O Jair candidato e o Bolsonaro presidente, por Rodrigo Abel

Após os 100 dias de governo, afinal, qual é a diferença entre o Jair candidato e o Bolsonaro presidente? Até aqui, nenhuma. O Jair candidato é cada vez mais parecido com o Bolsonaro presidente

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
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Por Rodrigo Abel* O mês de abril tradicionalmente surge com uma avalanche de análises sobre os 100 primeiros dias dos novos governos. E isso ganha ainda maior relevância por conta das características fenomenológicas das eleições de 2018, as quais resultaram na vitória de atores políticos periféricos do sistema dominante que se conformou desde 1988, hegemonizado sobretudo pela tríade PMDB, PSDB e PT. Neste caso, por óbvio, o presidente Jair Bolsonaro tem sido submetido a um maior escrutínio sobre este pequeno, mas relevante período. Eleito com um forte discurso disruptivo, o presidente Jair Bolsonaro entregou como narrativa aos seus eleitores em sua caminhada rumo ao Planalto uma nova forma de se fazer política, evitando já na campanha aparecer com candidatos controversos, negando apoio direto aos seus correligionários, sendo as muitas das vezes grosseiro com parte da imprensa, não se intimidando em tecer opiniões sobre temas polêmicos e, por fim, sendo extremamente duro no ataque ao que julgava ser a velha política – PSDB, PMDB, PT e seu satélites do chamado centrão. Até aqui, este discurso ainda vem sendo interpretado pelos analistas como algo ensaiado pelo então candidato, já que teria ele, diferentemente de Trump, desfilado pelos salões do Congresso Nacional nos últimos 28 anos como deputado federal e que, portanto, na hora certa e derradeira, saberia ele, como poucos, agir cirurgicamente para implementar suas ideias e agenda. Mas após os 100 dias de governo, afinal, qual é a diferença entre o Jair candidato e o Bolsonaro presidente? Até aqui, nenhuma. O Jair candidato é cada vez mais parecido com o Bolsonaro presidente. O sonho de dez entre dez deputados do chamado centrão, por exemplo, não se realizou. Para espanto de um Congresso disponível ao casamento, Bolsonaro realizou o projeto original, montando seu governo a partir dos núcleos que comandaram sua exitosa campanha: militares, ruralistas, liberais, olavistas, evangélicos e familiares. O Bolsonaro presidente montou, provavelmente, o mais independente ministério de toda a nossa curta história republicana. Este início confuso em praticamente todas as áreas do governo sinaliza, claramente, uma novidade que está diretamente conectada ao não fatiamento do governo com o Congresso: não há um núcleo hegemônico ascendente no entorno do presidente, próprio dos regimes de partilha de poder. Para além das relações difusas que orbitam o entorno do presidente, há uma outra evidência que faz destes 100 dias um possível e cada vez mais provável limiar de novos tempos. O presidencialismo de coalizão, marca do nosso sistema multifacetado por partidos políticos, parece estar cada vez mais fora do jogo real de poder. De Sarney, passando por Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma, o Congresso Nacional sempre esteve presente nesta equalização do sistema político brasileiro, cuja característica central, pelo menos até aqui, orbitou num sofisticado sistema de trocas – cargos, verbas, emendas e ministérios. Certo ou errado, este mecanismo de trocas sempre existiu. E aos que ousaram combatê-lo, o sistema os repeliu, a exemplo de Collor e Dilma – Lula soube girar a chave no meio do processo do mensalão. O que parece cada vez mais claro é que Bolsonaro quer mudar o ”sistema” de trocas sem mudar as estruturas que o mantém. E isso tem consequências. O caso Dilma ilustra muito bem. Começou pelas pautas bombas e acabou no impeachment. Bolsonaro, em menos de três meses, já recebeu as credenciais do Congresso com a aprovação em tempo recorde do orçamento impositivo das emendas coletivas. Ao não dar sequência a este histórico sistema de trocas com o parlamento, o Bolsonaro presidente pode estar inflacionando o mercado futuro. A reforma da Previdência é mais um sinal dado pelo parlamento. Enquanto a reforma proposta pelo ex- presidente Michel Temer - o mais impopular presidente de toda a nossa história -, foi aprovada na CCJ em menos de um mês, sem sequer a presença de um único ministro de Estado; a de Bolsonaro vive de solavancos, atrasos e desencontros. A recente presença do ministro Paulo Guedes na Comissão de Constituição e Justiça, mesmo tendo a companhia do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, não foi suficiente para colocar a tropa perfilada na defesa do seu principal ministro e da mãe de todas as reformas. Isso é mais uma vez sintomático: o parlamento está sinalizando insistentemente ao governo que não abre mão do sistema de trocas. Ao fim, a reforma da Previdência provavelmente levará mais tempo e será menor do que aquilo que se esperava. O tão sonhado 1 trilhão de Paulo Guedes será, ao que tudo indica, não mais do que 600 bilhões. Na reforma da Previdência, Bolsonaro coloca o seu único filho na porta do vizinho mais pobre da Praça dos Três Poderes, e fica ali ao lado, esperando e cobrando para ele ser cuidado com amor e zelo, mas com um detalhe: não dá nada para a família mais pobre da rua poder criar o seu único herdeiro; e ainda cobra a necessidade dele ser devolvido mais lindo do que entrou, para ao fim, o pai, não o vizinho, receber todos os louros pelo primogênito que garantirá o futuro do reinado. Essa metáfora ilustra uma obviedade: delegar ao vizinho aquilo que na verdade seria obrigação do pai é um erro. E ao não premiar o vizinho pela sua contribuição de agora significa dizer que amanhã, quando outro filho for acolhido pelo mesmo vizinho, o tratamento pode ser outro, depois outro e depois outro. Bolsonaro está fazendo da reforma da Previdência um balão de ensaio com algo que é central para o país, colocando em xeque inclusive o seu futuro político. Muitos analistas políticos, assim como eu, ainda acreditam que o presidente se curvará ao sistema de trocas, até porque este mecanismo não é essencialmente corrupto como o Jair candidato coloca. Por fim, ao redobrar a aposta contra o sistema de trocas, o presidente Bolsonaro está convidando o Congresso Nacional a buscar ainda mais independência e o resultado disso será inevitavelmente a instabilidade, assim como a abertura para o Brasil se tornar num futuro não tão distante, uma república parlamentarista. *Rodrigo Abel é cientista político
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.