O horizonte digital da Pedagogia do Oprimido - por Ladislau Dowbor

Um terço do globo é excluído das oportunidades geradas pelo acesso às tecnologias. Se conhecimento crítico é condição de acesso à cidadania, como diria Paulo Freire, quebra de patentes é primeira batalha para o Comum e a emancipação

Paulo Freire (Reprodução)
Escrito en DEBATES el

Por Ladislau Dowbor*

Por trás do desafio do acesso às letras, no caso da alfabetização, ou aos sinais virtuais na tela, no caso da inclusão digital, está o problema central da desigualdade. A mesma angústia de uma pessoa que tinha dificuldades em ler um endereço, e se sentia fora do mundo, é vivida por mais de um terço da humanidade de excluídos do universo online, quando as coisas mais simples do cotidiano exigem destreza na tela e no teclado, armazenamento de senhas, e a capacidade de pagamento correspondente. As tecnologias mudaram, mas não a exclusão, e a consequente fragilização política.

A dimensão do acesso ao conhecimento como condição de acesso à cidadania, tão presente na obra de Paulo Freire, não só continua presente, como se agrava. Para já, um terço da humanidade, ou por não ter acesso aos equipamentos, ou por não ter como pagar as taxas extorsivas, ou por se encontrar em regiões desprovidas de sinal, ou inclusive de energia, encontra-se de certa maneira como que no escuro, desligada do mundo digital onde acontecem as coisas. Na sociedade do conhecimento, o não acesso tornou-se mais dramático.

O conhecimento hoje constitui o principal fator de produção. A capacidade física e a disposição para o trabalho não garantem o acesso a uma remuneração digna. As pessoas precisam de uma bagagem de conhecimentos frequentemente muito ampla, e não à toa nas medidas internacionais de desigualdade hoje se inclui, além da desigualdade de renda e de patrimônio, a desigualdade educacional.

O controle da economia digital

O conhecimento se tornou em grande parte imaterial. O mundo corporativo é hoje dominado não por grandes fábricas de automóveis, por exemplo, mas por gigantes mundiais que controlam os sinais magnéticos, como Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, oligopólio hoje conhecido pela sigla GAFAM. Na China dominam gigantes semelhantes, Baidu, Alibaba, Tencent, o BAT. E como o dinheiro também se tornou imaterial – apenas 3% da liquidez que circula no mundo envolve notas impressas por governos – o sistema de intermediação financeira se transformou igualmente, com o domínio de gigantes mundiais que cobram taxas sobre toda e qualquer transação.

Essa transformação da base tecnológica das atividades econômicas mudou profundamente o que chamávamos de acumulação de capital. No capitalismo tradicional que conhecemos, a extração do excedente pelas elites, sob forma de mais-valia, era assegurada pela exploração salarial. No Brasil de hoje, com 212 milhões de habitantes e cerca de 150 milhões de adultos, apenas 33 milhões de pessoas têm emprego formal no setor privado. Somando 11 milhões de empregados do setor público, temos 44 milhões de pessoas efetivamente inseridas no sistema. No setor informal, temos cerca de 40 milhões de pessoas que “se viram”, e somando os 15 milhões de desempregado agora com a pandemia, mais da metade da população do país encontra-se marginalizada. A subutilização da força de trabalho constitui um problema central do desenvolvimento do Brasil.

A economia imaterial

O conhecimento tornou-se o principal fator de produção. Um celular poderá ter 5% do seu valor atribuído à matéria prima e à força de trabalho empregada. Os outros 95% constituem conhecimento incorporado. Mas o peso econômico das tecnologias e de pesquisa incorporados tornou-se essencial nas mais variadas áreas. Mesmo a agricultura familiar depende de tecnologias de inseminação artificial, análise de solo, estudos hídricos, seleção de sementes e outros aportes sob forma de conhecimento incorporado nos processos produtivos.

As grandes fortunas resultam cada vez menos de produção de bens e serviços finais, como de automóveis: trata-se de controle do acesso ao intangível, plataformas de intermediação em vez de fábricas. A mudança é sísmica, pois o intangível pode ser indefinidamente reproduzido sem custos adicionais, abrindo a possibilidade de uma generalização planetária de aumento de produtividade sem custos adicionais.

Haskel e Westlake, no livro Capitalism without Capital captam a diferença profunda que caracteriza esse capital intangível. Não se trata de

“um ativo físico como uma fábrica ou uma loja ou uma linha telefônica: uma vez que esses ativos atingem a sua capacidade, é preciso investir em novos ativos. Mas os intangíveis não precisam obedecer ao mesmo conjunto de leis da física: podem em geral ser usados de novo e de novo. Chamemos esta característica dos intangíveis de potencial de escala (scalability)… Não deve ser uma surpresa para nós que coisas que não podemos tocar, como ideias, relações comerciais e know-how sejam fundamentalmente diferentes de coisas físicas como máquinas e construções.”

O controle da informação, das redes, do dinheiro imaterial, do acesso ao conhecimento, dos sistemas de comunicação e outros setores de atividade imaterial, inclusive a financeirização acelerada da própria educação, estão gerando um outro universo econômico, social e político. Somos dominados não mais por capitalistas produtivos, mas por gigantes da intermediação. É cada vez mais uma economia do pedágio.

As oportunidades na crise

O denominador comum é que a conectividade planetária e a primazia da dimensão imaterial do principal fator de produção estão gerando novas regras do jogo. Na visão de Rifkin, no livro A Sociedade de Custo Marginal Zero, a rápida expansão desta nova economia leva a uma possibilidade de escaparmos do poder dos gigantes da intermediação e da filosofia da guerra econômica de todos contra todos, expandindo progressivamente os espaços de colaboração direta entre os agentes econômicos ao mesmo tempo produtores e consumidores, os famosos “prosumers”.

Otimismo exagerado? Talvez, mas a expansão das novas tecnologias, da economia imaterial e da conectividade planetária abre espaço para uma compreensão muito mais ampla das oportunidades que surgem para uma economia mais humana. Na obra de Rifkin ecoam evidentemente os trabalhos de Hazel Henderson sobre a “win-win society”, do Clay Shirky sobre o “excedente cognitivo”, do Don Tapscott sobre as articulações horizontais entre agentes econômicos (Wikinomics) e outros. A realidade é que há uma outra economia e sociedade em construção. Para que mundo estamos educando as pessoas?

A lógica de organização herdada do século passado, centrada na privatização e competição, simplesmente não resolve. A apropriação privada, no caso dos bens rivais, é compreensível. Se eu passo o meu relógio a alguém – bem físico – deixo de tê-lo. Mas se compartilho uma ideia, continuo com ela. E uma vez coberto o eventual custo de elaboração da ideia, ela pode circular e ser apropriada pelo planeta afora sem me tirar pedaço. Trata-se justamente de uma “sociedade de custo marginal zero”.

Elinor Ostrom consagrou a sua vida de pesquisa aos bens comuns, como a água, as florestas, os recursos pesqueiros e outros. Pesquisa que lhe valeu o Nobel do Banco da Suécia, aliás primeiro “Nobel” de economia concedido a uma mulher. Com Charlotte Hess, organizou uma coletânea em que os estudos anteriores que realizou sobre os bens comuns são aproveitados para pensar e entender também o conhecimento como bem comum, numa análise desta profunda transformação que irá caracterizar o século XXI.

O conceito chave aqui é commons, que aqui traduzimos como bens comuns:

Commons se tornou uma palavra de referência para informação digital, que estava sendo trancafiada (enclosed), transformada em commodity e patenteada de maneira abusiva (overpatented). Seja qual for a denominação utilizada, bens comuns ligados ao ‘digital’, ‘eletrônico’, ‘informação’, ‘virtual’, ‘comunicação’, ‘intelectual’, ‘internet’ ou outros, todos estes conceitos se referem a um novo território compartilhado de informação global distribuída.”

A orientação básica desse novo território é o seu imenso potencial de apropriação generalizada:

“Quanto mais pessoas compartilharem conhecimento útil, maior será o bem comum. Considerar o conhecimento como bem comum, portanto, sugere que o eixo unificador de todos os recursos comuns se encontra no seu uso compartilhado, gerido por grupos de várias dimensões e interesses.”

O acesso aberto e compartilhado não significa a ausência de formas de gestão, o vale tudo. Nisto o aporte de Ostrom, que estudou durante décadas as mais variadas formas de gestão compartilhada de bens comuns – o uso de recursos comuns de água para o cultivo do arroz na Ásia, os pactos de limitação de uso da água nos Estados Unidos e outros – é precioso, pois oferece um referencial de regras do jogo construídas pelos próprios usuários, que se organizam para não destruir o que é de uso comum por meio de arranjos institucionais inovadores.

Os diversos capítulos trazem as visões de James Boyle sobre o conhecimento visto como ecossistema, mostrando o absurdo que é trancar o acesso aberto a obras por mais de setenta anos; de Wendy Lougee sobre as transformações da universidade e em particular das funções das bibliotecas universitárias quando o conhecimento passa a ser universalmente disponível; de Peter Suber sobre a evolução do acesso aberto (open access); de Shubha Gosh sobre os novos conceitos de propriedade intelectual; de Nancy Kranich sobre as tentativas por parte de corporações de trancar o acesso e gerar um novo movimento de “enclosures” no mundo científico e na educação;de Peter Levine sobre formas de organização da sociedade civil em torno dos novos arranjos e assim por diante.

Direitos autorais e livre circulação

Diferentemente dos bens industriais, as ideias têm de circular livremente. Um texto de 1813 de Thomas Jefferson é neste sentido muito eloquente:

“Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de ideia… Que as ideias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e de maneira benevolente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade.“

De certa maneira, temos aqui uma grande tensão, de uma sociedade que evolui para o conhecimento, a densidade cultural e a economia imaterial, mas regendo-se por leis da era industrial. O essencial aqui, é que o conhecimento é indefinidamente reproduzível, e por tanto só se transforma em valor monetário quando apropriado por alguém, e quando quem dele se apropria coloca um pedágio, “direitos”, para se ter acesso. Para os que tentam controlar o acesso ao conhecimento, este só tem valor ao criar artificialmente, por meio de leis e repressão e não por mecanismos econômicos, a escassez. Por simples natureza do processo, a aplicação à era do conhecimento das leis da reprodução da era industrial trava o acesso. Curiosamente, impedir a livre circulação de ideias e de criação artística tornou-se um fator, por parte das corporações, de pedidos de maior intervenção do Estado. Os mesmos interesses que levaram a corporação a globalizar o território para facilitar a circulação de bens, levam-na a fragmentar e a dificultar a circulação do conhecimento.

A questão central de como produzimos, utilizamos e divulgamos o conhecimento envolve portanto um dilema: por um lado, é justo que quem se esforçou para desenvolver conhecimento novo seja remunerado pelo seu esforço. Por outro lado, apropriar-se de uma ideia como se fosse um produto material termina por matar o esforço de inovação. A propriedade intelectual não tem limites?

Numa universidade americana, com a compra das revistas científicas por grandes grupos econômicos, um professor que distribuiu aos seus alunos cópias do seu próprio artigo foi considerado culpado de pirataria. Poderia quando muito exigir dos seus alunos que comprem a revista onde está o seu artigo. Todos conhecem o absurdo de patentes sobre segmentos de DNA, de bactérias, sementes e outras formas de vida, copyrights sobre criação intelectual que se estendem até 70 ou mais anos depois da morte do autor e semelhantes. Pela lei vigente no Brasil, os textos de Paulo Freire estarão livremente disponíveis apenas a partir de 2067! Estamos na realidade travando a difusão do progresso, em vez de facilitá-la.

Não são visões extremistas que encontramos nos trabalhos de Lawrence Lessig sobre o futuro das ideias, de James Boyle sobre a dimensão jurídica, de André Gorz sobre a economia do imaterial, de Jeremy Rifkin sobre a economia da cultura, de Eric Raymond sobre a cultura da conectividade, de Joseph Stiglitz sobre os limites do sistema de patentes, de Manuel Castells sobre a sociedade em rede, de Alvin Toffler sobre a “terceira onda”, de Pierre Lévy sobre a inteligência coletiva, de Hazel Henderson sobre os processos colaborativos. São visões de bom senso, e muitos pesquisadores, autores e editores estão se reajustando. Novas dinâmicas estão em curso, e ocupando espaços na linha de frente tecnológica, ultrapassando dinâmicas desatualizadas. Instituições de pesquisa como o MIT, autores científicos como Lester Brown, editoras como a Fundação Perseu Abramo, autores de música como Gilberto Gil e tantos outros estão apontando para um universo mais equilibrado. Não se trata de utopias, e sim de mudanças em curso, e os que souberem se readequar vão encontrar o seu lugar.

O Brasil, neste plano, enfrenta uma situação peculiar, pois herdou uma desigualdade que marginalizou grande parte da sua população, e a economia do conhecimento e os seus potenciais ficaram essencialmente limitados ao terço superior da população. É um país onde o setor informal da economia representa quase a metade da população economicamente ativa. Não podemos nos dar ao luxo de não aproveitar ao máximo o imenso potencial que as novas tecnologias apresentam. Generalizar o acesso à banda larga de qualidade, abrir de forma gratuita o acesso ao conhecimento, na linha do movimento mundial de Ciência Aberta, Creative Commons, Open Access e semelhantes, transformar as instituições de ensino em núcleos de navegação no universo de conhecimento online que banha o planeta, formar os professores na nova filosofia de construção colaborativa e interativa do conhecimento, são caminhos que se abrem para uma educação que assuma o protagonismo no seu próprio processo de transformação.

A revolução digital está abrindo um universo de oportunidades. Não precisamos pagar pedágios para os gigantes corporativos da intermediação que são as plataformas como Google, Face, Amazon etc., ou para os bancos que nos endividam ao nos emprestar o nosso próprio dinheiro. A educação não só precisa resistir à sua transformação em produto comercial na mão dos gigantes corporativos, como precisamente se tornar em instrumento para nos liberar, generalizando a compreensão dos mecanismos. Precisamos, de certa maneira, mudar os meios e os fins. A alfabetização, em outra época e na visão de Paulo Freire, tratava justamente tanto do meio de aquisição do conhecimento, como dos fins libertadores. Hoje, para não estar excluído, o nível de conhecimento precisa ser muito mais amplo do que a alfabetização que batalhava Paulo Freire. A Pedagogia do Oprimido, hoje, tem um horizonte digital.

*Ladislau Dowbor é professor de economia da PUC-SP, consultor de diversas agências da ONU e autor de numerosos estudos disponíveis em seu site www.dowbor.org. Seus últimos livros publicados foram "Pão nosso de cada dia: opções econômicas para sair da crise" e "A era do capital improdutivo", ambos pela editora Autonomia Literária.