“When They See Us”: em todas as esquinas, um Harlem, por Marina Costin Fuser

Ao conhecer os depoimentos reais dos já crescidos meninos do Central Park parece que estou ouvindo ecos de Heliópolis, da Rocinha, do Bangu...

Foto: Divulgação/Netflix
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Por Marina Costin Fuser* A série da Netflix, “When They See Us”, de Ava DuVernay, me deixou desconcertada, a ponto de ficar sem chão! Dois dias atrás eu caminhava pelo Harlem, precisamente da 135th St. pela Lennox Ave. aka Malcolm X Boulevard até o Central Park North. Fiquei fascinada com a energia vibrante do bairro afro num domingo de sol: tanta gente linda, senhoras de chapéus coloridos saindo da igreja, o que me pareciam ser filhas de santo trajando branco, uma demonstração em homenagem ao senegalês A?madou Bamba com batuque, rastafaris, muçulmanos, gente de todas as idades e formas trajando roupas coloridas e estamparias deslumbrantes. Tanto charme e personalidade dão vida ao Harlem, uma expô diaspórica no África Center e um show surpreendente de jazz no parque, próximo ao lago e à estátua de Duke Ellington... Inscreva-se no nosso Canal do YouTube, ative o sininho e passe a assistir ao nosso conteúdo exclusivo. Claro que eu sabia da reputação sinistra do bairro, mas nenhuma história triste parecia habitar aquele riquíssimo cenário multicultural. Entre ontem e hoje assisti à reconstituição dos eventos em torno dos “central park five”, como ficaram conhecidos os meninos negros e latinos que foram condenados por 13 anos por um estupro que não cometeram, precisamente no lugar onde eu caminhava no domingo. Eles estavam fazendo um rolezinho (“wilding”) no dia 19 de abril de 1989, uma brincadeira de meninos, mas neste mesmo momento uma jovem corredora foi estuprada em outro lugar no parque. A polícia os brutalizou por 18 horas, até espremer falsas confissões desses adolescentes, que disseram o que os tiras queriam, impelidos pela promessa de que seriam finalmente liberados. De repente, a narrativa da polícia foi orquestrada para que os meninos fossem incriminados, mesmo sem DNA ou evidências que apontassem pra eles. No mesmo ano, Matias Reyes foi preso por uma série de estupros, mas os detetives não se deram ao trabalho de comparar seu DNA com o material biológico encontrado no corpo da corredora, ainda que o modus operandi de Matias seguisse o mesmo padrão. Detalhe: o juiz e o detetive eram os mesmos em ambos os casos. Eis que em 2002, treze anos depois, após conhecer Korey Wise, o menino de 16 anos que foi preso como adulto, Reyes sentiu remorso e confessou o crime. Ele agiu sozinho. Os meninos eventualmente foram indenizados, mas nunca receberam um pedido de desculpas. O estrago já estava feito. O que mais me deixou passada é que esta história é muito próxima de muitas histórias da juventude negra, e nem precisamos ir até o Harlem pra nos aproximar desse cenário. O encarceramento injustificado da juventude negra está logo ali na esquina. Ao conhecer os depoimentos reais dos já crescidos meninos do Central Park parece que estou ouvindo ecos de Heliópolis, da Rocinha, do Bangu... Aquilo que eles descrevem como o cenário de pobreza e violência que assombrava o Harlem de 1989 é tão contemporâneo pra nós aqui no hemisfério Sul... Vale a pena assistir à entrevista da Oprah Winfrey com o elenco e os rapazes na sequência. Dá um aperto doído no coração, mas a Ava DuVernay fez um trabalho muito bem feito em pôr o dedo na ferida do sistema penitenciário. *Marina Costin Fuser é doutora em Estudos de Gênero e Cinema na Universidade de Sussex com doutorado-sanduíche na UC Berkeley, é ativista e pesquisadora feminista e LGBT há mais de dez anos, contribuindo com artigos e charlas relacionados ao tema dentro e fora da academia. Publicou o livro “Palavras que dançam à beira de um abismo: Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst”
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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