Com mais de 314 mil mortes, ameaças à democracia não param – Por Juliana Cardoso

Para vivermos a plenitude da democracia e não aceitarmos o retorno da ditadura, não bastam notas de repúdio.

Foto: Agência Brasil
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“General, o homem é muito útil

Ele sabe voar e sabe matar

Mas tem um defeito:

Ele sabe pensar”

(Bertold Brecht)

Por Juliana Cardoso *

Sancionada há seis anos, a Lei da “Semana Municipal de Reflexão sobre o Significado do Golpe Militar de 1964”, de nº 16.146/2015, propõe que a última semana do mês de março seja dedicada a repensar o significado do golpe de Estado ocorrido no Brasil há quase seis décadas. A proposição foi apresentada originalmente por nosso mandato e aprovado na Câmara Municipal.

Apesar de criada seis anos atrás, a lei continua atual diante da maior crise desde os anos 70, abalando a República e, em especial, as Forças Armadas.

A proposta de criação da Semana é perpetuar a memória do período “de chumbo” da História brasileira e, por seu caráter simbólico e pedagógico, trazer conexão com os dias atuais, sobretudo para que os fatos não caiam no esquecimento das próximas gerações, e estes, por sua vez, se comprometam com os valores da democracia.

Passados 57 anos do golpe civil-militar que destituiu o então presidente eleito João Goulart, e após 36 anos do retorno do país ao Estado Democrático de Direito, a pergunta que persiste é: a poeira cobriu essa fase da História? Certamente não. O fato é que, por mais espantoso que possa parecer, ainda existem defensores saudosos do Regime Militar. Eles são minoria, mas não poupam as novas gerações de suas propagandas mentirosas nas redes sociais e até mesmo nas ruas.

Há algum tempo, as forças reacionárias tentam reescrever a História, negando a existência da Ditadura. Ignoram os 475 mortos e desaparecidos reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, além do extermínio de mais de mil indígenas. Foi um período em que nossos antepassados foram obrigados a se exilar para escapar do horror e da morte.

Existe alguma razão para aplaudir uma página da nossa História na qual foram suprimidos os direitos de reunião, em que a liberdade de expressão era controlada, na qual vigorava a censura à imprensa, que as manifestações artísticas tinham de ser submetidas ao crivo de censores e que as violações aos Direitos Humanos viraram regra? Uma página em que o povo não podia eleger presidente, governador e prefeitos nas capitais?

Como se não bastasse, até hoje existem mensagens que enaltecem os governos militares, associando-os ao sucesso no campo econômico. Mas não custa recordar alguns números e fatos.

Em 1964 o salário-mínimo era o equivalente a R$ 1.232. Em 1983, seu poder de compra foi reduzido para R$ 563, em valores atuais. O Brasil da Ditadura Militar viveu crises de estagnação econômica como o da hiperinflação. Em 1979, indicador chegou a 77% e em 1984 o índice chegou a 223%.

Há ainda os que repetem falsos mantras, insistindo na afirmação de que no período não havia corrupção. Mesmo sob censura, a imprensa conseguiu registrar grandiosas obras sob suspeita de superfaturamento, como a Ponte Rio/Niterói, a Hidrelétrica de Itaipu, a Transamazônica e a Paulipetro.

A escalada recente da extrema direita, respaldada na ala militar conhecida como “linha dura”, e que foi contrária à abertura do regime no começo dos anos 80, se intensificou com atitudes golpistas contra a democracia.

Ataques à Democracia Além da negação da ciência, essas forças reacionárias que se guiam pelos valores do ex-capitão do Exército querem abolir o termo “ditadura” da História, ao mesmo tempo que fazem ameaças explícitas com medidas autoritárias para lograr um Estado policial.

Durante a campanha eleitoral de 2018, o deputado federal Eduardo Bolsonaro afirmou que não precisava de jipe, bastava um soldado e um cabo para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Depois, em 2019, com o pai na Presidência, o mesmo indivíduo, conhecido como “02”, defendeu a reedição do AI-5 caso a esquerda “radicalizasse”.

Não faltaram outros episódios. No ano passado, Bolsonaro se fez presente em atos antidemocráticos de seus apoiadores em Brasília, pedindo o fechamento do STF e contra o Congresso Nacional.

Os ataques às instituições e ao Estado Democrático de Direito não cessaram até hoje. Cinco ativistas foram detidos na semana passada por exibirem cartazes que diziam “Bolsonaro Genocida”. Rodrigo Pilha, um dos manifestantes, continua preso até hoje. Antes, o cartunista Renato Aroeira sofreu ameaças de ser enquadrado na famigerada Lei de Segurança Nacional por uma charge. O youtuber Felipe Neto também sofreu com uma ação policial por ter publicado um tuíte associando Bolsonaro ao genocídio. Não é para menos. O país registra, com tristeza, mais de três mil óbitos diários na pandemia.

A mais recente ameaça de Bolsonaro foi decretar Estado de Sítio, se contrapondo ao toque de recolher determinado pelos governadores para conter a transmissão do novo coronavírus. Ameaça desmentida após ser cobrado pelo presidente do STF, Luiz Fux.

Enquanto resistimos às escaladas autoritárias, assistimos atônitos aos mais de 315 mil mortos pela Covid-19 no Brasil, muitos dos quais por incúria do governo federal.

Muitas perdas poderiam ter sido evitadas. Neste momento de muita dor, não há como se conformar com tantas mortes e nem naturalizar esse autoritarismo.  

Para vivermos a plenitude da democracia e não aceitarmos o retorno da ditadura, não bastam notas de repúdio.

O vírus do golpismo tem que acabar!

* Juliana Cardoso é vereadora (PT) e vice-presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de São Paulo.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.