É tudo complô: o discurso do abusador que nunca tem culpa, por Maria Carolina Medeiros

O homem de bem, de conduta ilibada, coitado, está sendo vítima de um complô para difamá-lo. Sim, até nesses momentos a autoestima de pensar que tudo é sobre ele permanece.

Escrito en DEBATES el

Por Maria Carolina Medeiros *

A atriz Dani Calabresa puxou o fio e outras mulheres se encorajaram para denunciar Marcius Melhem por abuso e assédio moral e sexual. A TV Globo o demitiu sem dar mais detalhes e proíbe funcionários de comentarem o caso. A Revista Piauí foi atrás e jogou luz em mais uma história de homem em posição de poder abusando de mulheres. A matéria explica tudo. O que eu quero comentar é outra coisa.

Não dou voz a abusador, mas a forma como ele se defende é simbólica para entendermos como a responsabilidade nunca é do homem. Ele sempre é vítima de um mal-entendido, ou de um jogo para boicotá-lo. Neste caso, Melhem diz que a culpa de agarrar Dani é porque “ela tava muito gostosa”.

Como no caso de Mariana Ferrer, de Ângela Diniz e de tantas outras, o “default” é o homem pintado como “cidadão de bem”. Principalmente se for branco, heterossexual, de classe média alta e não se enquadrar no estereótipo de estuprador/homicida construído no imaginário popular. É frequente usar a justificativa em casos de estupro de que “o homem não precisa disso”, como se estupradores fossem homens que não conseguem ter sexo consentido e por isso estupram. Se cometem crimes, certamente é por culpa das vítimas que, quando não mentem, seduzem, ou queriam, ou então estavam pedindo por aquilo.

Em resposta à Piauí, Melhem se defende com a defesa mais velha que existe: “qualquer pessoa que tenha convivido comigo sabe...”, na clássica apelação à reputação e ao relacional como defesa de conduta. “O único objetivo está sendo bem-sucedido: a minha condenação na opinião pública”. O homem de bem, de conduta ilibada, coitado, está sendo vítima de um complô para difamá-lo. Sim, até nesses momentos a autoestima de pensar que tudo é sobre ele permanece.

“Quero pedir desculpas às pessoas que eu magoei”. “O mundo mudou, comportamentos antes naturais estão sendo revistos e todos precisamos aceitar as consequências de nossos excessos”. Sim, ele disse “magoou” e “excessos”. É uma vítima de um mundo que se tornou chato com o politicamente correto, não é mesmo?

“Estou disposto a assumir qualquer erro ou dano que tenha causado. Mas é preciso que a conversa seja transparente, sem omissões, mentiras ou distorções sobre as relações”. Sim, é mesmo tudo sobre ele, se cometeu algum crime foi apenas “um erro”. Pobre vítima que ele é da tentação de conviver com mulheres, essas provocadoras gostosas que desde Eva tentam o homem.

Em tempo: a excelente matéria foi escrita por um homem, João Batista Jr. Podemos ter aliados.

*Maria Carolina Medeiros é doutoranda em Comunicação na PUC-Rio e pesquisa narrativas sobre mulheres.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.