Senado foi enganado: EC 106 autoriza BC comprar qualquer ativo sem limite, por Maria Lucia Fattorelli

"Esse verdadeiro golpe financeiro poderá chegar a vários trilhões de reais, e só irá beneficiar bancos e demais instituições financeiras (fundos), às custas de comprometimento gravíssimo do orçamento público e da geração de dívida pública"

Foto: Ana Volpe/Agência Senado
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Por Maria Lucia Fattorelli*

A forma como cada nação está respondendo aos impactos econômicos e sociais gerados pela crise da pandemia do coronavírus mostra claramente a escolha de prioridades e o respeito que cada país tem com sua população e sua economia. Uma das maiores economias capitalistas do mundo, a Alemanha, está praticando uma política de ajuda e recuperação de empresas nacionais, com o objetivo de manter empregos. Segundo o site de notícias alemão, DW, o governo alemão está comprando ações, injetando dinheiro diretamente nas empresas nacionais, passando a ficar sócio delas e participar de seus lucros:

“(…) o acordo prevê que o governo alemão passe a controlar 20% das ações da empresa, podendo ainda aumentar sua cota para 25% mais
uma ação, no caso de uma tentativa de compra por uma terceira parte. O objetivo é proteger milhares de empregos.”

Enquanto isso, no Brasil, o Congresso Nacional aprovou a PEC 10, já promulgada como Emenda Constitucional 106, mediante a qual nenhuma empresa será beneficiada como declarou o próprio relator Antonio Anastasia no Senado, chegando a usar essa afirmação como argumento para rejeitar emendas de senadores que pediam para incluir no projeto a exigência de contrapartidas, como a manutenção de empregos:

“(…) a natureza do mercado secundário e as características dos títulos a serem adquiridos impedem que se imponha restrições relativas à dispensa de pessoal ou às bonificações de diretores de empresas, pois a empresa não-financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido. Em verdade, o grande objetivo desta medida é dar liquidez ao mercado secundário, gerando confiança em seu regular funcionamento, sem beneficiar individualmente qualquer empresa, mas sim todo o sistema de crédito.
Daí a impossibilidade de acolher as emendas que se referem a estas limitações, não por seu justo mérito, mas por impossibilidade fática.(…)”

Na Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia também foi à tribuna para afirmar que “o Banco Central não vai comprar títulos novos e injetar dinheiro diretamente nas empresas, mas comprar títulos já emitidos e que fazem parte do patrimônio de fundos.(…) Esses títulos já estão no mercado. A empresa já emitiu o título, já está no mercado.”(leia: https://bit.ly/2AfiJDo)

Assim, os parlamentares que votaram favoravelmente à PEC 10 foram avisados de que somente bancos e grandes corporações ligadas a eles serão beneficiadas, o que foi também alertado pela Auditoria Cidadã da Dívida em Notas Técnicas (Ver Nota 5 anteriores).

De acordo com a EC 106, o Banco Central poderá comprar, sem limite, qualquer tipo ativo, inclusive papéis podres em poder de bancos e fundos. O presidente do Banco Central afirmou que a operação vai custar R$972,9 bilhões, porém, esse valor não inclui a atualização monetária de títulos acumulados na “carteira podre” há 15 anos, como revelou levantamento feito pela IVIX Value Creation, publicado pelo Estadão.

Portanto, esse verdadeiro golpe financeiro poderá chegar a vários trilhões de reais, e só irá beneficiar bancos e demais instituições financeiras (fundos), às custas de comprometimento gravíssimo do orçamento público e da geração de dívida pública sem contrapartida alguma, pois os trilhões serão gastos para a compra de ativos podres.

A EC 106 não estabeleceu limite algum para essa temerária operação, que também não terá transparência alguma, como se depreende da notícia “O Banco Central avalia comprar cestas de títulos privados” .

A notícia citada confirma que a beneficiada da operação será a instituição financeira que detém a cesta ou pacote de títulos privados, e não as empresas que estão precisando de ajuda para pagar seus empregados e funcionar durante a pandemia. Ademais, não se poderá conhecer ou estabelecer qualquer tipo de controle sobre o tipo de papel efetivamente comercializado, pois o Banco Central irá comprar uma “cesta de títulos”, que pode conter inúmeros tipos de distintos papéis financeiros, inclusive títulos sem valor comercial algum, que não poderão ser identificados, pois estarão “empacotados” na referida cesta.

Esse “empacotamento” torna sem sentido falar em “risco de crédito” (limitado aos classificados em grau especulativo BB- ou superior) ou “preço de referência”, pois cestas de títulos misturam diversos tipos distintos de papéis financeiros, de naturezas diversas, riscos diversos e preços de referência diversos e até, em muitos dos casos, inexistentes, escondendo a verdadeira identidade e qualidade dos títulos que estão sendo de fato negociados.

Na pressa para aprovar a PEC 10, a Câmara dos Deputados suprimiu justamente a discriminação dos tipos de títulos que o Banco Central poderia comercializar, como havia sido negociado no Senado, com o objetivo de restringir a atuação do BC àqueles ativos.

Essa supressão gerou um texto inconstitucional, tendo em vista que a Câmara dos Deputados e o Senado acabaram aprovando textos diferentes. Diante dessa irregularidade, o partido Cidadania apresentou a ADI 6417 ao STF pela inconstitucionalidade de seu artigo 7º.

Diante disso, surge a oportunidade de o STF barrar esse golpe financeiro de trilhões, que evidencia o oportunismo dos bancos de se aproveitarem do drama da pandemia para aprofundar os seus privilégios, comprometendo de forma definitiva o desenvolvimento socioeconômico do país.

*Maria Lucia Fattorelli é Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.