O soldadinho e a bailarina menstruada: ser criança no Bozoquistão não é brincadeira não!

Fórum Folia: Em meio a tantas tristezas, decepções e preocupações, convido a todos para voltarem a ser criança por um dia, relembrando o desfile da União da Ilha de 2014

Ilustração: DCG
Escrito en DEBATES el

Por Estevan Mazzuia*

12 de outubro: em 1492, Cristóvão Colombo chega ao continente que seria denominado América, acreditando ter chegado às Índias; feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil, um Estado laico, mas que pode ser cristão sempre que a gente puder esticar a pausa do trabalho.

Mas tudo isso a gente só descobre depois. 12 de outubro sempre será o Dia das Crianças. Acredito que seja a primeira relação que desenvolvemos com uma data específica. Possivelmente, antes mesmo de assimilar a data de nosso aniversário, aprendemos que dia 12 é o dia das crianças, de ganhar brinquedo e brincar com nossos pequenos amigos. A gente cresce e segue empurrando com a barriga, postergando o ano do último presente.

Eu não sei quando ganhei meu último mimo de dia das crianças, mas lembro bem da angústia de meus pensamentos: “este ano, acho que já não vou ganhar mais nada”. Legalmente, deixamos de ser criança aos 12 anos. A partir daí, vivemos o limbo da adolescência. Quem se importa? A vovó vai continuar nos tratando como criança até uns 30 anos. Ainda bem!

Em diversos países, adotou-se o 1º de junho como dia dos pimpolhos. Para a ONU, a comemoração ocorre em 20 de novembro, quando foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança em 1959 e a Convenção dos Direitos da Criança em 1989.

Por aqui, o 12 de outubro foi adotado por iniciativa do deputado federal Galdino do Valle Filho, transformada no decreto nº 4867, de 5 de novembro de 1924, assinado pelo presidente Arthur Bernardes. Getúlio Vargas tentou mudar a comemoração para 25 de março, mas a ideia não vingou. Contudo, somente a partir de 1960, em decorrência de uma bem-sucedida campanha publicitária de uma fabricante de brinquedos, que o 12 de outubro entrou de vez para o calendário comercial, tirando do baú o decreto de Bernardes.

Eu aguardei a chegada desta data para abordar, nesta coluna, um dos desfiles carnavalescos que mais me tocou, de uma das escolas de samba mais queridas: o Grêmio Recreativo Escola de Samba União da Ilha do Governador, a tricolor insulana.

A escola, que teve sambas antológicos que se tornaram obrigatórios em churrascos, festas de formatura e casamentos, como “O Amanhã” (1978) e “É Hoje” (1982), levou para a Sapucaí o enredo “É brinquedo, é brincadeira. A Ilha vai levantar poeira!”, de Alex de Souza, no ano de 2014.

A proposta era fazer com que todos voltássemos no tempo para recordar momentos que fizeram parte de nossa infância. A comissão de frente trazia um casal de idosos que entrava em um grande baú de recordações, de onde saía como duas crianças. Paralelamente, duas artistas húngaras, do Cirque du Soleil, pulavam cordas.

O baú era uma grande alegoria, que trazia, dois artistas australianos representando uma bailarina e um soldadinho de chumbo. Vinham ao lado da estrutura, presos a longas hastes flexíveis que permitiam que os dois balançassem pelo ar, de um lado a outro, numa performance impressionante. Dentro do baú, a filha do coreógrafo Jaime Arôxa, de 26 anos, representava uma criança.

A partir daí, 3500 componentes, distribuídos em 32 alas, 7 alegorias e 2 tripés, recordavam brinquedos e brincadeiras, de uma forma intensamente original, com poucas plumas.

Os guardiões do de mestre-sala e da porta-bandeira simbolizavam peças de dominó, e deitavam-se uns sobre os outros, enfileirados, durante a apresentação do casal. A saia dela tinha a forma de um dado.

Logo atrás, um grande bebê, todo de branco, engatinhava pela avenida. Eu chorei com os velhinhos voltando a serem crianças, chorei com a sensibilidade da opção pelo bebê, choro de rever, choro de lembrar, e choro ao escrever sobre o que vi. Um desfile que, definitivamente, entrou para o MEU baú de memórias.

Diversas bonecas eram representadas na ala seguinte, sobre patins. Logo atrás as famosas matrioscas russas. O detalhe é que o carnavalesco desenvolveu a maioria dos figurinos de forma a disfarçar ao máximo os componentes, transformando os chapéus das fantasias em cabeças ou partes dos brinquedos representados. Ele foi muito feliz na realização de sua ideia, que proporcionou maior volume às alas, além de um efeito incrível, convincente, e de leitura imediata, pelo público, do que estava sendo mostrado na avenida. Por outro lado, esconder rostos e bocas abafa o canto da escola, e ela seria penalizada por isso.

À frente do abre-alas, a velha-guarda representava a eterna juventude. A alegoria, maravilhosamente iluminada, trazia a fantástica fábrica de brinquedos, com São Nicolau, que deu origem ao Papai Noel, como destaque.

No primeiro setor, brinquedos clássicos como cavalinhos de pau, bonecas de porcelana, ursinhos de pelúcia e caixas-surpresas com bonecos de mola eram seguidos por palhaços.

A segunda alegoria representava uma loja de brinquedos. Quem não era seduzido por aquelas vitrines coloridas e ricas em detalhes? Até hoje eu pego minha enteada emprestada para entrar em uma loja, com a desculpa que é ela quem quer visitar… como o samba dizia: “na vitrine vejo o meu olhar, no seu olhar”. Quatro impressionantes esculturas de bebês de sete metros de altura perfeitamente acabadas movimentavam os braços e piscavam os olhos, em meio a um colorido espetacular.

Um quebra-cabeças formava um brasão da escola (lembrando, ainda aqueles tapetes emborrachados sobre os quais brincam os petizes, muito na moda), e era seguido por cubos mágicos, pega-varetas e pecinhas de montar (lego e afins), no setor dos brinquedos educativos, encerrado por mais uma colorida e iluminada alegoria, repleta de brinquedos geométricos.

Seguiram-se os jogos competitivos, com o xadrez e os peões coloridos, da ala “avance uma casa”, jogos de guerra, e a ala das baianas, com saiotes representado bolas de futebol. Uma grande mesa de totó (ou pebolim) era representada na quarta alegoria, “vivendo e aprendendo a jogar”. O carro teve problemas para sair da avenida, mas não comprometeu o julgamento do quesito evolução.

No setor dos jogos eletrônicos, uma ala lembrava o pinball, ou fliperama, e outra, vista de cima, lembrava o jogo de videogame mais popular do mundo, “pac-man”, com os integrantes formando um labirinto, enquanto outros representavam os fantasminhas e o protagonista comilão.

Os heróis He-man e She-ra foram representados no segundo casal da escola. Bruna Bruno, rainha de bateria, era a mulher maravilha, à frente dos ritmistas, conduzidos por Mestre Thiago Diogo, que representavam um novo personagem: o super-herói insulano.

A ala “game-over” trazia a frase mais temida pelos amantes de videogames, e vinha à frente dos “Transformers”.

A quinta alegoria, “brincando com a tecnologia”, trazia personagens de “Star Wars” e apresentou algumas falhas de iluminação, além de um enorme telão de led, que se inclinou para a frente, colocando em risco a segurança de um destaque que tinha sobre ele. Dois julgadores penalizaram a escola pelos problemas apresentados.

Deixando de lado a tecnologia, Pinóquio, bailarinas, soldadinhos de chumbo, Visconde de Sabugosa e Emília vieram à frente de um tripé que representava uma carruagem, trazendo a atriz Cacau Protázio como princesa, ao lado de seu príncipe. O elemento alegórico também teve falhas de iluminação que também foram penalizadas no julgamento da escola.

Seguiram-se o caubói e o astronauta de Toy Story, à frente da sexta alegoria, que trazia uma imensa escultura de Pinóquio (cujo nariz crescia ao longo da avenida), em meio a um castelo formado por livros, com o velho Gepeto (de carne e osso) à frente. Na parte de trás, uma escultura de Chucky, o “brinquedo assassino”.

No último setor, as brincadeiras mais simples, e os brinquedos mais baratos, como petecas, piões, pipas, bonecas de pano, bruxinhas, fantoches e marionetes. A ala das crianças, com trajes típicos de regiões brasileiras, vinha à frente da ala “o futuro da nação”, que tinha uma indumentária simples, mas que não comprometeu o conjunto.

Na última ala, os foliões simulavam brincadeiras de rua e interagiam com a última alegoria, em tons de barro, simbolizando o “quintal do Brasil”.

Como dizia a maravilhosa letra do samba composto por Paulinho Poeta, Régis, Gabriel Fraga, Carlinhos Fuzil, Canindé e Flávio Pires, puxado por Ito Melodia, filho do eterno e saudoso Aroldo Melodia:

“Brinque com o que a vida lhe dá / o barro vira ouro no chão
Vem reciclar a saudade, de ioiô nas mãos de iaiá / Nas travessuras ao léu, por esse imenso país
Vai colorindo o céu em um bailado feliz / Meu carnaval é o quintal do amanhã”

Com 298,4 pontos, a agremiação conquistou o quarto lugar e o direito a desfilar no sábado das campeãs, depois de 20 anos. Somente em duas oportunidades a União da Ilha esteve entre as três primeiras colocadas: 1977 e 1989. Portanto, ao lado de 1978 e 1994, este pode ser considerado o terceiro melhor resultado de sua história. Em 1980 ela foi considerada vice-campeã, mas houve um tríplice empate no primeiro lugar. E o vice-campeonato foi dividido com outras duas escolas.

Em 2020, a União fez um desfile ruim, e acabou rebaixada, após uma temporada de onze desfiles seguidos no grupo especial.

Espero que a mensagem da Ilha, em 2014, nos encha de esperanças em um país onde meninos são expostos fazendo gestos de armas em punho, ou com simulacros de armas de fogo, e meninas pobres, de famílias que estão brigando por ossos para fazer sopa, não possam receber gratuitamente absorventes, utilizando jornal, miolo de pão, ou qualquer coisa que possa amenizar os inconvenientes da menstruação.

Ainda que meninas carentes faltem às aulas durante o período menstrual, e os artifícios utilizados possam causar infecções sérias, para o atual desgoverno federal, armas e munições parecem ser elementos mais essenciais à vida.

Como dizia o samba da Ilha em 2014,

“Tá na hora, vamos simbora / Amar é dar proteção ao maior tesouro da nação!”

Que tais versos deixem logo de ser poesia, e passem a integrar a realidade brasileira.

Feliz dia das crianças!

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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