O Mal-estar da Juventude, por Icaro Andrade

"A tragédia que se desenha, e que marca a história como um período de enorme tristeza, traz consigo exemplos de decrepitude da abordagem nacional em relação à saúde da juventude"

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Por Icaro Andrade*

De acordo com o construtivismo kantiano do filósofo político estadunidense John Rawls, falecido em 2002, o bem e a justiça são derivativos, resumidamente, de uma concepção moral que consiste em “uma família ordenada de fins últimos que determinam a concepção que uma pessoa tem do que tem valor na vida humana digna de ser vivida”. E é curioso que justamente o conceito de dignidade  parece se esfumaçar no horizonte do futuro. Seja pelo conflito geracional que faz com que amaldiçoemos as gerações passadas pela degradação ambiental e erro nos cálculos econômicos, onde a variante do bem estar humano passou a ser incorporada muito tardiamente e com definições estreitas; seja pela quebra das promessas feitas em nossas infâncias, sobre uma realidade mais tolerável em Estados democráticos funcionais, em que seriamos livres, valorizados e respeitados em nossa integralidade. Do ponto de vista de um “complexo de Édipo hobbesiano”, a verdade é que atingimos a vida adulta em meio ao naufrágio, completamente desamparados, castrados e silenciados. A realidade da juventude brasileira é exemplo marcante, no qual me aterei, mas não diminui contextos outros, como dos jovens que convivem com guerras em seus países, sendo a nossa uma das faces de um problema generalizado e – como tudo no que tange à cultura jovem –globalizado. 

Me parece que aos atuais comentaristas do campo progressista se perde uma importante ferramenta de análise histórica quando não realizam a comparação gritante de que nossa juventude muito se assemelha com aquela dos anos 90 na América do Norte e Europa. Principalmente por protagonizar o avanço dos subempregos, aqui através do fenômeno da uberização; por uma falta de perspectiva em relação ao futuro, preenchida cada vez mais pela religião ou por promessas de gerência individual através da febre dos coachs financeiros; pelo desamparo da maquina pública, que no caso estadunidense se tangenciou na recessão pós guerra fria, pelo governo de George HW Bush e sua participação na Guerra do Golfo entre 1990 e 1991, e que em nossa conjuntura se dá pela intensa depressão econômica que o país atravessa desde o segundo mandato de Dilma Rousseff, após a queda do preço pago aos royalties do petróleo e a crise institucional que se iniciou com a conflagração do impeachment da mesma. Isso tudo catalisa um mal estar honesto para as gerações que se tornam jovens adultos em meio ao caos, que há trinta anos deu origem ao grunge, popularizou o hip hop e permitiu a insurgência de um robusto movimento anticorporativismo, porém que no caso brasileiro tende ao inverso, com cada vez mais jovens se resguardando na retórica do ultraliberalismo, do anti científico e na defesa do conservadorismo. 

É compreensível que assim seja, visto que aqueles que chegam à casa dos vinte anos de idade nesta década – eu mesmo incluso nesse grupo – vivemos majoritariamente nossas vidas sob um projeto de país social democrata, que até certo ponto bancou a agenda moral à esquerda e possibilitou aberturas importantes para que temas como a tolerância aos grupos LGBTQIA+ e o combate à formas mais escancaradas de racismo e machismo (ainda que suas variantes institucionais permaneçam demasiadamente sedimentadas) assumissem a justa centralidade; até mesmo através de leis que punem os praticantes de formas de violência desta estirpe, assim como uma intensificação no debate quanto aos direitos humanos, ampliações nas políticas para populações indígenas, avanços em torno de metas de justiça social – como a histórica e já decaída marca de analfabetismo zero – e toda uma gama de esforços notáveis, porém que, por sua vez, se mostraram insuficientes no que concerne ao estrutural, não alterando com a profundidade necessária o eixo de cada uma destas questões, residentes invariavelmente nos modelos de funcionamento econômico, educacional, jurídico e geográfico da nação. Sendo assim, os que hoje bradam em defesa do conservadorismo estão se opondo ao status quo anterior, projeto que deixado pela metade não consolidou suas raízes e permitiu que dos espaços abertos surgisse uma bizarrice conceitual, isto é, uma rebeldia conservadora. 

Ainda que se apresentem como sintomas de um tecido social fragmentado, marcados por uma polarização esgarçada ao extremo, todos estes tópicos supracitados soam como ecos vindos da mesma avalanche: não há projeto político bem definido em curso. Sentimos isso quando não há devido amparo para o ingresso no mercado de trabalho, quando se requer uma ultra qualificação para cargos de estágio – é comum que vagas de auxiliar exijam proficiência em idiomas estrangeiros, uma diversa gama de cursos e experiências anteriores, que para alguém de vinte e tantos anos pode parecer uma tarefa hercúlea – ademais as enormes taxas de desemprego, que em decorrência da pandemia de Covid-19, se projeta que atinjam 17 milhões de brasileiros ainda este ano, conforme aponta indicador da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Fora isso, o fenômeno da uberização tenciona a juventude à ocupações precárias. Em pesquisa divulgada em julho de 2019, a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas informa que entre os entregadores de aplicativos nesta modalidade 75% tem entre 16 e 27 anos de idade, ganhando em média R$ 992,00 mensais, abaixo do salário mínimo. A falsa autoproclamada liberdade que este ramo dos aplicativos fornece se fragiliza cada vez mais ao serem deflagrados casos insalubres e desumanos de trabalho, atingindo fatos lamentáveis como a morte do entregador Thiago de Jesus Dias, aos 33 anos, que sofreu um acidente vascular cerebral enquanto realizava entregas. 

Como bem pontuou Noam Chomsky, liberdade sem oportunidade é uma dádiva do demônio. Isto resvala no procedimento punitivista estatal, em sua epopeia de segregação das oportunidades quando, segundo dados do Infopen, ao menos 55% da população carcerária do país – a terceira maior do mundo – é formada por jovens até 29 anos, uma grande parcela consistindo em presos provisórios, que ficam estigmatizados por toda a vida mesmo em casos de delitos pequenos e penas brandas. Outro dado é a crescente adesão de jovens ao pentecostalismo e neopentecostalismo, sendo que em recente estudo do DataFolha se revelou que 31% da população brasileira se considera evangélica, deste total 30% constituindo de pessoas entre 16 e 34 anos de idade, e conforme sabemos, e digo por experiência própria ao ter passado longas manhãs de domingo nos bancos da igreja quando criança, é comum entre as denominações evangélicas uma ética compartilhada de apologia à prosperidade financeira, geralmente cercada de algum tipo de indulgência, que se esforça em entregar um aporte às inseguranças individuais dos fiéis.

Longe de serem informações jogadas ao ar despropositadamente, todos estes fatores se cruzam quando adotamos uma abordagem holística e estrutural do perfil do jovem brasileiro. Em síntese, não é difícil pensarmos em um exemplo a nossa volta, de alguém entre 18 e 26 anos, desempregado, com dívidas da faculdade, batalhando por um trocado na informalidade e tentando se agarrar em qualquer resposta plausível para o que será o futuro, acreditando em velhos políticos profissionais, velhos comunicadores ou velhos líderes, quando não se espelhando na vida de hedonismo constante dos influenciadores digitais. 

E como se não bastasse toda essa confusão, somos surpreendidos com uma pandemia global, de dimensões titânicas e duração indeterminada. A tragédia que se desenha, e que marca a história como um período de enorme tristeza, traz consigo exemplos de decrepitude da abordagem nacional em relação à saúde da juventude. Em meio ao fato, trazer a luz fatores de comportamento, discurso e práticas políticas é um tanto difícil – apenas compreenderemos o período atual em sua totalidade, se isso ocorrer, em um momento outro. Porém não extingue a responsabilidade de nos atentarmos a pontos particulares deste mal-estar que só tende a se agravar com o isolamento compulsório e o inevitável pânico pelo qual estamos todos tomados. Apesar de não sermos diretamente o “grupo de risco”, estamos vendo familiares e amigos próximos convivendo com uma enfermidade aterrorizante e fatal. Distantes de nossos espaços cotidianos, experienciamos uma solidão preenchida por estímulos constantes dos meios de comunicação que incentivam, mesmo que de forma não auto consciente, a ansiedade e nebulosidade quanto ao futuro.

Vale destacar que o Brasil figura como o país que mais consome antidepressivos na América Latina, com um amento de 23% no período de 2014 à 2018, acima da média mundial, sendo em nosso continente o país com mais casos de ansiedade e o segundo em casos de depressão. Nesta mesma linha, em boletim divulgado em setembro último pela Secretaria de Vigilância em Saúde, se constatou uma tendência de aumento dos casos de suicídio em 10% no período de 2011 a 2018, representando 6% do total de mortes violentas na faixa etária de 15 a 29 anos. Me assusta que para alguns o pós pandemia se mostre como uma “nostalgia do presente”, para usar o termo de Fredric Jameson, onde a visualização de uma crise ainda mais grave no futuro imediato – economistas como Monica De Bolle alertam para a possibilidade de retração de até 9% do PIB ainda em 2020 – faz com que a catástrofe já disposta seja minimizada, debilmente amenizada frente as visões de uma profecia de má sorte. O isolamento que enfrentamos, somados a ineficácia dos governos em fornecer respostas e suportes mais contundentes, a demolição da estrutura econômica e o já consolidado colapso da adolescência são os sofrimentos da geração que tem em suas mãos a tarefa de resolver o impasse das mudanças climáticas e limpar a bagunça do carnaval neoliberal. 

Para o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, o mal-estar pode ser definido como “essa ausência de lugar ou essa suspensão da possibilidade de uma escansão no ser, a impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar pela floresta da vida”. A falta de um projeto político claro, conseguinte da dependência com que nos encontramos das instituições sociais já estabelecidas dão o tom deste sentimento. Me referi no começo do texto ao arquétipo do jovem conservador na intenção de ilustrar o sintoma, pois tenho a impressão de que a compulsão por reafirmar as instituições advém de um grito de socorro, para que as mesmas forneçam esse conjunto de respostas das quais estamos desesperados para obter. O Brasil pós pandemia, porém, se esboça como um país em que as instituições, sejam públicas ou privadas – ou por excelência, ideológicas – estarão funcionalmente em xeque, isto porque as questões estruturais estão novamente longe de serem tratadas com profundidade, e com um recuo monstruoso na capacidade produtiva de nossas industrias, a supervalorização da loteria que é o empreendedorismo individual e uma moral conservadora apoiada pelo governo federal, o mal-estar tende a se tornar crônico.

A incapacidade do mandato de Jair Bolsonaro, afora toda a linha de montagem de bizarrices que o mesmo gera, de lidar profissionalmente com questões pragmáticas concernentes à realidade do povo brasileiro além de cruel é invariavelmente extenuante, tornando ainda mais tardia a possibilidade de uma reviravolta na hegemonia institucional – deflagra o atrofiamento das expectativas. O que temo, citando com alguma adaptação a filósofa belga Isabelle Stengers, é que “esse desespero possa se traduzir numa reação defensiva”, porque considerável parte do campo progressista brasileiro, ou até mesmo o famigerado “centrão”, igualmente não oferecem respostas para a crise. Se a juventude brasileira se equipara em muito com a dos anos 90 nos países do Norte, a esquerda nacional também muito se avizinha da esquerda estadunidense da década de 80, focalizando tão somente nas políticas identitárias como pauta sem perceber o fio condutor que as une, insistindo em conspirar apenas entre os convertidos, sendo sectária com setores não organizados em partidos e se escorando no fraco discurso fetichista de retomada das bases, que é colocado centralmente em grandes seminários no Sesc e posto na agenda das prioridades, mas não passando de um desejo sem tática clara e substantiva. Essa postura, evidentemente defensiva, dialoga naturalmente com a da juventude conservadora, pois me parece que ambos os lados do jogo estão em meio ao vácuo da burocracia, aguardando em súplicas alguma resposta do contrato social. 

A complicação do cenário é inegável, e a lista de ingredientes pode ser ainda mais ampliada. Todavia, as questões essenciais hão de surgir: que fazer? Qual o limite das lógicas pré estabelecidas de mercado em termos de superar a epidemia e fornecer um futuro mais ameno para a atual geração? Ou ainda, de que maneira podemos nos apoderar da realidade, e com isto digo, dos mecanismos de operação da política e dos discursos? Para além das propostas de Piketty sobre redistribuição de renda e superação das desigualdades, para além da crítica de Slavoj Zizek e Castells à dinâmica capitalista contemporânea, o que nós, dos vinte e poucos anos, devemos reivindicar e efetivamente construir? Tendo a acreditar que esperar é a única resposta errada. Passividade significa pegarmos o bastão de uma corrida já perdida na largada. 

A estabilidade que a hegemonia das democracias neoliberais prometeu fornecer sofreu duros golpes ainda recentes, especialmente após o colapso financeiro de 2008 e dos episódios de insurgência na Ucrânia e Grécia, de forma mais demarcada, mas com demonstrações de semelhante escopo ao redor do globo, incluso o Brasil nas jornadas de 2013. Independente da localização na régua do espectro político (aqui incluo portanto a acensão da extrema direita no mundo), as movimentações de revolta anti sistema são flagrantes de um estágio avançado e talvez terminal de uma forma de capitalismo incompatível com o desafio da experiência humana.

Particularmente, acredito que a tarefa na qual devemos nos debruçar seja sim pensar um novo mundo, um novo modus operandi, aliado do que temos de avanços em termos de políticas identitárias e novas tecnologias econômicas e de justiça social, substancialmente atento à urgência climática e comprometido com a preservação ambiental, porém sob a luz de um conceito de certa forma simples e auto evidente – e aqui retorno a John Rawls – que é a reconquista da dignidade. Dignidade é uma palavra de forte significado. Tratá-la com responsabilidade exprime um apreço irrestrito pelas faculdades humanas de assegurar o bem estar, ou seja, o inverso do “não lugar”, da “não política” e da “não história”, das negações conceituais que povoam o imaginário dos críticos de gabinete. Dignidade performa como uma ideia propositiva, vigilante quanto a sanidade do existir e do estar, substituindo a demanda em favor do projeto, e adotando o pragmatismo em detrimento das especulações vazias. 

Como aluno de graduação prestes a me formar, me entristece, porém não me surpreende, que o governo federal tenha anunciado o corte das bolsas para o programa de iniciações científicas do CNPq nas áreas de ciências humanas nas últimas semanas. É previsível porque não há nada mais perigoso do que gente jovem e desprendida pensando a sociedade com rigor científico e identificando minunciosamente as lacunas do poder. Fazer ciência se tornou, sob o regime Bolsonaro, uma profissão quase criminosa, marginalizada e assustadoramente coagida, mesmo que tenhamos uma enorme capacidade de contribuição em um momento de pandemia. O conhecimento, principalmente aquele que é livremente compartilhado e ousa ocupar os espaços do discurso cotidiano, desafia os paradigmas dispostos e é subversivo, e tem a irremediável qualidade de apontar caminhos para fora da histeria.

A resposta para a crise da juventude brasileira certamente não virá exclusivamente das universidades, mas pode ter nestas um poderoso apoio. Além disso, movimentos autônomos de moradia, caridade, luta por segurança alimentar, combate ao fascismo, como exemplos, são de um acúmulo excepcional de táticas que certamente fornecem pistas sobre como agir, por estarem há muito atuando onde o poder estatal e das grandes corporações se esquiva. Por isso, penso que independente da verborragia eleitoral e da propaganda em favor da repetição de fórmulas ultrapassadas do início do século XX, a preocupação central e inegociável para um futuro outro é nada senão defender a dignidade de viver, romper com o mal-estar imposto pelas gerações passadas e ditar o que queremos do mundo sob nossa própria ótica. A amargura da pandemia de Covid-19 terá seu fim, e em algum instante do futuro próximo as regras sistêmicas haverão de ser questionadas. A emergência de agora é proteger a saúde e segurança, individual e também a do outro, contudo o ponto de mutação se aproxima. Que possamos manter nossas mentes abertas e limpas e os corações dispostos para a construção de uma nova realidade pós pandemia. 

Referências 

_Dunker, C. Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Boitempo, 2015. 

_Rawls, J. Justiça como Equidade: uma reformulação.  Martins Fontes, 2003

_Stengers, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Cosac Naify, 2015.

_Perfil epidemiológico dos casos notificados de violência autoprovocada e óbitos por suicídio entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, 2011 a 2018. Boletim Epidemiológico. Número 24, Volume 50. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. 2019. 

_Pesquisa de Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo. Associação Brasileira do Setor de Bicicletas. 2019

_Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas

_Onda de revisões já apontam para recuo de até 9% no PIB do Brasil em 2020. https://exame.abril.com.br/economia/onda-de-revisoes-ja-apontam-para-recuo-de-ate-9-na-economia-em-2020/

_Cresce Mais De 20% O Consumo De Antidepressivos No Brasil.  https://www.ictq.com.br/farmacia-clinica/1105-cresce-mais-de-20-o-consumo-de-antidepressivos-no-brasil

*Icaro Andrade, 20 anos, estudante de Geografia na Universidade de São Paulo, fez parte das ocupações secundaristas de 2015/16

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.