O Nordeste como alternativa nacional

O professor Roberto Dutra faz a resenha do livro “O Nordeste em Transformação”, organizado por Carlos Sávio Teixeira e Jessé Souza

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[caption id="attachment_134617" align="alignnone" width="960"] Foto: Reprodução/Facebook[/caption] Por Roberto Dutra* O livro “O Nordeste em Transformação” (Rio de Janeiro, editora bicicleta, 2018), organizado por Carlos Sávio Teixeira e Jessé Souza, reúne análises sobre diferentes aspectos da vida social no Nordeste brasileiro contemporâneo, dialogando, de modo ininterrupto, com a ideia de combinar o soerguimento do Nordeste com um projeto nacional de desenvolvimento, gestada nos governos de Juscelino Kubistchek e João Goulart, sob orientação de Celso Furtado, e depois esquecida. É um livro de excelente análise sociológica, e com uma orientação programática que o torna ainda mais instigante e valioso. O diagnóstico central do Nordeste como realização agravada do grande problema nacional da desigualdade ganha sofisticada versão sociológica nos diferentes estudos de caso sobre temas como economia e microcrédito, programas de transferência de renda, criminalidade e exclusão política. A vida social nordestina é analisada sem nenhum tipo de essencialismo regionalista. Seus grandes dilemas são os dilemas nacionais agravados pela combinação de desigualdade social com regional. Com isso, a identidade fixada desde o Estado Novo de um Nordeste peculiar em relação ao Brasil e homogêneo internamente é abandonada. O Nordeste mesmo, como conceito sociológico, não existe no livro. O que existe é o processo de criação e transformação política desta identidade como parte do processo mais amplo de construção e reconstrução da identidade nacional. O Nordeste não é uma categoria explicativa de nada. Precisa ser, ela sim, explicada e desnaturalizada. O livro dá um passeio além e não pode ser visto apenas como análise sociológica. Possui um conteúdo político. Mostra não apenas como os problemas nordestinos são problemas nacionais. Faz o mesmo em relação a soluções alternativas. Não se trata apenas de ver o Nordeste como alternativa de ampliação do mercado de consumo, mas também de reorganização da economia, da educação (vide o desempenho do Ceará), enfim, como fonte interna de alternativas estruturais e institucionais em diferentes esferas da vida social. Não fica preso à leitura de Gilberto Freyre feita por Jessé Souza, na qual o Nordeste é o berço do Brasil escravocrata que vai se modernizar com desigualdade, transformando-se em uma sociedade nacional que naturaliza a subcidadania em massa e persiste incapaz de superá-la com grandes projetos políticos de transformações estruturais. De fato, o Nordeste de Casa-Grande e Senzala é quase todo parte do problema, embora o elemento da “plasticidade” mereça tratamento conceitual e político muito melhor do que vem recebendo por ativistas colonizados pelo “puritanismo racial” de origem norte-americana, que nega a possibilidade de uma construção sociocultural própria destas relações e categorias entre nós. Não é a “plasticidade” do mulato, traduzida em “jeitinho”, “cordialidade”, que o livro traz como alternativa nordestina. A “sentimentalização das trocas desiguais” não tem potencial transformador. A alternativa está na própria inexistência desta identidade nordestina coesa, produzida pela escravidão e atualizada como herança sociocultural, o que muitas vezes é negligenciado por narrativas estruturalistas como de Jessé Souza. O Nordeste em transformação é tanto mais real quanto mais nos damos conta de que o Nordeste criado pela escravidão, cuja herança Joaquin Nabuco queria combater em todas as suas ramificações, nunca foi o único. No semiárido, por exemplo, em áreas com poucas conexões com a economia das capitais litorâneas como o complexo têxtil de Toritana em Pernambuco, a herança sociocultural predominante não foi a da escravidão. Como diz Roberto Mangabeira Unger no prefácio do livro, “ali, onde jamais se arraigou a escravatura, sobreviveram elementos de uma sociedade rude e forte de iguais. Qualquer homem relutava em subordinar-se a outro. As mulheres encarnavam com fervor o espírito de resistência. É como se o Brasil carregasse dentro de si uma contraimagem do regime social que veio a prevalecer na maior parte do pais” (p. 11). Certamente não é a única contraimagem que o Brasil carrega dentro de si. Por maior que tenha sido a herança da escravidão, ela não foi um sistema total, capaz de impedir alternativas. Na ciência política, os estudos eleitorais e sobre participação já demonstram não haver nada de peculiar e próprio do Nordeste. A existência de forte associativismo político no mesmo semiárido que escapou da escravidão só reforça a necessidade de abandonar “regionalismos” e “nacionalismos” na análise da realidade: padrões de desigualdade são diversos, e embora haja a hegemonia de um padrão em um determinado território, o olhar atento do analista deve admitir a existência de variações estruturais em todos os países e em todas as regiões. Neste caso, não se trata de qualquer variação. Mas de uma contraimagem, uma espécie de “equivalente funcional”, encontrada no semiárido, do associativismo igualitário que Tocqueville observou e descreveu nas colónias inglesas da América do Norte. Vida social nordestina Na esfera acadêmica, o mérito do livro é analisar a vida social nordestina superando estes limites do “estruturalismo sociológico”, que tende a adotar o pressuposto de uma estrutura social caracterizadora do seu objeto de observação, e tratar o que desvia empiricamente como residual. Mas não é apenas este o mérito do livro. Ele também apresenta uma perspectiva programática, consequentemente vinculada ao diagnóstico do Nordeste como variedade estrutural. Explorando, por exemplo, os significados do associativismo de “rudes e iguais” para transformações na economia, na política e no direito, a orientação programática que emerge é inspirada naquilo que Carlos Sávio Teixeira chamou de “construtivismo institucional”: as esferas sociais comportam diferentes alternativas de organização, e o entendimento do que existe deve abarcar as “possibilidades objetivas”, como diria o grande sociólogo Alberto Guerrero Ramos. O associativismo cotidiano do sertanejo (uma realidade empírica, e diferente da construção política do mito “bandeirante”), voltado para resolver problemas comuns e práticos, foi, por exemplo, desprezado em seu potencial como suporte para o desenvolvimento regional e nacional. Mas assim como poderia ter sido aproveitado, sua herança, como outras ignoradas por nossas elites políticas, econômicas e culturais, ainda está disponível como “matéria prima sociocultural” para inovar na economia – em matéria de escala, tecnologia, crédito etc. –, na educação e na implementação de políticas públicas transformadoras que requerem a “coprodução”, o engajamento de seu público. Este é apenas um exemplo. Outros poderiam ser lembrados e mereciam contribuições no livro, como as experiências bem-sucedidas nas áreas da educação e da saúde que o Ceará acumula. Isto reforçaria o tema do federalismo, tão importante para a estratégia de articular desenvolvimento regional com nacional. Apesar desta pequena lacuna sobre políticas públicas regionais locais, o livro é um convite em alto nível para pensar a relação entre o conhecimento do real e o conhecimento do possível. Ainda que a ciência social não possa e não deva recomendar o que fazer, ela pode ajudar muito nesta tarefa quando contribui para observar as “possibilidades objetivas”, sustentadas no caráter aberto e contingente da vida social. Isto só é possível quando superamos os exageros de abordagens estruturalistas que acabam dificultando a observação da vida social em toda sua complexidade e variação estrutural. O livro “O Nordeste em Transformação” é uma importante contribuição neste sentido. *Roberto Dutra é professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Foi diretor do IPEA