GUERRA NA EUROPA

Análise da Guerra da Ucrânia – Por Eunice Prudente e Maria Fernanda Barros

Artigo é primeira parte de uma trilogia que tratará do conflito em solo europeu que tem sacudido as relações internacionais

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Este artigo é parte de uma trilogia, portanto ainda serão publicados mais dois artigos dando continuidade aos temas aqui tratados. Antes de tecer as considerações sobre o tema proposto em epígrafe, convém fornecer alguns subsídios teóricos ao leitor que lhe permita compreender o atual cenário e os fatores que desencadearam a invasão da Rússia à Ucrânia.

Em termos organizacionais, o sistema internacional moderno é assinalado pela distribuição individual do poder entre os Estados e pelas relações de competição e conflito à luz do dinamismo histórico. Um dos grandes estudiosos do sistema, Martin Wight, enumera os seus traços característicos: a presença de uma multiplicidade de estados soberanos; o reconhecimento mútuo das soberanias; a distribuição assimétrica de poder entre Estados; a prevalência de mecanismos regulares de comunicação, o que está na origem da diplomacia moderna; uma multiplicidade de normas jurídicas, que regula o contexto dentro do qual os protagonistas da vida internacional atuam’; e a defesa de interesses comuns quanto à manutenção do sistema interestatal através do equilíbrio do poder e da segurança coletiva.

Nesta ordem de ideias, a estruturação do sistema de ordem mundial cabe às grandes potências, porque elas possuem uma ambição de escopo universal. Portanto, as grandes potências são aquelas que exprimem através do seu poderio a hegemonia de uma civilização. Desse modo, o atual sistema de ordem mundial contou com apoio decisivo dos EUA, dotados de recursos de poder suficientes para assegurá-lo.

A fundação da ONU resultou dos esforços incansáveis do presidente Franklin Roosevelt, que liderou o processo de sua criação, com o apoio das potências aliadas, vencedoras da 2ª Guerra Mundial. A ordem mundial de 1945, capitaneada pelos EUA e sob os auspícios da ONU, confia as tarefas de manutenção da paz ao Conselho de Segurança, no qual têm assento permanente as cinco grandes potências, detentoras do poder de veto (EUA, Reino Unido, China, França e Rússia). A configuração pentárquica do Conselho de Segurança põe em relevo a unanimidade dos votos afirmativos dos membros permanentes nas decisões políticas, “as chamadas questões importantes”.

Enquanto “gestoras” da Ordem Mundial, competem-lhes a simplificação da pauta decisória da vida internacional, ou seja, a inserção de temas para o debate, no Conselho de Segurança, visando descongestionar a pauta decisória, na medida em que as grandes potências administram as relações de competições, conflitos de cooperação. O exercício do poder hegemônico durante a Guerra Fria, por exemplo, desembocou no conflito Leste-Oeste. O antagonismo ideológico (entre os EUA e a ex-URSS) gerou o sistema bipolar. De salientar que as brechas do sistema permitiram a inclusão do diálogo Norte-Sul, o movimento dos não-alinhados, para citar alguns.

Apesar da Guerra Fria, a expressão política destas iniciativas diplomáticas adquiriu “legitimidade própria” no campo dos valores e contribuiu para a sustentação das reivindicações das conquistas específicas do terceiro mundo no campo econômico. Estas forças contribuíram para o equilíbrio do poder. O mundo da Guerra Fria, longe de ser estático, foi dinâmico e contribuiu para a geração de polos de poder econômico sobretudo no Ocidente e dentro dos parâmetros de segurança coletiva. Depreende-se que, durante a Guerra Fria, apesar dos perigos constantes “da folha” dos mecanismos de dissuasão, convivia-se com uma boa base de razoabilidade. Celso Lafer, com sua aguçada inteligência, afirma que, durante a Guerra Fria, o sistema internacional, apesar da complexidade bipolar, era, ao mesmo tempo, heterogêneo e rígido, mas flexível o bastante para acomodar as possíveis mudanças e assegurar uma “certa ordem” na configuração do poder mundial.

O fim da Guerra Fria, ocasionado pelo desmoronamento do império Soviético, suscitou novas inquietações sobre a “nova” configuração do poder mundial. O primeiro pós-Guerra Fria foi marcado por dois acontecimentos – a queda do muro de Berlim e a invasão americana do Iraque ou a Guerra do Golfo. Esses dois acontecimentos geraram um clima de confiança e de otimismo especialmente com relação à queda do muro de Berlim, que gerou “unanimidades” no mundo dos valores. A atmosfera otimista defendia os valores do liberalismo ligados à democracia e seguros que orbitavam em torno da universalização dos valores do liberalismo.

A vitória liberal apoiava-se na rejeição do comunismo no vazio político da Europa do Leste. A configuração das forças centrípetas propiciava os investimentos nas infraestruturas, para alavancar a economia num mundo de paz e desenvolvimento. Desenhava-se no horizonte uma espécie de voluntarismo liberal no comando dos negócios do mundo com eficiência e racionalidade. As diferenças entre o nacional e o internacional diluir-se-iam e, ao invés de fontes entre duas ordens jurídicas, surgiriam novas pontes de aproximação entre os ordenamentos estatais. A derrota de Saddam Hussein gerou falsas expectativas quanto ao funcionamento do sistema internacional e a substituição de mecanismos para agilizar os processos de tomada de decisões no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O evento iraquiano deu novos impulsos aos velhos ideais ao espalhar a crença que os órgãos decisores do sistema internacional fossem mais democráticos.

Continua...

*Eunice Prudente é jurista, professora de Direito da USP e secretária de Justiça da Cidade de São Paulo.

*Maria Fernanda Barros é mestre e doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP e professora licenciada da Universidade Zumbi dos Palmares.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.