patética rainha inglesa do século XVIII, que está mais preocupada com seus coelhos saltitantes do que com a iminente guerra de seu país com a França. Sarah Churchill, a Duquesa de Malborough, conselheira e amante secreta da rainha, a manipula para que siga seus ímpetos bélicos. Até que a chegada de Abigail, a nova criada, desestabiliza os bastidores da corte, e por tabela, incide sobre a decisão entre guerra e paz. As relações lésbicas pouco ou nada dizem sobre amor e libido, já que as rivais que disputam o leito da rainha não disfarçam que seu único interesse consiste em exercer controle sobre o trono. A rainha bufônica não tem a mínima compostura, e se arrasta como uma larva aos pés de sua fria amante. Seu corpo não se sustenta de pé, dado o peso fatídico de seu ofício, que lhe é tedioso. Suas pernas são frágeis, debilitadas, como se a preguiça de caminhar com as próprias pernas as tornassem inúteis. Suas tentativas de recobrar a compostura beiram ao ridículo, interrompidas por súbitos acessos de cólera, que recaem sobre seus subalternos. O mais impressionante neste filme é o trabalho de iluminação e edição, que destaca os rostos e as silhuetas das personagens num fundo escuro, recriando na tela um ambiente burlesco, como num circo. O excesso é proposital, um recurso narrativo que não nos permite levar o enredo tão a sério. Até o trote dos cavalos é teatralizado, saltitante e desalinhado. A teatralidade exagerada dos personagens é caricata, sem pretensão de convencer. Como no momento em que Robert Harley, um Tory membro do parlamento, empurra Abigail na lama sem a mínima sutileza, repetindo a cena de sua chegada ao palácio, quando a personagem é empurrada para fora da carruagem. A repetição enfatiza seu lugar na cadeia alimentar: na lama. Da lama ela ascende, adquire título de nobreza, rouba o lugar de sua rival às custas de suas ardilosas falcatruas, mas só para descobrir que não há glória possível. Com ou sem pompas, seu destino é ser esmagada. Os personagens masculinos são fracos, uns frouxos bestalhões de peruca, sem o mínimo controle sobre o desencadeamento dos eventos. Não obstante, após refletir sobre o protagonismo das mulheres no filme, concluí que apesar de serem elas as que dão as cartas, não há um único personagem grandioso na trama. São todos expostos ao ridículo. A tão almejada coroa não eleva a risível autoestima da rainha. A personagem mais imponente seria Sarah, mas seu destino é fadado ao fracasso. Ela vai perdendo a pose à medida que os joguetes de poder se invertem. O filme é baseado em fatos reais, a partir de especulações acerca da relação da Rainha Anne com sua conselheira Sarah Churchill. Até mesmo a criada Abigail estaria entre os rumores da realeza, que teria sido também íntima da rainha. Apesar de sua inspiração histórica, o filme se apresenta como ficcional, sem pretensão de se ater aos fatos. A verdade que o filme transmite consiste na fabulosa crítica ao poder, dos bufos excessos que destacam os ridículos e desafiam toda autoridade possível. *Concluiu o doutorado em Estudos de Gênero e Cinema na Universidade de Sussex com doutorado-sanduíche na UC Berkeley, é ativista e pesquisadora feminista e LGBT há mais de dez anos, contribuindo com artigos e charlas relacionados ao tema dentro e fora da academia. Publicou o livro Palavras que dançam à beira de um abismo: Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst.