EDUCAÇÃO

Homeschooling e a desvalorização da educação pública brasileira – Por Diego Moreira

O projeto de lei é uma verdadeira desconexão com a realidade educacional brasileira e vai na contramão das principais pesquisas sobre os principais problemas ou propostas de melhorias da Educação Pública

Créditos: Prefeitura de Santos/Reprodução
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Em acordo político com o centrão, o presidente pressionou para acelerar a pauta e submeter a votação do Projeto de Lei 3179/2012. Como de costume, o presidente da Câmara dos Deputados, mais uma vez, obedeceu às ordens do Planalto. Por que esse projeto de lei é tão prejudicial à educação brasileira? O que há por trás dos movimentos que pressionam pela aprovação do PL e por que é uma pauta que ataca diretamente a sociedade?

A educação familiar não é um projeto inédito da atual gestão federal, uma vez que pequenos grupos organizados em associações de baixa densidade popular reivindicam a regulamentação da atividade das famílias na educação dos filhos. Segundo o site da ANED (Associação Nacional de Educação Familiar), a busca por regulamentação iniciou-se em 2010 com um grupo de pais insatisfeitos com a escola, que decidiu retirar os filhos e os manterem fora da instituição escolar, ao arrepio das leis. Atualmente são 7.500 famílias que defendem essa pauta.

O Projeto de Lei é uma verdadeira desconexão com a realidade educacional brasileira e vai na contramão das principais pesquisas sobre os principais problemas ou propostas de melhorias da educação pública conduzidas por órgãos governamentais ou mesmo por instituições do terceiro setor.

Vamos compreender alguns dados e os principais argumentos para não continuidade desse Projeto de Lei.

O Brasil possui aproximadamente 46,7 milhões de estudantes matriculados na Educação Básica, entre redes públicas e privadas. Segundo as informações do IBGE, o Brasil tem 11 milhões de analfabetos, o que corresponde a cerca de 6,6% da população. Com ensino fundamental completo, o número chega a aproximadamente 67 milhões de pessoas, o equivalente a 32% da população, enquanto que com o Ensino Médio completo o Brasil possui em torno de 57 milhões de pessoas, o equivalente a 27,4% da população. Por fim, com Ensino Superior, no país, há cerca de 35 milhões de pessoas, 17,4% da população. Sendo assim, para qualquer gestão séria que se comprometa com a educação pública, esses dados por si só seriam motivo suficiente para perceber o quanto a pauta não dialoga com as necessidades do país.

Para além dos dados, é necessário compreender os marcos legais e a razão histórica pelos quais foram criados.

A Constituição Federal, conhecida como Constituição Cidadã, amplia os direitos sociais justamente por reconhecer que o Brasil estava distante dos principais direitos que garantiam a condição de dignidade e cidadania. O artigo 205 da Carta Magna é explicito e inequívoco ao afirmar que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". A compreensão da promoção, incentivo e colaboração passam prioritariamente pela estruturação, valorização e desenvolvimento das instituições escolares, ou seja, o caminho para atender a população ainda não escolarizada e aumentar a qualidade do ensino é exatamente o oposto do que propõe o projeto. As famílias não devem deixar a escola para resolverem suas dificuldades isoladamente, é necessário que se fortaleça a participação plural e democrática no interior das escolas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, em seu artigo 57 diz que “o Poder Público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório”. O marco histórico do ECA é a defesa e busca de garantia da permanência das crianças e adolescentes na escola, a ponto de exigir do poder público a permanente pesquisa e manutenção dos sistemas de ensino, com vistas a melhorias e condições de ingresso e permanência dos estudantes nas escolas.

Diante do exposto, vemos que a escola é espaço de direito conquistado por meio de lutas políticas, legais e sociais que garantem o avanço de uma sociedade democrática e que se preocupam com o pleno desenvolvimento de seus cidadãos. A função social da escola extrapola a aplicação de conteúdos curriculares e possui fundamentos relevantes para o convívio e a socialização com a pluralidade de ideias e visões de mundo. Nesse sentido, tirar uma criança da instituição escolar e justificar com o argumento de discordância do ensino ou dos conteúdos ensinados, ou mesmo da didática que é aplicada, é uma argumentação pueril e desprovida de espírito público.

Além dos dados de escolarização da população brasileira, das leis que regulamentam a função social da escola e seu funcionamento, o terceiro argumento que apresento aqui é a desvalorização da Educação como ciência.

O governo bolsonarista desde o processo eleitoral se colocou como inimigo da educação pública. Os inúmeros ministros que passaram pela gestão MEC deixaram a marca do desconhecimento e do negacionismo, além dos escândalos de corrupção, ainda sob investigação criminal. Pautas de negação da ciência foram recorrentes durante a maior crise de saúde do país e do mundo. A apresentação desses fatos tem como finalidade reiterar que EDUCAÇÃO é Ciência e deve ser conduzida por profissionais formados.

O avanço da agenda educacional ultraconservadora, apoiada pelo governo e pelas bancadas do centrão, é costumeiramente negacionista da ciência e não faz um debate lastreado em evidências e dados de pesquisa, ou seja, essa pauta encontra eco principalmente diante dos representantes das camadas mais reacionárias da população, as mesmas que propagam a existência de ideologia de gênero, doutrinação de estudantes e a criminalização do campo progressista. Os grupos que têm defendido e apoiado projetos como esse, são os mesmos que defendem as causas baseadas em fake news e com argumentações com pouco ou nenhum lastro científico, e ampliam pautas morais e de costumes.

Logo, o ensino domiciliar desqualifica a ação pedagógica profissional, formação que é resultado de anos de estudos e pesquisas, e abre possibilidades para que familiares sem nenhum conhecimento técnico, didático, metodológico e científico conduzam a educação de crianças. Nesse sentido, a formação superior que sugere a relatora do projeto não específica que tipo de formação é necessária, ou seja, se é uma formação em Engenharia, Direito, Economia, Medicina Veterinária ou qualquer outra formação garante sobre o conhecimento de teorias, conceitos e métodos para conduzir a aprendizagem das crianças.

O ataque à educação brasileira também é feito de forma velada ao desqualificar a formação e o exercício profissional do professor, igualando a atividade profissional ao acompanhamento das famílias em casa. No limite, é a mesma coisa que dizer que os pais que possuem Ensino Superior em qualquer área são capazes de diagnosticar e medicar seus filhos, ou mesmo que a formação superior me permite advogar ou assinar projetos de arquitetura. O Ensino Superior, ou qualquer graduação, que não seja a de Pedagogia e as licenciaturas, não habilita e tampouco qualifica famílias para o processo de alfabetização, nem ensina o desenvolvimento de técnicas didáticas e metodológicas.

A escola é o espaço adequado para o processo de desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças e adolescentes e os professores são os profissionais habilitados academicamente para conduzir esse processo. A gestão do atual governo federal além de não ter nenhuma clareza das prioridades educacionais do país, insiste em ecoar ataques aos profissionais da educação. A defesa do ensino domiciliar é a negação da ciência educação, é a abertura para mais ataques e o fortalecimento do desprestigio profissional, além de negar o abismo social das famílias sem escolarização no país.

Portanto, o ensino domiciliar é um desserviço às principais prioridades educacionais de um país que já sofre com crises econômicas, políticas e sociais. Assim, o direito de aprendizagem das crianças precisa ser garantido com valorização e investimento nas escolas.

É preciso defender que a escola é lugar de vivenciar experiências, é lugar para socialização e para o convívio de diferentes opiniões e perspectivas de mundo. É nesse espaço que o desenvolvimento da identidade e das emoções são valorizados e podem ser confrontados para conviver com outros mundos possíveis, que as culturas e os saberes se encontram na mesma mesa da cidadania, e que as diferenças são valorizadas e podem conviver de forma democrática, republicana e civilizada. A escola é o maior patrimônio histórico e cultural que marca o avanço civilizatório.

Negar a escola é negar a própria história.

*Diego Moreira é professor universitário, pesquisador e doutor e mestre em Educação: História, Política e Sociedade pela PUC-SP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.