Esquerda reativa é adversária que a direita pediu aos CEOs – Por Flavio Lobo

Não desmontar a oposição entre igualdade e liberdade é se render a uma visão de mundo e da vida que exclui sermos efetiva e igualmente livres

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Por Flavio Lobo

“Ser livre é decidir fazer uma coisa mesmo quando seus pais querem que você faça.”

Essa ideia, que ouvi há muito tempo e não me lembro mais da fonte (o psicanalista Erich Fromm, talvez), aponta para dois modos de não ser livre: obediência compulsória e desobediência reativa.

Não sou livre se vivo fazendo – ou tentando fazer – o que outros querem que eu faça. Mas a minha liberdade é também muito limitada se minhas decisões se pautam por contrariar o desejo alheio. Nos dois casos, a referência central é o querer de outra pessoa.

Em situações nas quais não estou diante de ordens diretas e explícitas, não é nem a vontade alheia que me guia (o que faria de mim uma espécie de hardware a serviço de um software invasor – um vírus!). Na maior parte do tempo, na verdade, sou guiado pelo que imagino ser o que querem ou esperam de mim. Sou dirigido pelos “outros em mim”.

Fazer algo mesmo que queiram que eu faça significa que não me sinto obrigado a fazer o que querem nem sou compelido a não fazer ou a fazer o oposto para contrariar. Não tenho o desejo do outro como referência central para as escolhas da minha vida. Não preciso obedecer nem reagir em sentido contrário. Meu campo de escolhas é mais amplo. Sou mais livre.

“Ah... Eu não queria mesmo”

Claro que há muitos tons de cinza no espectro político-ideológico, mas o preto e branco, aqui, permite ir mais direto ao ponto, facilita a expressão da ideia.

Ao me posicionar à esquerda no campo político-ideológico, me contraponho aos poderes e à ordem dominantes. Sou contra o mando capitalista. Não quero seguir sua lógica, me adequar ao sistema. Quando sigo e me enquadro é a contragosto, por falta de alternativa.

“Viver é muito perigoso”, já disse Riobaldo, personagem-narrador de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Trata-se, então, de escolher o tipo de perigo que iremos correr. O risco que vem com a rebeldia – esse valioso impulso de transformação –, sobretudo quando ela não gera mudanças estruturais, é cair, e ficar, na armadilha do “reativismo”.

Frequentando sites, perfis e canais midiáticos de esquerda constatamos que parte considerável do seu público rejeita um pacote simbólico e discursivo que considera “de direita” incluindo as cores e a bandeira nacionais, a defesa da família, menções a Jesus e a valores cristãos, a colocação da corrupção entre as principais denúncias contra adversários político-ideológicos verdadeiramente corruptos.

Me pondo no lugar de um ideólogo da direita, imagino a satisfação diante dessa ampla rendição, que, tomada em conjunto, equivale a inviabilizar vitórias consistentes no front da hoje tão famosa “narrativa”. Imagino a delícia do trapaceiro diante de um interlocutor que, ao não disputar palavras-chave do xadrez discursivo, legitima mentiras e manipulações.

Definir as palavras-chave é ganhar o jogo

A direita vende e entrega a independência da nação, os recursos do país, os interesses e direitos do povo, mas diz que os símbolos nacionais lhe pertencem. Pauperiza, abandona e brutaliza a maior parte das famílias, mas se apresenta como sua defensora. Promove valores e práticas frontalmente antagônicos à ética de Cristo e dos Evangelhos, mas tira onda de cristã. Tem na espoliação sistemática dos recursos e riquezas da humanidade e do planeta sua marca registrada, mas posa de moralista. Concentra riqueza obscena, muito além da escala humanamente desfrutável, para uma ínfima, sociopática minoria, mas enche a boca para falar de equilíbrio e austeridade.

Ao não desmontar essas mentiras deslavadas desde suas bases vocabulares, a esquerda ajuda a endossar todas elas. Cada uma dessas falácias aprisiona aspirações humanas, sociais e históricas, por isso são politicamente eficazes quando mobilizadas, mesmo que de modo enganoso.

Não disputar o sentido dessas palavras e ideias é entregar a semântica da vitória ideológica ao adversário. É o que faz a parte mais reativa da esquerda ao dizer (falando, agindo ou se omitindo): bandeira do Brasil, Jesus Cristo, combate à corrupção, proteção às famílias, segurança pública são coisas “deles”, da direita. Não! Essas são do nosso povo. São nossas. E precisam ser muito mais nossas. Precisam ser pra valer.

O drible tosco da meritocracia

Um exemplo de trapaça que grande parte da esquerda insiste em comprar da direita – caindo sentada no gramado, como se enfrentasse gênios das palavras, Garrinchas ideológicos – é o da meritocracia.

Há mentira mais esfarrapada do que se dizer defensor sistemas baseados no merecimento individual ao mesmo tempo em que inviabiliza oportunidades, condições de formação e desenvolvimento pelo menos comparáveis para todas as pessoas?

Meritocrata honesto tem como primeira meta prover boa nutrição, saúde, proteção e educação para todas as crianças e jovens.

Os nossos supostos meritocratas são exatamente os caras que inviabilizam, política e economicamente, a paridade de oportunidades. São os que mantêm e agravam a desvalorização e o desmonte tanto dos serviços públicos universais quanto de políticas compensatórias para grupos historicamente desfavorecidos.

Diante dessa mentira despudorada, o que faz, em geral, a esquerda? Aponta a vigarice de quem a propaga? Diz: não me faça rir... meritocratas somos nós, defensores do SUS, de programas de elevação de renda dos mais pobres, educação pública, cotas universitárias etc.? Não. Diz que meritocracia é coisa da direita. E que, portanto, nós da esquerda somos contra.

O que será, então, que pensa e sente o povo batalhador, sabendo que merece muito mais em salários, serviços e respeito do que recebe, ouvindo a esquerda rejeitar uma palavra que promete o reconhecimento do mérito das pessoas? Depois a gente não entende como é que pode haver pobre de direita.

Não se trata de reproduzir o individualismo egoísta da direita – que, além da pequenez ética e existencial, 99% das vezes só favorece mesmo que já está em vantagem. Trata-se de não cair em armadilhas óbvias, de não permitir que a reatividade em face do adversário atinja o patamar da espessa (... digamos) obtusidade.

Igualdade ou liberdade?

Outro exemplo de aceitação fatal da lógica do adversário é topar o esquema de síntese ideológica segundo o qual ser de esquerda é valorizar e buscar igualdade, enquanto a direita se caracteriza pelo imperativo da liberdade.

Ser de esquerda é, sim, não abrir mão da igualdade como valor – e verdade – fundamental. É saber, nas entranhas, que uma pessoa explorada, expropriada, faminta, abandonada, brutalizada ou assassinada, qualquer que seja seu nome, cor, gênero, religião, nacionalidade é igual a mim. É reconhecer os filhos dos outros como filhos da humanidade, que devem ter os mesmos direitos que os meus próprios filhos. A esquerda precisa mesmo nortear suas concepções e a práticas políticas por esse saber ético-existencial.

Mas a aspiração e a potência maior que a igualdade fundamental gesta é a liberdade. Desprovida dessa expansão inventiva, feita de surpresa, sonho e desejo, a igualdade fica susceptível a compreensões redutoras, rebaixadas, meramente disciplinares, de conformação uniformizante.

Aceitar esse esqueminha de valores-chave da esquerda e da direita é ficar com uma igualdade apequenada e limitadora, entregando discursivamente o campo ilimitado onde cabem todos os desejos (outro jeito de se referir à liberdade) a um adversário que, essencialmente, nas horas do vamos ver, rebaixará sua defesa da liberdade ao “livre mercado acima de tudo” (uma mentira dentro de outra, pois há liberdades mais fundamentais e o mercado assim defendido está longe de ser livre), mas vencerá o duelo ideológico pela energia da palavra que lhe concedemos.

Não desmontar a oposição entre igualdade e liberdade é se render a uma visão de mundo e da vida que exclui sermos efetiva e igualmente livres.

“Somos iguais sendo todos diferentes. É isso que me deixa contente.” Novamente, uma lembrança que me vem sem certeza da autoria nem do fraseado original (seriam versos do poeta-político Chico Alencar?). Seja qual for a fonte, a ideia expressa é a da igualdade libertária. Concepção que supera a ideia de “tolerância” diante da diferença. Trata-se de celebrar e fruir a diversidade e o campo de liberdade compartilhada onde ela floresce. Para cultivar e expandir esse jardim em cada um e entre nós, não podemos cair no conto do vigário que almeja inviabilizar a sacrolaica aliança entre igualdade e liberdade.

Hora de correr riscos novos

Em tempos de "normalidade democrática", o reativismo é um problema crônico que dificulta avanços consistentes e resistentes na cultura política mesmo quando progressistas vencem eleições e governam. Já em momentos como o que vivemos, em que uma extrema-direita fascistóide busca derrubar a democracia liberal para realizar seu projeto ditatorial, a insistência nesses erros – que combinam discursos e práticas – pode ser fatal.

Acolher e manter o olhar e o querer mais frescos, menos formatados, da infância e da juventude, com sua potência para o novo, é vital para os que desejam transformar. É importante, ao mesmo tempo, lembrar que essa vitalidade, quando ferida, pode se tornar reativa. Quando isso acontece, é hora de encarar o senso de realidade, o pensamento estratégico e os riscos do amadurecimento. Sem perder jamais a meninura que em nós enxerga o novo e nele se aventura.

PS: o título deste artigo é uma homenagem ao cabo Dominguetti, esse enviado do céu da Davati para nos salvar, pelo riso, da sombria rotina nacional destes dias.

*Flavio Lobo é jornalista, militante da causa da realização dos direitos humanos, especialmente da pacificação da chamada “guerra às drogas”.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.