O monstro Bolsoroga mostra as mãos ao Tio Sam

Uma viagem carnavalesca ao universo das mãos, que criam, que destroem e que pedem a paz

Ilustração: DGC
Escrito en DEBATES el

Na semana que passou, o “desprezidente” publicou em suas redes sociais uma imagem intitulada “resumo da ONU”, na qual concentrou, em poucas linhas, as mentiras proferidas no tétrico discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. Nós sabemos que o material produzido por ele e seus torcedores não costuma primar pela qualidade. Costuma ser algo bem “naif” mesmo. O que surpreendeu, desta vez, foi a representação de sua mão direita, cansada, sobre o peito, com seis dedos.

Imediatamente, lembrei-me de um senhor que frequentava o programa de entrevistas do Jô Soares, ensinando, entre outras coisas, a desenvolver habilidades com o dedo mindinho, para subtrair dois salgadinhos oferecidos pelo garçom, em festas, vernissages e afins. Com o polegar e o indicador, fazemos a pinça tradicional e educada. Com a técnica, o mindinho poderia surrupiar uma iguaria excedente, escondendo-a sob a palma da mão, sem despertar a atenção dos convidados. Era algo realmente engenhoso.

Penso nas “maravilhas” que Jair poderia fazer com um sexto dedo. Talvez pudesse subtrair um terceiro canapé. Talvez outras coisas. Sabe-se lá por qual motivo escolheu aquela imagem. Um sexto dedo auxiliaria bastante na compra de imóveis em dinheiro vivo, não? Permitiria a redução do número de sacolinhas para transportar a bufunfa, ou fortaleceria o suporte a elas.

Mas não foi apenas a mão direita de Jair que deu o que falar. As mãos de Marcelo Queiroga, seu fiel escudeiro, e antiministro da saúde, exibiram seus respectivos dedos médios a uma dúzia de pessoas, em Nova Iorque, que manifestavam sua insatisfação com o desgoverno federal. O próprio Jair, horas antes, havia feito chacota com o número de manifestantes. Queiroga não suportou a pressão de uma dúzia de manifestantes. O que ele mostraria diante de cem? Mil? Um milhão? No mínimo, os glúteos. Ainda bem que eram apenas uma dúzia. Deus no comando.

Quem certamente mostrou as mãos de uma forma muito mais interessante foi o carnavalesco Babu Energia, responsável pelo enredo da tradicional escola paulistana Barroca Zona Sul, no carnaval de 2005: “Participei da criação, colaborei para o progresso, às vezes me utilizam para destruição, quando me uno a outra, selo a paz e a união! Mãos!”.

Fundada por Pé Rachado, ex-presidente e dissidente do Vai-Vai, a verde-e-rosa nasceu grande, em 7 de agosto de 1974, e conquistou dois carnavais nos grupos de acesso, em 1975 e 1976, estreando no grupo especial em seu terceiro ano de existência. Permaneceu ocupando posições de meio de tabela, até 1986, quando foi rebaixada. Campeã do grupo de acesso em 1987, desfilou entre as grandes de 1988 a 1994, quando sofreu o segundo rebaixamento. Desta vez, foram longos oito anos fora do grupo principal, interrompidos com o título do grupo de acesso em 2002. A escola conseguiu se segurar no grupo especial em 2003 e 2004, quando Babu, um mestre da reciclagem, foi contratado para o carnaval do ano seguinte.

Segundo depoimento exclusivo do carnavalesco para essa coluna, aquele carnaval foi um marco em sua carreira, um momento especial e mágico de sua vida, ao mesmo tempo em que foi trágico, pois tinha tudo para dar certo, mas deu errado.

Com 3000 componentes, em 25 alas e cinco alegorias, o desfile se iniciava pela origem bíblica do universo, criado pelas mãos de Deus, representadas no carro abre-alas, que trazia à frente o “Barroquinha”, um bebê negro tocando tamborim, símbolo da agremiação, pela primeira vez representado na avenida, por insistência de Babu. Os integrantes da comissão de frente ostentavam uma fantasia escura, na qual se destacavam as luvas, prateadas.

As mãos como instrumento de criação estiveram presentes em todo o primeiro setor do desfile: as mãos do médico que fazem o parto, as mãos do professor que ensina, as mãos que comunicam, por meio de sinais, as mãos que pintam, as mãos que ostentam as alianças de casamento.

As baianas representavam ciganas que, nas linhas de nossas mãos, são capazes de ler nosso futuro. A segunda alegoria, que representava a solidariedade, trazia a comovente encenação de um parto. A terceira, trazia artistas de Embu das Artes, que pintaram partes da alegoria durante o desfile. Infelizmente, parte de uma escultura que vinha à frente do carro se quebrou, comprometendo o julgamento.

A mão que abençoa foi representada na ala que homenageava a Mangueira, escola-madrinha da Barroca.

As mãos como ferramentas do progresso foram lembradas na ala que aludia aos escravos, nas lavouras de cana. Mãos negras que marcam, também, o ritmo do samba. Não poderiam ser esquecidas.

As mãos estendidas dos mendigos, pedindo ajuda, ganharam também uma ala.

Ainda segundo o carnavalesco, a escola demorou dez minutos para entrar na avenida, e teria dificuldades para desfilar dentro do tempo máximo de 65 minutos. Faltando cerca de 15 minutos para o término, a evolução da escola já havia se perdido, e grandes espaços começaram a se abrir entre as alas.

Na época, Babu trabalhava nas “noites do terror”, do Playcenter, evento que ocorria nos meses de agosto, no famoso parque de diversões paulistanos. Atores maquiados e fantasiados ambulavam pelo parque, pregando sustos nos frequentadores, depois de o sol se por.

Pois bem. Babu resolveu levar seus colegas de trabalho para o desfile da Barroca. Um grande número de “monstros”, representando as mentes monstruosas, e as mãos assassinas. O problema é que o pessoal, desempenhava uma coreografia à la “Thriller”, de Michael Jackson, e manteve-se fiel aos passos ensaiados. Algo que, definitivamente, não convergia com a necessidade de correr, para completar o desfile dentro do limite do tempo, e não sofrer penalizações.

Babu afirma que estava previsto um espaço à frente da ala dos monstros, permitindo a evolução dentro da coreografia ensaiada. O relato de um dos diretores, entrevistado pela TV, já na dispersão, confirma essa informação. O fato é que a coreografia dos “monstros” não acompanhava a correria dos foliões à frente, ampliando-se de maneira excessiva o espaço entre as alas. Algo que compromete quesitos técnicos, como harmonia (canto) e evolução (dança) do desfile.

As imagens do desfile revelam o desespero de Babu, tentando acelerar o pessoal, mas o estrago estava feito. Eu estava tocando tamborim, na bateria, e lembro bem daquele vazio, à minha frente. Foi um balde de água fria.

A mais bela alegoria, trazendo personagens diabólicos, em meio a uma riqueza de detalhes cenográficos, passou correndo pela avenida. Recordo-me do orgulho que Babu tinha por essa alegoria, ao mostra-me, ainda no barracão, em uma visita que lhe fiz.

As alas seguintes faziam menção à pirataria, e à clonagem. No terceiro setor, as mãos como símbolo de destruição: desmatamento e guerras.

Ao final, a alegoria representando as mãos que pedem paz e a união, e a velha-guarda da escola, encerrando o desfile.

Thiago Praxedes, de apenas 21 anos, vinha à frente da bateria, vestida de “Exército da Paz”. O mais jovem mestre de bateria da história do carnaval paulistano.

André Pantera e Alécio Reis puxaram o belo samba de Luizinho, Ribeiro, Ronaldo Costa e Souza Poeta:

Mão voluntárias que trazem a vida / Outras que repartem o pão
Segue o destino traçado nestas linhas / Sinais de comunicação
(..)
A corrupção, humilhação do nosso povo / Nesta luta desigual / Sonhar com a igualdade social
Mãos sempre a piratear / Outras vivem a clonar / Chora… a natureza chora o desmatar
A humanidade sempre a implorar / Em oração o fim das guerras
Hoje nossa mensagem é de união / É paz na Terra, amor no coração
É emoção!!!

Com 272,5 pontos, a escola não evitou o 16º e último lugar, retornando ao grupo de acesso. Passou 14 temporadas longe do grupo principal, chegando a desfilar no quarto grupo, algo inédito em sua história. Voltou em 2020, com um honroso 10º lugar.

Infelizmente, a ala coreografada até hoje é responsabilizada pelo rebaixamento, o que entristece muito Babu. Ele segue atribuindo o desastre ao atraso na entrada da escola que, na prática, reduziu o tempo para que os 3000 integrantes cruzassem a avenida, obrigando as alas a correrem, prejudicando a coreografia dos “monstros”. A explicação de Babu é coerente. Já passei por situações semelhantes em outros carnavais, assunto para outra coluna.

Juntemos nossas mãos em oração, para que tenhamos melhor sorte que a Barroca em 2005, e que as repulsivas mãos de Jair e seus comparsas saiam de cima de nosso país, e deixem de nos humilhar perante o resto da humanidade. O quanto antes.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.