A política não pode apostar na morte, por Renata Souza

Em tempo de pandemia, de 15 de março a 19 de maio, os policiais do Rio já realizaram 209 operações, resultando em 69 mortes, de acordo com relatório da Rede de Observatórios da Segurança. No mês de abril, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), foram 177 mortes por intervenção de agente do Estado

Renata Souza, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj
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Por Renata Souza*

“Sou pai e entendo essa dor”, afirmou o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, em suas redes sociais, ao lamentar o assassinato do adolescente João Pedro, de 14 anos, alvejado quando fazia isolamento social com os primos dentro de casa. O assassinato ocorreu durante uma megaoperação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no dia 18 de maio.

Diante disso, não é possível crer que o governador, homem por trás dessa lógica da morte, consiga compreender essa dor. Mesmo porque seus filhos jamais seriam submetidos a situações de violência cotidianas decorrentes de operações policiais como as experimentadas por mais de dois milhões de moradores das favelas e periferias do Rio de Janeiro. Não é possível compreender essa dor também porque ela é consequência de uma politica ineficaz, improdutiva, irracional e portanto, incompreensível.

A dor dessa perda também atingiu o pai e a mãe de Agatha Félix, 8 anos; de Jenifer Cilene, 11 anos; Kauan Peixoto, 12 anos; Kauã Rozário, 11 anos; Kauê Ribeiro, 11 anos; e Kethellen Gomes, 5 anos. Crianças assassinadas, em 2019, em razão de intervenções policiais sob orientação do único protocolo de ação publicizado por Witzel até agora, em todos os meios de comunicação: “A polícia vai mirar na cabecinha e … fogo”.

Em tempo de pandemia, de 15 de março a 19 de maio, os policiais do Rio já realizaram 209 operações, resultando em 69 mortes, de acordo com relatório da Rede de Observatórios da Segurança. No mês de abril, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), foram 177 mortes por intervenção de agente do Estado, uma média de quase seis homicídios por dia. O número representa um aumento de 43% em relação a abril de 2019. Ou seja, quando se esperava foco total em operações sanitárias, médicas e hospitalares nas favelas, o estado investiu na letalidade policial e forneceu operações policiais como prioridade de ação.

Às polícias Militar e Civil foram destinados R$ 275 milhões para execução orçamentária neste ano de 2020. Mas para perícia técnica, aquela que produz provas materiais essenciais para investigações de casos como o assassinato do adolescente João Pedro – que comprometem as próprias policiais Civil e Federal, já que a operação em questão foi em conjunto – ogoverno do Rio só disponibilizou R$ 841 mil. Tal fato corresponde a um corte de 86% do orçamento, em comparação aos mais de R$ 6,1 milhões aprovados no ano anterior à eleição de Witzel.

No caso específico das últimas operações policiais, fizemos representações ao Ministério Público Estadual e ao Ministério Público Federal e reportamos em conjunto com o deputado federal Marcelo Freixo um informe internacional para a ONU e a OEA. Sugerimos, nestes documentos, que sejam imediatamente requeridas informações ao Estado do Brasil, bem como seja solicitada a investigação célere, diligente e imparcial de cada um dos crimes denunciados; além de solicitar que ambos os órgãos instem o Brasil a adotar medidas efetivas de responsabilização, reparação e, principalmente, de garantia de não-repetição das violações.

A gestão do Estado e de qualquer política pública não pode ser definida por mera intencionalidade discursiva. É efetivada concretamente pelo aporte financeiro e orçamentário destinado à execução para determinado fim. Em plena pandemia de coronavírus, as favelas e periferias do Rio de Janeiro já reúnem o mesmo número de mortos por Covid19 contabilizado em 15 estados brasileiros, com mais de 170 pessoas mortas. E o governo do Rio está sendo investigado pelo Ministério Público em função da possibilidade de superfaturamento em equipamentos para o enfrentamento à pandemia, com dispensa de licitação. Isso custou aos cofres públicos o total de R$ 183,5 milhões. Como podemos ver, falta perícia e gestão para garantir a dignidade humana no Rio de Janeiro. Mas, mais do que isso, há a gestão de uma necropolítica econômica, uma política de morte que tem como alvo os corpos pretos, pobres e periféricos.

Enquanto a política do "abate" se mantiver, o único diálogo possível com o governador é o real enfrentamento dessa lógica e a afirmação de que ele não matará em nosso nome. E renovaremos, sempre que necessário for, uma exigência que não cessará enquanto ele não mudar radicalmente a política de segurança pública: parem de nos matar, vidas negras importam!

*Renata Souza é deputada estadual pelo PSOL no Rio de Janeiro e preside a Comissão de Direitos Humanos da Alerj