A Europa precisa de uma América Latina forte, diz Haddad em artigo no Le Monde; leia a íntegra

O que torna o momento atual único é o fato do Brasil ser representado por um governo que nega o papel geopolítico da América Latina

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Por Fernando Haddad, publicado originalmente no jornal Le Monde

No mês de Janeiro, na intervenção que marcou o começo da presidência europeia de Portugal, o premiê Antônio Costa designou a Índia como parceira prioritária da União Europeia. Nesse mesmo mês, Armin Laschet, o novo líder da CDU de Angela Merkel, defendeu uma abertura pragmática em direção à Ásia. Outrora parceiros indispensáveis dos europeus, os países da América Latina parecem ter se tornado atores geopolíticos secundários. Isto apesar das tentativas, quase todas frustradas, de avançar nas negociações pelo acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.

O deslocamento da nossa região da arena internacional é incontestável. O Brasil está confrontado a um governo que sabota a luta contra a pandemia e isola o país. A ausência de diálogo entre Brasília e Buenos Aires impede o Mercosul de agir para reduzir a instabilidade institucional no Peru, na Bolívia e no Equador. Por fim, uma terrível crise política e econômica levou ao declínio da Venezuela, antigamente uma potência regional.

É importante sublinhar que as divergências ideológicas nunca foram um obstáculo à cooperação inter-regional na América Latina, pelo contrário. Sob a liderança do governo Lula, nós, junto com os nossos parceiros da América Latina e do Caribe, levamos a cabo um programa ambicioso de integração industrial e de multilateralismo. Forte e unida, a América Latina teve um papel importante na resposta internacional à crise financeira de 2008.

O que torna o momento atual único é o fato do Brasil ser representado por um governo que nega o papel geopolítico da América Latina.

Para fazer face a essa situação, que nós esperamos ser transitória, a Europa precisa restaurar a sua tradição de apoio às lutas sociais na América Latina. Ela não pode seguir mecanicamente Washington na sua política de sanções contra a Venezuela ou na Bolívia, vítima de uma intervenção inconstitucional apoiada pela Organização dos Estados Americanos. Bruxelas precisa reafirmar a sua defesa das soluções políticas regionais.

No tema do ambiente, a União Europeia precisa abordar a questão da Amazonia como uma luta pela humanidade e não apenas uma questão comercial. O discurso de Emmanuel Macron sobre a Amazônia, que suscitou uma forte reação nacionalista no Brasil, seria muito mais eficiente se a França destacasse os atores privados, públicos e sociais brasileiros que, no terreno, lutam todos os dias contra as políticas devastadoras do governo Bolsonaro.

Esse novo engajamento é do interesse dos europeus. Na sua busca para se tornar uma potência internacional, a União Europeia precisa da América Latina, com a qual ela partilha interesses estratégicos. A busca pelas nossas autonomias respectivas deve estar no coração das nossas relações.

Eu estou convencido que os sistemas políticos latino-americanos sairão reforçados deste período. A Argentina acabou de aprovar um imposto sobre as grandes fortunas para responder ao choque econômico da pandemia com igualdade e justiça social. O Chili se prepara para romper o legado da herança de Augusto Pinochet com a instalação de uma nova assembleia constituinte. Depois da Bolívia, o Ecuador está prestes a restaurar a legitimidade do seu sistema político pela via eleitoral. No Brasil, nós estamos desenvolvendo um novo projeto político para virar a página da extrema-direita. É hora dos europeus e latino-americanos se unirem para defender os princípios universalistas e republicanos.

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