Marxismo, Crise e Pandemia: uma conversa com o filósofo e escritor Yuri Martins-Fontes

A entrevista, realizada por meio telefônico e escrito, foi dividida em dois momentos. Nessa primeira parte, o filósofo faz uma análise sobre a trama conjuntural brasileira, abordando os desafios dos socialistas hoje. Além disso, traz uma interpretação específica da crise estrutural, tendo como mote as formulações de Marx sobre a Teoria do Valor

Yuri Martins-Fontes
Escrito en DEBATES el

POR YAN VICTOR*

Parte 1

A pandemia encontrou um mundo atravessado pelo conflito de classes. No Brasil, o índice crescente de desemprego e a precarização do trabalho impedem as classes sociais mais baixas de fazer o isolamento social e permanecer em casa na quarentena. Com o objetivo claro de colocar o lucro acima da vida humana, as classes dominantes e o governo Bolsonaro mantêm uma política destrutiva que abertamente coloca trabalhadores e trabalhadoras na fila do matadouro. Nesse momento, o isolamento social se choca com as condições materiais de existência. Como pagar o aluguel, água e luz? Deixar o trabalho e ficar sem comer?

Nunca esteve tão claro que quem produz riquezas são as classes que trabalham. Essa constatação coloca em relevo a atualidade da obra marxiana e marxista. Acaso as máquinas produzem sozinhas? Retomando economistas como David Ricardo, Marx descreve em sua Contribuição à crítica da economia política que por trás do lucro está o trabalho. Indo além, Marx revela que o capital só se desenvolve a partir da força de trabalho. Sobretudo nos capítulos 11, 12 e 13 de O Capital, temos um processo histórico que vai da cooperação simples, manufatura e divisão social do trabalho, até a grande indústria e maquinaria. Nesses capítulos, além do conceito de “trabalhador coletivo”, Marx desenvolve uma análise profunda demonstrando que não se trata apenas da maquinaria e dos objetos de trabalho, mas das relações sociais. A divisão social do trabalho operada na manufatura subordina o trabalho autônomo dos artesãos, e cria condições para o desenvolvimento da maquinaria.

Esse desenvolvimento que amplia a divisão social do trabalho, apropria-se do trabalho autônomo e, por conseguinte, concentra trabalhadores sobre o comando de um único capitalista, opera a mais crassa contradição. O trabalhador não domina mais o processo de trabalho e começa a degradar-se material e espiritualmente no processo de apropriação coletiva (subsunção real). Na perspectiva de Marx, na indústria moderna temos a redução do tempo de trabalho necessário e a reprodução ampliada da força de trabalho, para assim, ampliar o tempo de trabalho excedente: o mais-valor.

Ora, qual a atualidade da teoria marxista do valor? E qual a sua relação com a conjuntura brasileira? Para falar sobre esse tema, convidamos o filósofo marxista e escritor Yuri Martins-Fontes.

Yuri é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, com estágio no Centre National de la Recherche Scientifique; tem pós-doutorados em Ética Marxista, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, e em História, Cultura e Trabalho, pela PUC-SP. Publicou recentemente os livros: Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda/Fapesp, 2018), e História e lutas sociais: a classe que trabalha em movimento (EDUC, 2019). Organizou e traduziu obras importantes ao marxismo contemporâneo, como a antologia Defesa do Marxismo: polêmica revolucionária e outros escritos, do pensador andino José Carlos Mariátegui (Boitempo, 2011); e o livro ensaios e fotografias históricas Revoluções, coordenado por Michael Löwy (Boitempo, 2009). É pesquisador associado ao Laboratório de Economia Política e História Econômica da USP, e atualmente coordena o Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política da USP.

Exerce também atividades como ensaísta, educador e jornalista, colaborando com diversos canais críticos e independentes do Brasil e da América Latina. É colunista da Revista Fórum e da Agencia Latinoamericana de Información.

A entrevista, realizada por meio telefônico e escrito, foi dividida em dois momentos. Nessa primeira parte, o filósofo faz uma análise sobre a trama conjuntural brasileira, abordando os desafios dos socialistas hoje. Além disso, traz uma interpretação específica da crise estrutural, tendo como mote as formulações de Marx sobre a Teoria do Valor.

Em sua segunda parte, a entrevista trará reflexões sobre Marxismo e América Latina, além de Literatura.

PANDEMIA e CRISE

1. Yuri, inicialmente gostaria de agradecer a disponibilidade de ceder essa entrevista. Começaria com uma pergunta ampla: como você avalia o governo Bolsonaro e os desafios da conjuntura brasileira para a esquerda hoje?

Agradeço a gentileza do convite, Yan. É bom voltar a conversar com você, após nosso interessante debate no Norte de Minas Gerais, ano passado. E antes de tudo, um abraço aos amigos do MST e do Partidão mineiro.

Bolsonaro é um dos frutos mais podres do golpe de 2016, este golpe em nova roupagem, gestado ao longo de anos pelos principais poderes conservadores do país: o Congresso amplamente fisiológico; um STF medieval montado em privilégios; uma elite econômica sem-vergonha, inculta e ambiciosa, formada em sua quase totalidade por sonegadores, industriais que quando pagam algum imposto são quantias irrisórias; e uma imprensa corporativa porta-voz dessa desonestidade geral nacional, especialmente as grandes irmãs Globo, Abril, Estadão e Folha – imprensa suja cujo trabalho foi convencer paulatinamente a população de que o PT havia sido o “inventor” da corrupção no Brasil, ainda que o próprio TSE mostrava que, dentre os grandes partidos que têm chance de chegar ao poder, o PT era o mais limpo. Aí o resultado…

Hoje, a miséria voltou a assolar o país, que tinha saído do mapa da fome, e estes criminosos começam a verificar que suas tantas manobras não lhes serviram a seus propósitos: também eles estão tendo fortes prejuízos com sua tática de terra arrasada.

Para eles era “tudo menos o PT”, tudo inclusive o fascismo. O que importava aos neoliberais era passar com celeridade as contra-reformas, retirar direitos sociais em nome da manutenção de seus lucros mesmo em época de crise mundial. Assim, na falta de apelo popular dos seus discursos datados, pensaram que poderiam controlar o atual idiota do Planalto, e que “apesar dos pesares” eles obteriam suas tão desejadas demandas antipopulares: o fim dos direitos trabalhistas, da aposentadoria, dos sindicatos críticos…

Porém o fascismo tem um elemento de irracionalidade que é sempre uma ameaça aos negócios dos mercadores; se tivessem estudado mais história, talvez fossem menos tolos, e o prejuízo, deles e do povo, menor.

O fascismo – como Mariátegui e outros pensadores já o mostraram há quase um século – é a roupagem antidemocrática do capital para tempos de crise, quando o capitalismo não consegue mais se manter em seu discurso “liberal”, nem se fingir “democrático”. Em seu ensaio “Crisis de la democracia”, originalmente parte do livro La escena contemporánea, de 1925, e incluído na edição brasileira de suas obras que organizei, Defesa do marxismo: polêmica revolucionária e outros escritos(Boitempo, 2011), Mariátegui entende o fascismo como a expressão insana de uma classe dominante que já não se sente protegida por suas instituições pobremente democráticas.

Porém, os neoliberais brasileiros, ao provocarem a polarização, perceberam-se sem forças para derrubar a centro-esquerda socialdesenvolvimentista em 2014, e não querendo voltar atrás, tiveram de optar pelo risco do irracionalismo fascista. Eles apostaram e todos perdemos.

Os prejuízos econômicos já estão dando mostra de que o plano de domar a besta para passar as contra-reformas fracassou, e que a estupidez de Bolsonaro e seus asseclas é tamanha que atenta contra os lucros seguros que mantinham outrora – mesmo sob os governos de conciliação do lulismo.

Os desafios do campo progressista são muitos, a começar por derrubar este louco que já passou de todos os limites, até mesmo para tocar os negócios que o capital esperava que tocasse, e por isso está fragilizado e ao que parece começa a cair.

Por outro lado, um governo de conciliação horizontal, como foram os de Lula e Dilma, já não são mais possíveis naqueles moldes. Seria muita tolice aceitar um traíra como Temer novamente para se sentar ao lado.

É preciso uma unidade do campo progressista, sem esse necrosado “centrão” – fisiológico, velho regime sempre morto, mas nunca enterrado.

Mas para tanto, esse projeto de novo país tem de ser respaldado pelos movimentos sociais, pelas massas trabalhadoras. Pois somente assim, o fato de se ascender ao governo poderá significar realmente deter um poder capaz de transformar as estruturas – um poder suficiente para que o campo socialista possa governar com efetividade, com hegemonia, sem se submeter a supostas alas “progressistas” burguesas.

E este me parece o maior erro lulista: ainda que socialmente os governos Lula e Dilma tenham realizado reformas de alta urgência, que fizeram do Brasil por uma década um país minimamente humanizado, minimamente respeitável diante do mundo, contudo, o Partido dos Trabalhadores se afastou de suas bases, das massas populares que o elegeram. E isto teve por resultado que, enfraquecido frente a uma grave crise econômica mundial, atacado desonestamente pelas alas mais reacionárias – que sempre estiveram nas entranhas do poder, ainda que por alguns instantes mais caladas –, o lulismo não conseguiu fazer que suas transformações sociais se tornassem “estruturais”; não valorizou a força política das ruas; achou que dava para humanizar o país só no diálogo.

Em suma, o PT confiou demais na mansidão desta nossa elite que é uma das mais reacionárias e violentas do mundo – não à toa somos um dos mais desiguais países do planeta.

Conforme discuto no livro Marx na América (p.60 e ss.), Mariátegui e Caio Prado defendem como necessárias ao processo revolucionário certas reformas de urgência, reformas básicas que promovam a reumanização de estratos completamente excluídos da sociedade – algo como as reformas iniciadas pelo lulismo. Porém – e ambos os autores marxistas põem muita ênfase nisso –, a condução dessas reformas, para que tenham efetividade e não se percam ao primeiro ímpeto golpista (como está se dando agora), tem que ser feita pelos próprios partidos progressistas populares, ou socialistas no sentido amplo do termo.

2. Yuri, em seu ponto de vista, o que faltou aos governos petistas para conseguirem ter aprofundado estas mencionadas “reformas de urgência”? Você poderia nos falar um pouco mais sobre como Mariátegui e Caio Prado entendiam esta questão?

Não se pode permitir que eventuais apoios pontuais, de uma parcela menos irracional da burguesia em crise, sirva-lhes de trampolim para que assumam as rédeas, dirigindo o sentido e o ritmo das mudanças. Mas como se viu, o PT perdeu esse comando ao não ousar pôr na pauta do dia: a democratização da imprensa (ainda dominada por corporações porta-vozes da elite, que liderariam o discurso e propaganda prévios ao golpe neoliberal de 2016); a reforma tributária (como a luta pelo imposto mais óbvio que deveria haver sobre as imensas fortunas, em um país no qual o pobre chega a pagar quase metade de seu salário em impostos de consumo básico, enquanto os maiores magnatas, sonegadores, não contribuem sequer com 10%, segundo pesquisas recentes).

O PT perdeu fôlego ao não insistir em um enfrentamento mais profundo dos latifúndios; ou mesmo ao desistir de tentar renacionalizar os comandos vendidos das Forças Armadas, que após 1964 expurgam seus altos-militares mais lúcidos e patriotas. De fato, sem muito povo nas ruas, não se poderia enfrentar tais temas.

Caio Prado e Mariátegui, embora não tenham se dedicado à teorização específica do conceito de “hegemonia” (como o fez Gramsci), entendem este fenômeno de forma muito similar à do italiano, a saber: que o processo revolucionário em nossas nações subalternas, de início deve pôr peso em reformas pela conscientização das massas, um processo paulatino que, em alguns momentos históricos de severa crise, pode ser acelerado pelos socialistas organizados, proporcionando brechas para a ação revolucionária decisiva.

O problema é que o PT desistiu de alcançar esta necessária hegemonia de consciências e forças; desistiu de enfrentar o monstro estrutural, legado do golpe militar de 1964 (ditadura que, aliás, como nota o professor Paulo Arantes, nunca acabou).

O PT achou que daria para confiar na “racionalidade econômica” ou certo resquício de “nacionalismo” de nossa burguesia interna, associada menor do capital externo. Está aí o resultado: juízes e procuradores vendendo ao exterior informações confidenciais do Estado, inclusive sobre nossas maiores riquezas, minando nossa economia em nome da hegemonia cultural conservadora, destruindo nossas empresas estatais...

Como demonstrou o grande comunista do Partidão, Caio Prado Júnior, o Brasil nunca teve uma “burguesia nacional”: e o PT não poderia ter se esquecido de estudar esta lição do mestre.

Ainda assim, me parece hoje um tanto indiscutível que o PT ainda é, em curto prazo, o único partido no campo progressista com chances de disputar a macropolítica. Me refiro sobretudo ao campo do Executivo federal, que é essencial ao poder transformador. E para tanto – para que possa ter a força necessária não só para se eleger, mas para levar a cabo mudanças perenes, estruturais–, o partido precisa se reaproximar de suas bandeiras históricas, e apesar de sua orientação social-democrática de há tempos, tem de se aliar aos partidos socialistas em todas as suas nuances, dos socialistas revolucionários aos social-democratas seus similares, ou seja: desde seus parceiros social-reformistas do PCdoB, passando pelo tão matizado socialismo-democrático do PSOL, e chegando ao socialismo-radical, como o dos comunistas do PCB.

3. Com as esquerdas abaladas pelos tantos golpes duros que têm sofrido nos últimos anos, como você vê a próxima disputa presidencial e as possibilidades de se construir uma frente progressista?

Dada a conjuntura de crise liberal, e consequente fascismo em instauração, é imprescindível o diálogo e unidade entre todos os partidos socialistas – dos reformistas (com mais capilaridade eleitoral), aos radicais (com mais firmeza de princípios).

E tendo em vista a fragilidade atual do campo progressista, pode ser necessário até mesmo tentar obter apoios junto a setores do PSB e PDT – esse “centro-centro” político que transita entre o progressismo e o fisiologismo, ontem neogolpistas, mas que hoje acenam ao reformismo (dois partidos hoje tão duvidosos, mas que um dia, nos idos de Miguel Arraes e Brizola, levantaram decentemente a bandeira socialista).

Mas isto, é claro, sem incluir esse aventureiro do Ciro Gomes, caudilho perigoso, personalista, fundador (talvez arrependido) do PSDB, mas que nunca teve projeto de país. Esse sujeito não é um estadista, mas um embuste que, vaidoso, busca o poder pelo poder. Não serve para compor uma frente progressista: seria pelo menos igual, senão pior que os ratos medianos que povoam o PMDB, pois é um animal um tanto mais sagaz.

Para que uma frente ampla progressista tenha força para disputar, não só o governo, como o poder real, é preciso que o candidato (provavelmente do PT) a ser construído (já que visivelmente não deixarão o Lula participar, a não ser que seja para derrubá-lo na “Justiça” tão logo seja eleito), é preciso que esse novo candidato esteja respaldado pelas forças populares dos movimentos sociais de massas, como o MST, o MTST, e os sindicatos de luta – enfim, que este novo líder seja reconhecido pelo conjunto da classe trabalhadora.

Esta união progressista, em curto prazo, teria de forjar uma chapa encabeçada pela social-democracia, representada hoje pelo PT reformista, com discurso “humanitário” –  pois que a um socialista revolucionário que tivesse chances de se eleger, o sistema sequer permitiria a participação no pleito. Porém, parece-me que um candidato a vice de um partido realmente socialista seria importante na consolidação dessa Frente.

Assim sendo – como o defendiam Caio Prado e Mariátegui – sob um governo que fosse ao menos “humanista”, que mantivesse uma mínima ética e racionalidade, os socialistas teriam mais espaços para desenvolver a capilaridade de seu discurso no meio popular, cuja penetração ainda é pouco efetiva nos rincões e periferias do país. É deste modo gradual que ambos os marxistas concebem que se poderá melhor consolidar os ideais socialistas em nossos países periféricos – em nossas nações incompletas, cujas elites eles veem como extremadamente incultas e desonestas. Defendem portanto reformas de urgência, imediatas, que satisfaçam as necessidades mais vitais do exército de miseráveis e moribundos, reformas que permitam ao povo se alimentar e se abrigar, para então poder ter forças para lutar…

O tal dito popular: saco vazio não para em pé. Marx e Engels já falavam disto: o homem precisa comer, dormir, estar vivo para fazer a revolução.

Penso que os socialistas, ao apoiarem a eleição de um social-progressista no âmbito da “política real”, da “política eleitoral” que é – e tem sido desde sempre – bem suja, não estão declinando de seu objetivo revolucionário, de seus princípios, mas apenas descendo do altar da teoria pensada (por aqueles que almoçaram, ainda que não como gostariam), para o chão material da urgência, em que se arrastam famélicas dezenas de milhões de famílias brasileiras.

E é no chão material e enlameado que se definem as revoluções. Como pondera o Caio Prado, em famosa entrevista de 1967, a revista da USP: quando tivermos uns “30 ou 40 mil trabalhadores dispostos a pegar em armas, é evidente que nossa tarefa [do partido] é arranjar armas” para todos, e tentar com eles “tomar o poder”; mas não se pode “programar a luta armada, se não existem elementos capazes de concretizá-la” (Marx na América, p.78).

Enquanto não se constrói tal cenário favorável ao ser humano, cabe a um partido socialista radical manter a independência de seu discurso e defender seus princípios, buscando sempre compreender a raiz dos problemas, para assim poder atualizar suas análises sociais, de acordo com o movimento dialético da história. Para tanto, no trabalho cotidiano da militância socialista, que busca fomentar a conscientização junto às classes subalternas, há que se priorizar o diálogo com o povo.

Mas no campo imundo e imediato da “política real”, creio que um socialista inteligente (e alimentado) não deve se abster de orientar seus votos ao mal menor (no caso das últimas eleições, aos social-democratas da “articulação” petista-paz-e-amor, contra o energúmeno que se elegeu). Um gesto incômodo, extremado – mas uma necessária tomada de partido contra a aliança neoliberal-fascista dos facínoras que quase sempre mantiveram as rédeas nacionais. E claro, imediatamente após o pleito, no dia seguinte da história, que se retome a oposição crítica, dialética, paciente, disciplinada.

4. Recentemente você publicou dois artigos em sua coluna da Revista Fórum sobre a origem e as responsabilidades da pandemia. Como você avalia esse contexto de crise estrutural do capital e sua relação com a covid-19?

Sim, eu dizia nestes artigos que embora o Trump insista em culpar a China pela pandemia, isto é discurso calculado, falacioso, cuja intenção é a de obter privilégios na guerra comercial e geopolítica que a superpotência vem travando – e perdendo – contra a potência emergente asiática. Mas que na realidade, a grande responsabilidade pela pandemia é dos próprios Estados Unidos – e dos europeus-ocidentais, seus vassalos desde o fim da Segunda Guerra.

A culpa pela pandemia é das nações do “centro”do sistema capitalista, destas potências que compõe o dito Grupo dos 7 (G-7) e que – ainda – dominam o globo e continuam a impor a todo o resto periférico do mundo um modelo de produção destrutivo, cada vez mais nocivo ao homem e à natureza.

Embora não se tenha certeza ainda acerca da origem animal deste novo coronavírus, tudo indica que a covid-19 seja zoonótica. Nas últimas décadas têm surgido diversos vírus semelhantes que causam zoonoses, ou seja, doenças transmitidas de animais ao homem, muitas delas vindas de animais selvagens que tiveram seus habitats devastados, e que daí acabaram se aproximando das cidades.

São a resposta da natureza ao ser humano e seus ataques. Esta é a consequência contemporânea do capitalismo nesta época em que a chamada “crise estrutural” se agudiza: ou seja, o desemprego aumenta sistematicamente, dada a tecnologia que avança, e assim os lucros caem, o que leva os senhores do mercado a partirem em aventuras devastadoras em busca de novos territórios a serem explorados, visando com isso adiar o prejuízo da crise que eles mesmos criaram.

Em suma, se este vírus surgiu “ao acaso” – de modo parcialmente “natural”, por assim dizer – trata-se de um acaso forçado pela devastação da natureza, fenômeno levado a cabo pelo capital que está desesperado e busca manter a todo custo seu insustentável crescimento econômico.

Por outro lado, se o vírus é de laboratório – é mais uma prova do quão patológica é nossa civilização suicida, irracional, que se arrisca à extinção por disputas materiais, geopolíticas, que já poderiam estar superadas, pois a produção imensa que temos hoje daria para todos os bilhões de seres humanos viverem com qualidade de vida, bem alimentados e sãos – segundo dados da ONU – se a produção fosse minimamente bem repartida.

5. Com a pandemia alguns intelectuais e militantes sociais no campo do marxismo vem afirmando que nunca esteve tão claro que quem produz riquezas é o trabalho. Além da complexa teoria do valor-trabalho, você diria que o momento que estamos atravessando atualiza elementos da obra marxiana (ou do marxismo latino-americano)?

Pois é, este vírus, ao contrário da maioria das doenças, atemorizou certos setores menos estúpidos das classes dominantes, forçando até mesmo governos da direita-liberal, como Dória e Witzel, a se submeter à natureza e decretar a quarentena. Esta doença tem algo de, digamos, “democrático”: mata ricos; embora sejam sempre as classes subalternas as mais afetadas, pois não possuem recursos para se defenderem com bons hospitais e médicos responsáveis – duas coisas bem raras neste país.

A paralisação contingencial que estamos vivendo, contudo, vêm sofrendo resistência por parte do empresariado mais fundamentalista, que realiza “buzinaços” pelo país. E claro, isto com o incentivo de um dos mais ignóbeis dentre os presidentes que já atrasaram a história desta nossa triste semi-nação, que jamais conseguiu constituir instituições sólidas, nem humanas.

Por que se arriscam tanto, a si e a sua família, estes magnatas? Porque percebem que não bastam máquinas hipermodernas para a economia funcionar. Com os trabalhadores parados, sozinhas as máquinas nada produzem. Quem produz riqueza é o trabalhador, é dele trabalhador que o patrão extrai, ou antes subtrai seu lucro.

A economia capitalista funciona mais ou menos assim: o empregado trabalha durante determinadas horas a um patrão, mas só é pago por parte destas horas trabalhadas. As horas restantes são açambarcadas pelo proprietário da fábrica, o dono das máquinas.

Este é o mecanismo para o roubo de algumas horas de trabalho de cada trabalhador a cada jornada: a patronal paga de salário a cada trabalhador um pouco menos do que a remuneração que lhe seria devida pelas horas que trabalhou. Esta é a tal mais-valia exposta pelo economista, historiador e filósofo Karl Marx. São estas horas extras não pagas – ou sem eufemismos, roubadas de cada empregado, dia após dia, que compõem o lucro dos capitalistas.

Assim, na quarentena, como acontece também nas greves, fica mais clara a dimensão concreta desta teoria de que não são as máquinas que criam riquezas! Os bens de que necessitamos são criados por aqueles que trabalham. Mesmo que se tenha um maquinário excelente, de última geração, com capacidade produtiva altíssima, é preciso haver trabalhadores para tocar essas máquinas; trabalhadores de quem se explora o trabalho.

E aqui podemos ver a importância da organização de manifestações, de paralisações, e sobretudo de greves gerais – como ferramentas efetivas da classe-que-trabalha para pressionar com firmeza a classe-que-explora. Sem os operários, a indústria pára, a economia declina, como está acontecendo agora.

Mas observemos então outro aspecto da questão: é claro que com máquinas cada vez mais modernas, o capitalista precisa de cada vez menos pessoal na operação produtiva... Mas sempre precisará de alguns. E aqui está o cerne da complexa teoria do valor-trabalho a que você se referiu, desenvolvida e esmiuçada por Marx.

Desde o fim dos anos 1960, o próprio progresso capitalista tem levado o capitalismo a uma sinuca de bico. Aliás, “progresso” entre aspas, pois que não se trata de um desenvolvimento de fato humano, emancipatório, mas somente evolução técnica.

Ocorre que com o avanço da automatização, o lucro tende a cair, como eu mencionei há pouco. É por este fenômeno que nos anos 1960 declina o Estado de bem-estar social – e aliás a consequência dessa retirada de direitos sociais é que geraria as revoltas que se espalham pelo globo por volta de 1968.

O capitalismo desde sempre, mas especialmente desde o final do século XX, sofre de uma crise que não é só cíclica, passageira como as tantas que vimos e vemos na história. Trata-se da “crise estrutural”, uma crise concernente a sua própria lógica de crescimento.

Ou seja: o capitalismo não planifica sua produção, não produz itens que o ser humano necessita, mas sim produtos que “vendam bem”, que deem lucro; e faz isso de modo desordenado, em uma espécie de guerra fratricida de todos contra todos, em que cada industrial tenta ultrapassar o colega, esmagar, destruir o concorrente.

Assim, conforme a concorrência capitalista, não planejada, não refletida, obriga aos proprietários a modernizar seu maquinário produtivo, a tendência é que, com o passar do tempo, precise-se de cada vez menos gente trabalhando na operação das máquinas. Portanto, se há menos trabalhadores empregados na fábrica, o capitalista tem menos gente para roubar as horas de trabalho – e, logo, tem menos chance de extrair a mais-valia e obter lucro.

Vejamos isso de um modo mais simples, com um exemplo prático: se um médio empresário antes empregava 20 pessoas e produzia 1000 celulares, agora com novas máquinas ele só precisa empregar 10 pessoas, e consegue produzir 5000 aparelhos. Quem olha pensa: que bom para ele!

Porém, observemos a situação global deste fenômeno. Em primeiro lugar, este capitalista não está sozinho nesse movimento de modernização, mas seu concorrente faz o mesmo; e talvez seu concorrente tenha um pouco mais de dinheiro que ele para investir em máquinas ainda mais modernas. Isto significa que sob a pressão da diminuição global da taxa de lucros, muitos destes espertos vão falir, para uns poucos crescerem, monopolizando o setor.

Mas por que diminui a taxa de lucros? Porque se antes este empresário e seus vários concorrentes no mundo tinham um número xis de empregados de quem roubavam algumas horas de trabalho diárias (não pagas), agora este número foi reduzido pelo advento das novas máquinas, e, portanto, a tendência geral é a de que consigam extrair menos lucro, pois o lucro vem do trabalho extra que não é pago aos operários (os quais agora são poucos).

6. Quais os principais impactos sociais da crise estrutural que podem ser observados em nossa história recente?

No âmbito geral, o resultado da crise estrutural é que o lucro tende a cair,e a concorrência aumentar ainda mais. Embora alguns empresários se saiam bem, a grande maioria tende a quebrar – e aí está o motivo pelo que surgem cada vez mais imensos monopólios dominando o planeta: cerca de mil famílias-máfias controlam o mundo hoje, segundo cálculos das próprias instituições do capital.

E isso fica mais óbvio de se perceber no dia a dia. Suponhamos que hoje haja somente a metade do que havia, há uma década, de trabalhadores empregados na produção de celulares, de operários sendo direta e efetivamente explorados. Por outro lado, há também somente essa mesma metade com algum dinheirinho no bolso para ir até a loja do patrão e comprar um destes novos telefones, pois a outra metade, desempregada, não vai comprar nada, quando muito arroz – são as massas de excluídos.

Assim, se antes você produzia 1000 celulares e vendia todos, agora você produz 5000, só que não terá mais para quem vender...

A consequência disso é a agudização e o aumento da frequência das crises econômicas, como a de 2008, a mais violenta desde 1929. Esta de 2008, aliás, que não acaba de expor seus efeitos, está se mostrando tão deletéria como a Grande Quebra do entre-Guerras. E as duas sintomaticamente começaram bem no coração do sistema: os Estados Unidos, a Europa Ocidental, o que denota sua gravidade.

Desde o fim do século XX, pesquisadores têm verificado que este movimento insustentável de “crescimento econômico” do capitalismo está chegando no seu limite. Economistas têm constatado empiricamente, mediante cálculos econométricos, que as taxas de lucro, se ainda não começaram a diminuir globalmente, estão em processo de estagnação, especialmente nos EUA. Quem quiser se aprofundar nesse tema, que acho crucial, sugiro a leitura especialmente do genial István Mészáros, mas também de Eleutério Prado, Robert Kurz, Moishe Postone, dentre outros importantes marxistas.

Tais crises econômicas resultam em crises sociais mais e mais violentas, como as crises de fome, e também em guerras – as quais na maior parte das vezes têm sido disputas por novos territórios a serem explorados, de modo a adiar os efeitos da crise estrutural do capitalismo.

Só que a crise estrutural é uma crise da própria lógica do sistema, e embora possa ser adiada, não há como resolvê-la dentro da lógica capitalista. Por exemplo, os EUA fazem guerras, destroem países, e com isso aquecem em curto e médio prazo sua economia, vendendo suas armas e movimentando sua indústria da construção civil – pois são suas empreiteiras que depois da guerra vão lá reconstruir o país destruído. Mas logo o ciclo do “progresso” desgovernado se acirra e vêm a nova etapa da crise.

O “crescimento econômico” eterno é uma ideia restrita e nociva de “progresso”, algo obviamente insustentável em um planeta de recursos energéticos limitados e que hoje já está bem pequeno para o nosso coeficiente de desperdícios.

O Cerrado brasileiro já foi quase todo destruído pelo capital: o agronegócio. Agora se avança sobre a Amazônia, sobre os territórios ainda autóctones da África, da Ásia. E a natureza cedo ou tarde responde.

[Continua...]

*Yan Victo é militante do MST e do PCB-MG. Doutorando em Desenvolvimento Social/UNIMONTES; mestre em Extensão Rural/UFV; Biólogo/UEMG]