EXPERIÊNCIAS

O que recebi dos psicodélicos – Por Flavio Lobo

Descreverei vivências e percepções que, em sua essência, já foram experimentadas por milhões de pessoas que, ao longo da trajetória humana, consumiram substâncias psicodélicas

Créditos: WallpapersCraft/Reprodução
Por
Escrito en DEBATES el

Notícias e estudos sobre psicodélicos – como psilocibina, ibogaína, MDMA, LSD e DMT – são cada vez mais frequentes, sobretudo os que abordam os efeitos e potenciais dessas substâncias e o desenvolvimento de tratamentos psiquiátricos com auxílio delas. Além das substâncias em si, culturas e práticas tradicionais, indígenas e xamânicas, e "novas tradições" sincréticas – do Santo Daime às espiritualidades urbanas contemporâneas – que utilizam ayahuasca também têm sido objeto de pesquisas e reportagens.

Já fiz artigos e entrevistas sobre ciência psicodélica e a respeito de novas terapias com substâncias desse tipo. Mas este artigo é diferente. Vou contar aqui o que recebi de mais valioso na minha relação pessoal com a ayahuasca, chá que combina duas plantas amazônicas e contém a substância psicodélica DMT.

Descreverei vivências e percepções que, em sua essência, já foram experimentadas por milhões de pessoas que, ao longo da trajetória humana, consumiram substâncias psicodélicas (ainda que tais estados possam também ser acessados sem, necessariamente, o consumo dessas substâncias, como discutirei mais adiante).

As descrições que farei provavelmente soarão familiares para pessoas que frequentam as religiões ayahuasqueiras – Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) – ou as casas de rituais que, conforme a regulamentação brasileira, têm autorização para servir ayahuasca como sacramento. Imagino que também indígenas – os guardiões originários da ayahuasca, que nos deram a oportunidade de conhecê-la – poderão, talvez, reconhecer alguma validade neste meu relato, mesmo sabendo que o seu universo de vivências, conexões e saberes é muito mais vasto e rico que o meu.

Limites e cuidados

Entre os primeiros e principais conhecimentos que adquiri em relação aos psicodélicos – especialmente ao me relacionar com a ayahuasca –, estão cuidados básicos que devemos ter ao lidar com essas substâncias poderosas.

O uso de ayahuasca é autorizado e regulamentado no Brasil em contextos religiosos, ritualísticos, e, para começo de conversa, devemos respeitar essa delimitação. Além disso, como acontece com qualquer psicoativo, há grupos de risco para a ayahuasca, pessoas que não devem tomá-la ou requerem cuidados especiais.

Alguns tipos de problemas de saúde e o uso de certos medicamentos implicam riscos se combinados com a ayahuasca, por isso é indispensável identificar essas limitações, que em alguns casos são intransponíveis e noutros demandam a adoção de protocolos especiais de cuidado, como a suspensão do uso de remédios – eventualmente acompanhados por profissionais de saúde.

Outro grupo de risco é etário. Na nossa cultura e sociedade – fora de contextos indígenas, portanto –, psicodélicos não devem ser consumidos por crianças e adolescentes: a maioridade é pré-requisito

Reconhecidos e protegidos os grupos de risco, há outros cuidados, que se aplicam a todos os que buscam vivências seguras e benéficas.

A chamada “ciência psicodélica” e os novos métodos terapêuticos com uso dessas substâncias vêm consagrando uma tríade de cuidado que, em inglês, corresponde à sigla dos três “s”: substance (a substância), set (a pessoa) e setting (o ambiente). A substância precisa ser genuína, de boa qualidade, e adequadamente dosada para cada pessoa, levados em consideração histórico, características e condições individuais. A experiência precisa ser amparada por um ambiente seguro e acolhedor (incluindo música adequada), acompanhada por gente preparada para prover suporte e ajuda quando necessário (no contexto clínico, profissionais especializados; no religioso, condutores experientes de rituais e seus ajudantes).

Diferentemente do que muita gente ainda imagina, em razão de décadas de desinformação no contexto da “guerra às drogas”, o uso de psicodélicos implica risco muito baixo de dependência química (perigo muito menor do que o implicado, por exemplo, no uso de drogas lícitas como álcool e cigarro e de drogas ilícitas como a cocaína). Mas são substâncias que podem, sobretudo quando os cuidados aqui mencionados não são devidamente observados, provocar experiências desagradáveis e, em alguns casos, muito perturbadoras.

O baixo risco de dependência química, além disso, não significa que não possa haver formas de uso abusivo, que geram problemas para a vida do usuário.

Por esses motivos – para reduzir riscos e aumentar benefícios –, no que se refere à ayahuasca, o respeito à regra vigente no Brasil, que autoriza o uso em contexto religioso, comunitário, com a supervisão de pessoas experientes, é importante fator de segurança.

Cinco dádivas

Pensando no que vivi diretamente, e no que ouvi, percebi e testemunhei das experiências e trajetórias de outras pessoas que experimentam e desenvolvem relações pessoais com a ayahuasca (relações que envolvem corpo, mente, linguagem, consciência, inconsciente e espírito, algo bem distinto da lógica exclusivamente bioquímica da farmacologia tradicional), identifico cinco dádivas fundamentais que ela proporciona aos que a acessam com o devido cuidado e respeito.

Vou descrever essas dádivas da melhor maneira que consigo, do meu jeito, sabendo que outros as nomeariam e testemunhariam com outras palavras. Minha intenção é apontar experiências que podem ver vividas e reconhecidas independentemente das tradições e crenças específicas associadas a cada cultura, vertente, comunidade, igreja ou casa ayahuasqueira, que, em boa medida, podem também ser propiciadas pelo uso de outras plantas, de cogumelos e de diversas substâncias psicodélicas, quando bem utilizados.

Creio que estas “cinco dádivas” são componentes vitais do grande e cada vez mais amplamente reconhecido potencial terapêutico dos psicodélicos para o tratamento de males como depressão, trauma, ansiedade, dependência química e outras formas de adição e de padrões mentais e comportamentais repetitivos e prejudiciais.

Vamos a elas, as cinco musas deste texto.

Beleza

Esteja a atenção da pessoa, durante a experiência, voltada para dentro ou para fora – sentidos que, muitas vezes, podem ser alternados instantaneamente, simplesmente fechando ou abrindo os olhos – a contemplação da beleza e a imersão nela é algo que os psicodélicos frequentemente propiciam.

Intensificações sensoriais, novas perspectivas, vastas galerias de arte, incríveis sessões de cinema de misteriosa autoria (como um mero "alterador" de percepção e consciência conceberia obras tão magníficas?) nos conduzem à contemplação admirada. Se realmente nos entregamos a admirar a beleza, a membrana entre o que é visto e quem vê vai se dissolvendo até que nos tornamos beleza contemplada.

Noutras vezes, a experiência de encontro com a beleza independe do que se vê ou se “mira” (as visões propiciadas pela ayahuasca são tradicionalmente chamadas de “mirações”), pois se apresenta como propriedade inerente de um especial olhar contemplativo. Nesse estado, é possível enxergar a coreografia do mundo, uma dança da qual participa inclusive aquilo que, ao olhar corriqueiro, se apresenta imóvel. Ou, no avesso dessa primeira percepção, é possível enxergar aquilo que permanece imóvel em meio ao fluxo contínuo do tempo e das coisas que passam. Visões, opostas e complementares, que costumam se associar a intensa emoção estética.

Contemplar o belo e o sublime é bom e benéfico por si só, nos ajuda a nos encontrarmos no mundo, a viver com mais alegria e a encontrar mais amor... Na verdade, já é em si um modo de vivência amorosa.

Amor

A experiência à qual me refiro aqui é a do amor incondicional. Já vi gente descobrir que isso existe em cerimônias de ayahuasca. Rostos que expressam essa descoberta são inesquecíveis.

Esse tipo de vivência do amor, boa e benéfica em si mesma, aumenta as chances, para quem a vive, de transformação pessoal (no sentido da superação e atingimento do que quer que se busque).

No amor incondicional e que não depende de objetos – algo que podemos receber, emitir ou simplesmente ser durante uma experiência com ayahuasca –, não há medo. A profunda ausência de medo é outra descoberta: nos revela a existência, no nosso estado “normal”, de um “medo de fundo”, não consciente, cuja presença constante só se deixa perceber quando é interrompida pela plenitude amorosa.

Finda a experiência, o medo de fundo vai voltando, mas agora que o flagramos ausente e sentimos o seu retorno, temos a oportunidade de desenvolver uma relação mais consciente com ele. O medo, que compõe a nossa experiência de viver e a nossa aptidão funcional neste mundo (numa perspectiva biológica, evolucionária, estamos aqui, vivos, porque tivemos e temos medo), não é condição necessária da existência (afinal, mesmo que por pouco tempo, existimos – e muito bem! – sem ele), e pode ser trazido à luz, modulado e reduzido.

Sentir-se imerso em amor ou senti-lo brotar de dentro da gente, caudalosa ou serenamente, podendo ser dirigido aos objetos que quisermos, mas sem que precise de objeto nenhum para existir: esse é um batismo de pertencimento profundo. Experiência que dá sentido maior às ritualísticas, deveria ser guardada, protegida e propiciada por toda sociedade saudável.

Pertencimento

Vizinho do amor, o estado de pertencimento é parente do que alguns denominam “sentimento oceânico”. Ao nos identificarmos com o universo inteiro ou como participantes plenamente integrados à teia da existência, vivemos um modo de estar e de ser no mundo que é antídoto para a solidão e o cinismo gerados por um ambiente cultural desencantado, objetivista, individualista, consumista, parasitado por um hedonismo rasteiro, alívio precário para o sofrimento decorrente da falta de verdadeiro engajamento.

Graças ao encantamento da ayahuasca – que inclui o contexto cultural, ambiental e humano pelos quais o chá chega até nós e nos quais ele é servido e compartilhado –, muita gente atravessa, num pulo só, um rio de dimensão amazônica. Uma consciência em estado de sítio, solitária, efêmera e aflita, surgida do nada dentro de um mundo estranho se transforma, de uma hora para outra, num ser cuja presença é o que há de mais belo, verdadeiro e repleto de sentido. Tão repleto, que se percebe capaz de doar sentidos ao mundo ou simplesmente de se comprazer em si mesmo, contemplando e fruindo a própria existência.

Saindo do ápice do estado de pleno pertencimento, do enlace do abraço do eu com o universo, há a oportunidade de cultivar esse encontro, que não será sempre tão exultante, mas pode se tornar cada vez mais contínuo, íntimo e integrado.

Intimidade

Quem se sente irmanado ao universo, pertencente a toda a existência, pode ser e estar inteiramente presente. A vivência dessa potência de inteireza, por sua vez, conduz a consciência a territórios e conteúdos internos que se encontram segregados à sombra. A ayahuasca, especialmente, é mestra na condução pelos caminhos subterrâneos da memória, da psique e da alma.

No nosso estado “normal”, com o ego bem alerta e o constante “medo de fundo” a protegê-lo de ameaças externas e internas, traumas, tristezas, medos, desejos, culpas, mentiras e vergonhas perturbadores desse arranjo limitado que nos acostumamos a tomar como “nós mesmos”, como o “eu” que somos e nos esforçamos para reproduzir, ficam censurados. Um dos maiores presentes que a ayahuasca oferece a quem se permite conduzir por ela e se dispõe a olhar para o que ela ilumina é a revelação do que se esconde nas sombras. Esse autorreconhecimento na escuridão que vai sendo iluminada dentro de nós não é confortável e pode ser assustador e doloroso, mas é uma oportunidade preciosa.[1]

Aprender a navegar no oceano das nossas sombras é dimensão vital de processos de ampliação da consciência propiciados pela ayahuasca, que então revela a sua extraordinária mestria de planta professora. Mas por melhor que seja a mestra, é à pessoa iniciada que cabe fazer a jornada. Ao final da travessia de submundos íntimos, pessoais e coletivos, na outra (e nova) margem da experiência, um encontro mais pleno com a beleza, o amor e o pertencimento nos aguarda. E entre os aprendizados de alto-mar, vão sendo incorporados o saber fluir com o vento que sopra na vela e a firmeza de assumir o leme – ambos, exercícios de liberdade.

Liberdade

Trato aqui de uma modalidade específica de liberdade, que pode ter grande impacto na vida de quem a experimenta e cultiva. Refiro-me à experiência de “libertação do eu”, que também é frequentemente acessada sob os auspícios da ayahuasca.

É uma vivência na qual se enxerga e se testemunha “de fora” tudo aquilo que até então constituía a nossa própria identidade e compreensão de nós mesmos. Abre-se em nós, assim, uma fresta de potência libertária. Esse “novo eu”, livre de predefinições limitadoras, que vê o antigo eu sem se identificar nem se reduzir completamente a ele, traz consigo a possibilidade de apaziguar e superar componentes da antiga identidade. Daí, inclusive, em associação com a beleza, o amor e o pertencimento, vem a oportunidade de curar círculos viciosos de trauma, dependência e depressão.

Nesse “lugar/olhar do eu fora de si mesmo”, de onde é possível enxergar os próprios pensamentos, sensações, emoções e sentimentos como uma paisagem em movimento, mora um “curandeiro interior” capaz de nos libertar dos nossos vícios e prisões. O reconhecimento, dentro de nós mesmos, desse lugar/olhar, desse estado de serena liberdade nos dá uma chave preciosa para tornar cada vez mais constante – e independente da utilização de “instrumentos de conexão” como as próprias substâncias psicodélicas – o nosso vínculo com essas cinco musas e a presença delas no mundo.

Caminhos partilhados

Todas essas cinco dádivas podem ser recebidas ou acessadas sem o auxílio de psicodélicos, plantas e fungos de poder, medicinas ou ritualísticas específicas. Existem muitos caminhos capazes de conduzir a elas: meditação, yoga, práticas devocionais, jejuns, serviço altruístico, imersões na arte, no reino de Eros, em atividades corporais, na natureza, em atividades coletivas, grupais, comunitárias etc. Elas também podem nos ser concedidas em pura gratuidade, sem que tenhamos trilhado conscientemente nenhum caminho específico para acessá-las.

Então (alguém pode me perguntar), por que estou aqui tratando de ayahuasca? A resposta é simples, e carregada de um sentimento atualmente muito evocado: gratidão. Trato da ayahuasca porque ela me permitiu, com inédita clareza, ter contato com essas dádivas, adquirir consciência delas e da necessidade de cultivá-las. E tenho visto a mesma coisa acontecer com outras pessoas.

Voltando ao contexto terapêutico, ao uso de psicodélicos para tratar formas de sofrimento diagnosticadas como males psiquiátricos, considero vital o reconhecimento de que essas substâncias e suas parcerias com a humanidade – em alguns casos, milenares – apontam para compreensões de saúde e tratamento um tanto diferentes das atualmente dominantes. Por isso, inclusive, ao darmos crescente e merecida atenção à ciência e às novas terapias psicodélicas, devemos ter cuidado para não voltarmos ao círculo vicioso da fetichização alopática de moléculas.

Muita gente já foi e será salva graças à administração oportuna da substância certa e bem dosada. Não se trata, de modo algum, de fazer um discurso anticientífico que negue ou minimize essa realidade. Mas, provavelmente, o que a compreensão do potencial dos psicodélicos nos oferece de mais precioso e abrangente, independentemente dos motivos que possam nos levar a experimentá-los, é a percepção do que está nos faltando e do que precisamos recuperar e reinventar, como pessoas, comunidades e sociedade.

A ayahuasca também me fez lembrar de que ser humano é um bicho que se reúne com seus semelhantes – de preferência em roda – e presta testemunho da sua experiência e contribuição para a história e consciência compartilhadas. Honrando o que recebemos de nós mesmos, dos outros humanos e de seres diversos, da terra e dos céus, precisamos contar e ouvir como estamos aprendendo a encontrar e cultivar as coisas e os laços mais valiosos da vida.

*Flavio Lobo é jornalista, militante da causa da realização dos direitos humanos, especialmente da pacificação da chamada “guerra às drogas”.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

[1] Aqui cabe assinalar que, quando esses “conteúdos à sombra” são fonte de sofrimento extremo e representam forte ameaça à sanidade da pessoa que os abriga – como, por exemplo, em casos graves de transtorno de estresse pós-traumático –, o potencial iluminador da experiência psicodélica também pode ser um valioso fator curativo, mas sua possível utilização requer criteriosa avaliação e cuidado, podendo ser indicada somente se houver a possibilidade de articulá-la com uma abordagem terapêutica muito específica, conduzida por profissionais qualificados e treinados. Tratamentos desse tipo ainda não estão legalizados e disponíveis no Brasil, mas a evolução internacional da ciência e das terapias psicodélicas alimenta expectativas de avanço nesse sentido.