A escola e a fome, por Luciana de Matos Rudi

"A pandemia certamente escancarou os nossos maiores problemas e temos uma chance de mudar o rumo"

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Por Luciana de Matos Rudi*

A pandemia do COVID-19 já escancarou que os mais pobres são as maiores vítimas. Cada um de nós que compreende o papel que a desigualdade social ocupa em momentos de crise, já previa isso.

Tomando como cenário o maior estado brasileiro, São Paulo, e a maior cidade, que é a sua capital, as pesquisas demonstram que o número de óbitos entre os mais pobres é significativamente superior que entre os mais ricos. Inversamente proporcional é o número de leitos nas regiões mais pobres. Em São Paulo, bairros como o Jardim Paulista tem 30,98 leitos por 100 mil habitantes, ao passo que o Jd. Brasilândia, um dos mais pobres da capital, tem 0,011 por 100 mil habitantes. A desigualdade é geral. E não esqueçamos, jamais, que são as pessoas negras as que mais sofrem. O racismo se mantém firme e forte em meio a pandemia.

Além do acometimento da doença que é mais letal entre os mais pobres, a vida entre os que permanecem sadios, é também vítima da doença: o desemprego já altíssimo antes da COVID-19, com mais de 12 milhões de pessoas desempregadas, se agravou ainda mais, somando-se aos milhões que já viviam de “bico” sem procurar efetivamente por uma colocação formal. Além disso, as medidas emergenciais tais como o auxílio de R$600,00 do governo federal demoraram demais pra serem liberadas e ainda sofrem pelos atrasos e dificuldades de cadastro e outras questões.

O plano de flexibilização geral da quarentena foi anunciada em maio por João Dória Jr. e, quase um mês depois, em 24 de junho, foi anunciado um plano de retorno às aulas.

O plano de retorno das atividades escolares presenciais, que deveria acontecer a partir do dia 04 de setembro, foi anunciado com o estado batendo recordes no número de contágio e mortes – e segue batendo novos recordes ainda nessa semana – provocando sentimentos diferentes: assustou muitas famílias com a possibilidade de retorno de seus filhos e filhas em plena crise; assustou muitos e muitas professores e professoras com o risco iminente às suas vidas nessa volta; e, por outro lado, revoltou sindicatos patronais pela “demora” no retorno.

Vale pontuar que o plano anunciado e seus respectivos protocolos de cuidados não pareceu levar em consideração os riscos a que profissionais da educação estarão expostos.

Frente a esse cenário, durante um debate promovido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o Instituto Butantan, no dia 14 de julho, o matemático Eduardo Massad, da Fundação Getúlio Vargas, afirmou que o retorno às aulas dentro desse plano tiraria a vida de 17 mil crianças.

Essa discussão levou o governador de São Paulo a, aparentemente, rever os planos. O prefeito de São Paulo Bruno Covas, também anunciou em 23 de julho em entrevista à Rádio Jovem Pan, que não há previsão de retorno às aulas.

Essa incerteza tem provocado muitas reações ao fechamento/abertura das escolas, que, no estado de São Paulo, estão com suas atividades suspensas desde 16 de março, acumulando quatro meses de quarentena. Nesse texto vou tecer minhas considerações acerca desse debate em duas direções, ainda que existam outros pontos importantes a serem discutidos.

A primeira consideração que levanto aqui, se refere às escolas particulares: logo após o anúncio do plano de retorno para agosto, o Sieeesp (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo) divulgou carta de repúdio aos planos do governador afirmando que as escolas particulares já estavam prontas para receber as crianças e adolescentes.

Sua justificativa se pauta na sempre demonização do público em detrimento do privado quando afirma: “a escola particular não pode ser culpabilizada e nem ser refém do demorado tempo das redes públicas estaduais e municipais, que ainda não estão preparadas para promover a volta dos seus alunos à sala de aula.”(Portal UOL Notícias, 24/06/2020). Ainda no que tange às escolas particulares, famílias vem negociando as mensalidades durante a pandemia, haja visto a queda nos rendimentos de muita gente. O mesmo dirigente do Sieeesp, Benjamin Ribeiro da Silva afirmou que as famílias firmaram contrato com os estabelecimentos de ensino por um ano, sendo assim, “não há o que se falar em desconto, pois não são mensalidades” (Jornal Cruzeiro do Sul, 29/04/2020)

O Sieeesp representa mais de 10 mil escolas em todo o estado com cerca de 2 milhões e 300 mil alunos, segundo dados da própria página na internet. O sindicato patronal também não considerou em seu posicionamento os riscos que as e os profissionais da educação estarão submetidos num possível retorno das aulas presenciais.

Em 27 de julho, recebi de amigos cópia de conversas num grupo de Whats’app chamado “Escolas de Sp em luta” em que os participantes conclamam os donos de escola a participarem da audiência pública na Câmara Municipal de São Paulo no dia 28 de julho para defender o interesse das pequenas e médias escolas. Um dos participantes pede para que entrem na coletiva do governo do estado, que acontecia no momento, para postarem a #voltaasaulas, porque tinha muitos comentários se opondo à volta!

Junto com essas mensagens escritas, também circula um áudio em que um homem pede carro de som e faixas com os dizeres “criança segura é na escola", "índice de abuso familiar sobe na pandemia", “crianças estão sendo alvo de agressões físicas em casa" e dizendo categoricamente para não levarem faixas que tratem dos problemas financeiros, que é o que realmente importa!!

Uma outra pessoa comenta que devem chamar os professores, porque muitos “sabem que serão demitidos se as aulas não voltarmos.” O assédio a todas e todos profissionais da educação é visível! É como se a pandemia não passasse mesmo de uma gripezinha, não alterando em nada a vida das pessoas; como se fosse possível apenas inventar um “novo normal”.

A segunda direção se debruça sobre as escolas públicas estaduais e municipais. O retorno às aulas significa caos para a maioria das pessoas que trabalham nas escolas e creches do estado de São Paulo. Os protocolos de cuidados apresentados pelo governador João Dória Jr. chegam a provocar risos nervosos em toda a comunidade escolar. Falta papel higiênico em muitas escolas, falta água, faltam funcionários para a limpeza, faltam professores e professoras, faltam carteiras, faltam salas de aula e sobram crianças e adolescentes em salas de aulas muito lotadas em diversas e diversas escolas (muitas delas de lata).

No Rio de Janeiro o prefeito Marcelo Crivella afirmou em 3 de julho que “graças à Deus, no mundo inteiro, as crianças, pelo alto nível de imunidade,  estão imunes ao coronavírus” e por isso as aulas poderiam ser retomadas.

O mais assustador para as e os profissionais refere-se às creches e educação infantil, cuja diretriz é cuidar e educar. Como cuidar de bebês sem tocá-los? Como cuidar e educar crianças pequenas (4 e 5 anos) sem tocá-las? Sem afeto? Mesmo com o percentual de 35% das crianças por dia em sala de aula, falamos em no mínimo 10 crianças com idades entre 4 e 5 anos e uma única professora (em geral é uma mulher). Como observar protocolos de prevenção ao COVID-19 desse jeito?

No entanto, os problemas para as crianças e adolescentes que frequentam a rede pública de ensino vai além do medo no retorno às aulas. O problema reside durante a quarentena também, e um problema muito grave.

Os relatos de crianças sem acesso à alimentação são diários e em todo o país. Muitas escolas tem feito contatos telefônicos com as famílias, na medida do possível, para saber como estão nesse momento. E a fome e a dificuldade financeira são reclamações presentes. As escolas tem promovido campanhas de arrecadação de alimentos desde o início da pandemia. Verbas destinadas às secretarias de educação tem sido usadas para ajudar famílias a enfrentarem a fome durante a quarentena.

Recentemente participei como convidada de uma live promovida por Carlos e Celso Giannazi, respectivamente, deputado estadual e vereador pelo PSOL, e a fala de um gestor da educação infantil me chamou muito a atenção. O educador reclamava da forma como a prefeitura de São Paulo conduziu a escolha dos beneficiários do programa “Merenda em Casa”, uma vez que a escola era a responsável pela entrega mas não sabia dos critérios, tendo que lidar com as famílias angustiadas por não serem contempladas. E sua fala seguiu na direção do papel central que a escola representa hoje em uma comunidade, local para onde recorrem todas as famílias em busca de ajuda.

No tocante à violência doméstica e casos de abuso sexual contra crianças, é também a escola que acolhe, seja a particular ou a pública.

Então, nos deparamos com o papel que a escola pública ocupa em uma sociedade desigual: o lugar que alimenta as crianças pobres, o lugar da assistência social. Mas será esse o papel da escola que queremos? Também temos as secretarias de assistência social, não temos? Como equacionar isso?

A pandemia do COVID-19 certamente escancarou os nossos maiores problemas e temos uma chance de mudar o rumo. Como faremos? A tarefa é de todos nós! Seja cobrando mudanças políticas, seja cobrando mais verbas para o social - não só à educação - ou seja pressionando pela aprovação de medidas mais efetivas ao combate à desigualdade social, temos de cobrar nossos representantes. O normal do passado era penoso aos pobres. Que o futuro possa superar isso e ser de maior igualdade social pra todos. Lutemos!

*Luciana de Matos Rudi é cientista social e doutoranda em Antropologia Social pela UFSCar.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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