“Alô, você!” El Pibe inferniza na avenida ao desfilar pela esquerda na Sapucaí

Na Fórum Folia: Estevan Mazzuia fala da partida de Fernando Vanucci e de Maradona. Seja lá onde for, a dupla animada e irreverente, a esta altura, já pensa em colocar o bloco na rua.

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Por Estevan Mazzuia *

Salve amigos! Há 65 anos, em um ônibus de Montgomery, Alabama, a costureira Rosa Parks se recusava a ceder seu lugar para um homem branco e acabou presa por violar as leis de segregação racial da cidade. A ela dedico o artigo de hoje. 

No último domingo, assistimos ao triunfo do conservadorismo. Contudo, é inegável que o campo progressista está conseguindo juntar os cacos e se reestruturar, enquanto o bolsonarismo parece voltar a passos largos para o porão de onde conseguiu escapar em 2018. Que volte logo ao convívio dos ratos e aranhas (sem querer desmerecer os pobres animais). Aproveito para parabenizar, em especial, Guilherme Boulos, que fez uma campanha emocionante, para dizer o mínimo. O paulistano ainda prefere o político que distribui farinata para as crianças por quatro anos e cestas básicas na periferia, às vésperas das eleições. Triste evidência de memória curta e fome longa. Segue o jogo. 

Mas nosso foco aqui é samba, carnaval e alegria. Na semana que se passou, enquanto Dudu Bananinha brincava de WAR com a China (e sua esposa se metia numa saia justa com os torcedores de seu sogro), o jornalista Fernando Vanucci nos deixou. O homem, que eternizou o bordão “Alô, você!”, conseguiu ser uma rara unanimidade entre aqueles que vivem a festa popular três dias por ano e os que a vivem por 365. Uniu esporte e carnaval com habilidade incomum. Narrou os desfiles na Sapucaí, pela Rede Globo, entre 1985 e 1999. No início, alternava as funções com Eliakim Araújo, falecido em 2016. Contudo, como este (que narrava com uma animação de fazer urubu fugir da carniça) deixou a emissora, Vanucci assumiu o posto, isoladamente, tornando-se sinônimo de Sapucaí. Traído por um biscoito, foi relegado ao ostracismo. Tive a oportunidade de trabalhar durante alguns meses com ele, na extinta Rede TV, num quadro do programa dominical Bola na Rede. Um relativo sucesso.  

Outro que partiu, neste 2020 interminável, foi Don Diego Armando Maradona. O atleta, que elevou o Napoli à categoria de equipe internacional e conduziu a seleção argentina ao bicampeonato mundial, em 1986, reunia habilidade e catimba. Sua presença em campo aterrorizava os adversários. Deixou que problemas da vida pessoal interferissem em sua carreira profissional. Odiei muito Maradona. Não aquele ódio real. Um ódio rival, invejoso. Aquela intolerância à malandragem que eventualmente cruza nossas fronteiras. Um gênio nos gramados (com os pés e a mão), um homem fora dos campos. Em fevereiro de 1998, esteve em Santos, a convite de Serginho Chulapa, participando do desfile da Banda do Barril. Anos antes, chegou a ensaiar uma ida para o alvinegro praiano. Naquele ano, também esteve na Marquês de Sapucaí, onde voltaria em 2006. 

Vanucci e Maradona têm, em comum, o fato de terem sido condenados pelos tribunais inquisitórios populares, por conta de seus humanos desvios. Um incessante e exigente culto a uma inexistente perfeição, ignorando virtudes, à espera de deslizes.  

Vanucci antecipou sua partida para narrar a última de El Pibe. 

Remeto-me ao inesquecível desfile da Beija-flor, meses antes da conquista argentina, naquele 1986 “maradônico”. Com o enredo “O Mundo é Uma Bola”, de Joãozinho Trinta, e samba composto por Betinho e Jorge Canuto, a Soberana de Nilópolis fez uma apresentação antológica, sob um verdadeiro dilúvio. Em alguns trechos da passarela, a água atingia os joelhos dos foliões. Enquanto ainda sonhávamos com o tetra no México (já havíamos enfrentado a Argentina, com Maradona, em 1982, vencendo sem dificuldades), a Beija-Flor cantava: 

“Se esta profusão de cores

Sensibiliza o visual

A arte é jogar bola

Vai na Copa e faz um carnaval” 

Com duas notas 9 em samba-enredo (realmente limitado) e um 8 em evolução (convenhamos, sambar com água nos joelhos não é pra qualquer um), a escola alcançou o vice-campeonato, superada apenas pela Mangueira, em sua homenagem a Caymmi (“tem xinxim e acarajé...”). Justo. 

 A garra nilopolitana permanece viva até hoje. Se há uma escola de samba que pode se manter, única e exclusivamente, pela força de sua comunidade, essa escola é a Beija-Flor. 

 Espero que o ímpeto daquela comunidade reverbere em nossa sociedade, para que possamos ser um pouco mais complacentes com nossas Rosas, Vanuccis e Maradonas e menos coniventes com as oligarquias que usurpam o erário há 520 anos neste sofrido país. É preciso dar um basta a esse samba de uma nota só, virar o disco e descer a avenida sambando uma Bella Ciao bem brasileira. 

Como compuseram Betinho e Jorge Canuto: 

“Brasil, Brasil, Brasil, oi

Canta forte e explode de alegria

O mundo é uma bola

Girando, girando

Em plena euforia

E levando a corrente

Pra frente, pra frente

E a vitória conquistar  (...)

É milenar

A invenção do futebol

Fez o artista

Ter um sonho triunfal” 

***

Sonhar é fundamental. 

Mas que nosso triunfo seja real! 

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.