Bolsonaro, Moro, Guedes “et caterva”: “viver com dignidade não representa favor!”

Na semana em que se comemoram o Dia da Justiça, e os 73 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, relembramos o desfile da Vila Isabel de 1989

Ilustração: DGC
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

“Como são pobres os pobres, os pobres do meu país.

Na pele morena da América, ferida sem cicatriz.

Pobres de beira de estrada, e dos degraus da matriz.

Todo mundo oculta as culpas, só é maldito quem diz.

Como são pobres os pobres, os pobres do meu país.”

Com esses versos do gaúcho Luiz Coronel, a Unidos de Vila Isabel apresentava seu enredo para o carnaval carioca de 1989, no qual defenderia o título de 1988, desfile que também merece uma resenha nesta coluna.

Desenvolvido por uma comissão formada por Paulo César Cardoso, Ilvamar Magalhães e Orlando Pereira, que falecera antes do carnaval, e com o título “Direito é Direito”, o enredo celebrava os 40 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por meio da denúncia de violações a tais direitos.

A agremiação do bairro de Noel havia participado, inclusive, da abertura dos festejos promovidos pela ONU, na sede da entidade, em Nova Iorque.

Composto por Jorge King, Serginho Tonelada, Fernando Partideiro, Zé Antônio e J. C. Costa, o samba, puxado por Gera, tinha versos primorosos em sua letra:

“É hora da verdade / A liberdade ainda não raiou / Queremos o direito de igualdade

Viver com dignidade / Não representa favor

Hoje, a Vila se faz tão bonita / E se apresenta destemida / Unida pelos mesmos ideais

Lutando com a maior sabedoria / Contra os preconceitos sociais

A Declaração Universal / Não é um sonho, temos que fazer cumprir

A justiça é cega, mas enxerga quando quer / Já está na hora de assumir

Sei que quem espera não alcança / Mas a esperança não acabará

Cantando e sambando acendo a chama / E sonho um novo dia clarear

Clareou / Despertou o amor, que é fonte da vida

Vamos dar as mãos e lutar / Sempre de cabeça erguida

E quando o amanhã surgir, surgir / A flor da paz se abrir, se abrir

Será prosperidade / A brisa vai trazer mais alegria / No mundo haverá fraternidade

Direito é direito / Está na declaração / A humanidade / É quem tem razão”

Ainda na concentração, após a execução do samba campeão em 1988, foi lido um trecho da Declaração, incendiando os 4000 componentes, e o povo nas arquibancadas.

Quinze mulheres grávidas vinham à frente da escola, rogando pelo direito à vida, uma das comissões de frente mais marcantes que já passaram pela Sapucaí.

O primeiro setor fazia referência aos quatro cavaleiros do apocalipse: a peste, a fome, a guerra e a miséria, dos quais os direitos humanos tentam nos assegurar distância. Em seguida, alas reivindicavam a igualdade aos povos indígenas, bem como a homens e mulheres, sem distinção de sexo.

Componentes com uma fantasia dividida ao meio, remetendo a pobres de um lado, e ricos de outro, simbolizava o clamor por igualdade social.

A liberdade de expressão era cobrada em uma alegoria na qual saíam cobras e lagartos das bocas das esculturas. A exigência de liberdade religiosa vinha em seguida.

Os ritmistas, sob o comando de Mestre Mug, estavam fantasiados de juízes togados. Mike Biggs, ex-integrante do grupo Balão Mágico, e filho do ladrão Ronald Biggs, desfilou tocando cuíca, com apenas 14 anos de idade.

A liberdade de criação também foi lembrada. A ala que pedia o fim da censura trazia o Trio Los Angeles à frente. Quem viveu os anos 80 se lembra muito bem deles.

No carro da justiça, uma releitura de “Os Retirantes”, de Portinari, emocionou. Atrás dele, foliões representavam juízes e promotores.

A representação de um funil criticava o modelo já vigente naqueles idos, na alegoria que reclamada o direito à educação. Em uma lousa, lia-se a frase “Estamos em greve!”. A mesma frase estampava um cartaz no carro do direito à saúde, que trazia o assistente de palco Russo como destaque.

Direito à alimentação, nas alas seguintes, e ao lazer também foram cobrados. Kadu Moliterno, outro rosto bem conhecido nos anos 80, vinha à frente da alegoria que representava um botequim, trazendo Antônio Pitanga, Zezé Motta, Emílio Santiago, Sereno do Fundo de Quintal, e Martinho da Vila, entre outros.

Um tripé com a escultura de uma mãe com um filho no colo, referência à Pietá, de Michelangelo, pedia o fim da tortura, com o título “Para não dizer que não falei das flores”.

Sacomanos vinham à frente da alegoria “Ceia de Mendigos”, na qual ricos desfilavam de costas para outros lazarones, sobre uma mesa ao centro da alegoria.

Curiosamente, pouco depois, na manhã daquele mesmo 06 de fevereiro, a Beija-flor de Nilópolis traria mais mendigos para a avenida, naquele que se tornou, para muitos, o maior desfile de todos os tempos.

Outra curiosidade, pouco feliz para a Vila: um dos carros teve problema na concentração, e seus componentes tiveram que descer e desfilar no chão. Justamente a que representava o direito à liberdade. Os deuses do carnaval fizeram com que o direito à liberdade não pudesse ser exigido.

No último setor do desfile, 160 baianas vestidas de branco simbolizavam a paz. Atrás delas, uma enorme ala representava a confraternização universal, trazendo integrantes com fantasias que remetiam às bandeiras de diversos países.

Encerrando o cortejo, uma alegoria reproduzia o emblema da ONU, com o lendário Clóvis Bornay de destaque. Logo atrás, uma ala de passos marcados era o último elemento da escola.

Com 207 pontos, a agremiação conquistou um honroso 4º lugar, atrás de três desfiles antológicos: o “Liberdade, liberdade”, da Imperatriz Leopoldinense, campeã; o “Ratos e Urubus”, da Beija-flor, já mencionada, vice-campeã; e o “Festa Profana”, da União da Ilha, terceira colocada. Pode-se dizer que a Vila Isabel fez a melhor apresentação, dentre aquelas que estiveram na esfera da normalidade.

Aliás, eu já comentei por aqui que o carnaval de 1989, para mim, teve o maior desfile de todos os tempos. Maior em todos os sentidos, pois 18 escolas disputavam o título no grupo principal carioca. Não à toa, o desfile da Vila Isabel é o quarto daquele ano que aparece por aqui (já escrevi sobre o Arranco, o Jacarezinho e a Mocidade).

Esta semana comemoramos o Dia da Justiça (8 de dezembro) e os 73 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948.

É surreal ver que, para muitos, defender a vida, os índios, a igualdade entre homens e mulheres, a igualdade social, a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de crença, a liberdade de imprensa, o fim da censura e da tortura, o direito à saúde, educação e moradia, o direito à alimentação e ao lazer, e a paz universal tenham se tornado “coisa de comunista”.

Mais triste ainda é ver que, ano após ano, o único desejo de pessoas “de direita” é combater os tais “ideais de esquerda”, e quem os defenda.

Elegemos Jair Bolsonaro, que manda prender a quem o chamar de “noivinha do Aristides”, e prometia acabar com boa parte de nossos direitos, durante sua campanha eleitoral. O resultado da aventura está no bolso de todos nós, nas constantes ameaças de sanções econômicas, na recessão, no desemprego, na corrupção desenfreada e deslavada... E na lembrança de 600 mil famílias enlutadas.

Pela recepção que anda tendo a pré-candidatura de Sérgio Moro, o juiz que mandou prender o líder das pesquisas na eleição de 2018 e largou a magistratura para integrar o ministério do vencedor do pleito, mas que nega ter prolatado a sentença com interesses políticos por trás de seu julgamento, nada aprendemos. Moro já posou com chapéu de couro (e camisa polo, óbvio) e, em breve deverá degustar um bom pastel com caldo de cana, ou um sanduíche de mortadela, iguaria da qual ele desconhece até a cor. O “mais do mesmo” continua seduzindo aquele eleitor que viajava de avião no começo do milênio, fazia churrasco todo final de semana, e agora cozinha osso no fogão a lenha, cheio de medo de que o Brasil vire uma Venezuela.

Em que momento da história o bonde deu essa derrapada? Como foi que deixamos que isso acontecesse?

São perguntas cujas tentativas de elaboração de respostas ficarão a cargo das próximas gerações.

A nossa, definitivamente, parece condenada a aplaudir toda essa balbúrdia promovida pela farândola à qual entregamos o destino de nosso sofrido Brasil.

Que pena que o desfile da Unidos de Vila Isabel ainda seja, 32 anos depois, tão atual e necessário.

“Sei que quem espera não alcança, mas a esperança não acabará.

(...)

Vamos dar as mãos e lutar sempre de cabeça erguida”.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.