Os números contra a realidade, por Alexandre Santos de Moraes

"Não bastasse serem menos assustadores do que deveriam, o governo lançou a suspeição de que os dados estariam sendo inflados. Trata-se de mais um capítulo da guerra de informação que se tornou marca desse grupo político"

Foto: Marcos Corrêa/PR
Escrito en DEBATES el

Por Alexandre Santos de Moraes*

Bolsonaro é perito em acumular inimigos. Após se insurgir contra tudo e contra todos, o presidente decidiu iniciar uma guerra contra os números. A primeira decisão foi postergar a divulgação dos dados sobre o coronavírus, que passaram a ser informados às 22:00h, e não às 19:00h ou 17:00h, como no início da pandemia. Em entrevista no Palácio da Alvorada, Bolsonaro explicou as razões: “acabou matéria no Jornal Nacional”. Também nesse período, os dados oficiais passaram a omitir os números totais. No sábado, 6 de junho, o site oficial com as informações ficou fora do ar. Finalmente, no dia 7, também por decisão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde foi constrangido a fazer com que o número de mortos pela Covid-19 fique abaixo de 1000 por dia.

A realidade, é bom que se diga, não cabe nos dados oficiais. Os números são uma tentativa de interpretar o mundo. São úteis para produzir sínteses, tornar os fenômenos sociais inteligíveis e garantir repertório para a análise dos fatos. Além das margens de erro, consideradas em qualquer divulgação, os números são impessoais. Quando se diz, por exemplo, que “dez pessoas morreram", à reboque dessa nova uma informação surgem vários silêncios irrespondíveis: quem eram essas pessoas? Como avaliar o sofrimento por que passaram? Quais os impactos dessas mortes nas famílias? Como ficaram os amigos? Em que circunstâncias morreram? Quantas dessas mortes eram evitáveis?

Os números ajudam a explicar a realidade, mas não permitem senti-la. Nada disso, porém, é suficiente para torná-los desprezíveis. Pelo contrário, os números são recursos poderosos para identificar problemas, avaliar tendências, produzir diagnósticos, propor políticas públicas, buscar soluções. No caso da atual pandemia, a certeza é de que os números, por mais assustadores que sejam, representam pequena fração do problema que enfrentamos. Muitas pessoas adoecem e morrem sem procurar ajuda especializada. A maioria dos infectados não apresenta sintomas. Incontáveis são as vítimas que padecem sem que a doença tenha sido diagnosticada por falta de testes. Nesse caso, as projeções tendem a ser mais confiáveis do que os dados oficiais. Os números mentem, é verdade, mas não porque fazem a realidade parecer pior: eles mentem porque a realidade é muito mais difícil do que são capazes de mostrar.

Não bastasse serem menos assustadores do que deveriam, o governo lançou a suspeição de que os dados estariam sendo inflados. Trata-se de mais um capítulo da guerra de informação que se tornou marca desse grupo político antes mesmo da eleição de 2018. Para eles, a realidade vale menos do que as versões caricatas e oportunistas que podem produzir a seu respeito. Após a “gripezinha”, o “não sou coveiro”, “todos vão morrer” e o “e daí?”, Bolsonaro tenta de todas as formas falsificar os efeitos da pandemia para levar os brasileiros ao abatedouro. A estratégia é típica de ditaduras e o governo pode ter buscado a inspiração em nossa experiência doméstica: em 1972, durante surto de meningite, a Polícia Federal, sob o comando do coronel Moacyr Coelho, enviou ordem à imprensa que proibia a divulgação dos dados.

A reclusão é péssima para os negócios, o governo já disse. O compromisso é com o dinheiro do empresariado e não com a vida. Ao longo desse tempo, além de lavar as mãos (transferido ora para os governos estaduais e prefeituras, ora para o sistema de Justiça a responsabilidade pela interrupção das atividades econômicas), Bolsonaro foi mais do que explícito ao afirmar sua preferência pela disseminação rápida da epidemia como forma de construir a chamada “imunidade de rebanho” sem nem mesmo garantir acesso amplo à rede pública de saúde. A ideia, transparente como água, é que os mais fracos devem morrer o mais rápido possível para retomarmos a “normalidade”. É uma prática eugenista e genocida, sabemos bem, e que funciona muito melhor quando as pessoas ignoram os números.

Ficar em casa, distante de todos, é muito ruim. Todos sabem disso. Bolsonaro também sabe. Com o passar do tempo, as dificuldades vão aumentando. O dinheiro fica mais escasso, a apatia aumenta, novos problemas surgem, o cansaço grita. No momento de recrudescer a campanha e ampliar as condições para o isolamento, Bolsonaro faz o perfeito oposto do que é necessário para preservar as vidas. Não menos cruel do que censurar ou dificultar o acesso à informação é definir uma cota razoável de mortos por dia. Quando se coloca o teto de divulgação de mil mortes, por paráfrase se conclui que mil mortes são aceitáveis. Esse é um efeito cruel e menos visível da mentira, mas igualmente perverso e assassino: a ideia de que as coisas não estão piorando porque “apenas” mil pessoas estão morrendo diariamente.

Mas, se os números são frios, é nossa tarefa aquecê-los. Mil mortos são mil pessoas que passaram por enorme sofrimento. São mil pessoas que padeceram com falta de ar, com febre alta e tosse persistente. São mil pessoas que foram enterradas sem poderem ser veladas. São mil pessoas que foram privadas de suas ambições, de seus sonhos e projetos de futuro. São mil pessoas que deixaram milhares de pessoas a seu redor aos prantos e com a certeza de que nunca mais poderão vê-las. Mil pessoas são mil dores incontáveis. Bolsonaro parece não apenas tolerar tudo isso, mas estimular que estejamos morrendo em grupo de mil, até que paremos de morrer por falta de mortos. E sabemos que não são mil pessoas, pois os números mentem, mas não mentem tanto como Bolsonaro, que é mentiroso compulsivo e oportunista. É um sujeito mau, cruel, e as pessoas precisam saber disso. Talvez assim fiquem em casa, mesmo a contragosto, mesmo contra sua vontade, só para não dar ao presidente o gostinho de ver mais e mais pessoas morrendo em sua sanha insaciável por mortes.

*Alexandre Santos de Moraes é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da UFF.

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.