Enfrentando a tristeza: Quando a pandemia acabar vai ter… Ah, vai!

Chega! Fui asfixiado pelo horror das pilhas de mortos. Hoje, pelo menos hoje, vou ignorar a tristeza e sonhar o devaneio dos inocentes. Nossa vida verdadeira está nas marcas indeléveis de hábitos bobos e corriqueiros, na banalidade fundamental do ser e do existir.

(Foto: Pixabay)
Escrito en DEBATES el

*Por Henrique Rodrigues

Entrar pela porta do bar dando um grito de saudação, ininteligível, daqueles que fazem todos ao redor olharem quem chega. Cumprimentos esfuziantes, abraços, tapas rijos nas costas.

“Comé que cê tá? Firme?”.

Encontrar a mãe, o pai, um irmão. Apelar às brincadeiras familiares tão íntimas que só produzem sentido para quem é dos nossos. Sentir o cheiro. Os lares têm cheiro. Um cheiro que orienta nossa existência.

A gente tem que viver o amor de cada manhã, com o nosso amor.

Levar um filho para pedalar nas praças, num balé desengonçado que enche de orgulho os babões com brilho nos olhos, que veem na prole a perpetuação do sangue e que nela espelham seus sonhos e desejos.

Eu vou sair por aí, de moto. Vento batendo no rosto por baixo do capacete na estrada. O cheiro do diesel a cada ultrapassagem dos veículos pesados. A umidade da grama e da vegetação lateral à pista. A sinfonia de sons dos carros conduz e nos ajuda a conduzir.

Eu quero entrar nas lojas só pra perguntar o preço. Quero a gritaria dos estádios lotados, coliseus contemporâneos que nos tiram a racionalidade. Preciso reclamar do sujeito fedorento com quem divido o elevador.

Eu quero esculhambar fascista cara a cara, não é pela internet, não.

E a velhinha espanhola de 113 anos que se curou do vírus mortal? É, María Branyas, 113 anos. O ser humano mais velho da Espanha venceu a 1ª Guerra Mundial, a Gripe Espanhola, a Guerra Civil, a 2ª Guerra Mundial, 36 anos de ditadura franquista, viu seu pai morrer num surto de tuberculose a bordo de um navio e ter o corpo lançado ao mar e agora derrotou a peste moderna. Fiquei de olhos marejados vendo aquela mulher, uma rocha da civilização, forte e otimista.

Sejamos todos María Branyas.

Eu vou abrir uma latinha de cerveja ainda na porta do mercado. Quero fazer isso. Uma golada profunda e a acidez do malte descendo pela boca, bem frio, recém-saído da geladeira. Eu quero o pastel do Xoxó, velho em sua essência, de ontem. Óleo fixado na crosta saborosa. Nada é antigo onde o ambiente é justa e irremediavelmente antigo.

Nada é ruim onde intrinsecamente vivem nossos corações. E eles vivem nos abraços calorosos dos amigos, na intimidade e no amor da família, nos botequins onde entramos a gritar pelo dono, pedindo para ele colocar aquela gelada de sempre.

A maldade dos genocidas inclementes sempre caminhou lado a lado com a humanidade, destruindo o pouco de humanidade que há dentro nós. Eu não quero me amedrontar nem um minuto mais com isso.

Chega! Fui asfixiado pelo horror das pilhas de mortos. Hoje, pelo menos hoje, vou ignorar a tristeza e sonhar o devaneio dos inocentes. Nossa vida verdadeira está nas marcas indeléveis de hábitos bobos e corriqueiros, na banalidade fundamental do ser e do existir.

Que sofrimento intenso, agonia desmedida. Fomos privados do que realmente somos e da vida que amamos. Do dia pra noite, num golpe repentino e covarde, privaram-nos de sermos o que somos.

Maldita doença. Praga do Egito da era digital que nos desamarrou e apartou de tudo aquilo que pulsa forte aqui dentro e dá sentido para seguirmos em frente. Só que esse cárcere não será eterno. Caberá aos viventes do pós-morticínio valorizar da forma mais enfática e rasgada nosso apreço pela liberdade. O bicho nos tranca em casa, faz-nos tremer, titubear, só que não nos faz deixar de sonhar.

Quem diria que um aperto de mão, um cheiro de mãe, um abraço de filho, um colar de rostos com nossa amada, ou um gole de cachaça nos fariam recear por nossas vidas e pela vida dos outros?

É imperioso que construamos um rumo, onde não haja mais a apatia e a indiferença reinante. Uma rota nova, como nos versos do poeta e dramaturgo espanhol Antonio Machado, homem perseguido, em seus ‘Proverbios y Cantares’ .

“Caminante, no hay camino… Se hace camino al andar”.

*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira.

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