Sobre cidade e aglomerações no contexto do coronavírus

Frente a este cenário de incertezas em todo o mundo, especificamente no que diz respeito ao espaço urbano e à dimensão coletiva da vida na cidade, a crise da COVID-19 pode alterar de anteriormente impensável para bastante possível a ideia de um mundo comum que, segundo Hannah Arendt, nos faz transcender para além da esfera privada

Avenida Paulista em tempos de coronavírus (Foto: Roberto Parizotti)
Escrito en DEBATES el

Por Robertha Barros e Paulo Victor Melo*

O teólogo e filósofo Leonardo Boff escreveu há alguns dias que a pandemia do novo coronavírus representa uma “oportunidade única para que repensemos o nosso modo de habitar a Casa Comum”[i]. Concordando com Boff, acreditamos que a proliferação em larga escala da COVID-19, que tem mobilizado esforços dos diversos setores do Estado e da sociedade, exige uma reflexão sobre a “nossa casa em comum”, a respeito da cidade que produzimos sob os ditames do capitalismo.

Se tomarmos a realidade brasileira como paradigmática, iremos compreender que não apenas o estímulo ao consumo - por meio, por exemplo, de ações como as famosas “black fridays”, que promovem imagens de empurrões e cotoveladas em grandes centros comerciais e shopping centers, constituindo “não-lugares”[ii], conceito cunhado por Marc Augé ao refletir sobre as mudanças das cidades com o surgimento desses novos espaços de consumo -, mas a própria busca por direitos fundamentais se alimenta do fenômeno das aglomerações.

O direito de ir e vir é desafiado pelas aglomerações diárias em ônibus, trens e metrôs; o direito à saúde é quase inviabilizado pelas aglomerações, inclusive nas madrugadas, em hospitais e unidades de pronto atendimento; o direito à moradia digna e o direito à cidade são negados aos habitantes de aglomerados subnormais.

Longe de ser um processo natural, essas aglomerações na busca por direitos refletem profundas desigualdades econômicas e sociais que se verificam em nível global. De acordo com o mais recente relatório da Oxfam[iii], divulgado em janeiro deste ano, o número de bilionários duplicou na última década. São atualmente 2.153 bilionários, que juntos têm uma riqueza superior a 60% (4,6 bilhões de pessoas) da população mundial.

Sétimo país mais desigual do mundo, também em ranking da Oxfam, o Brasil tem 43 bilionários, sendo que apenas cinco (Jorge Paulo Lemann, Joseph Safra, Marcel Herrmann Telles, Carlos Alberto Sicupira e Eduardo Saverin) têm um patrimônio superior a todo o recurso de 50% das brasileiras e brasileiros. O país de Lemann e Safra é o mesmo que tem, atualmente, dentre todas as pessoas empregadas, 41% na informalidade, além de 12 milhões de pessoas desempregadas.

Ao remeter à existência de tensionamentos e contradições entre o direito à cidade e o direito de propriedade, que surgem no contexto de conflitos fundiários urbanos, a formação da cidade é uma expressão emblemática das desigualdades citadas anteriormente.

No Brasil, segundo números do IBGE, cerca de 11,4 milhões de pessoas vivem em ocupações irregulares com carência de serviços públicos essenciais, em espaços urbanos que refletem assimetrias expressas nos déficits de oferta de serviços, equipamentos e redes de infraestrutura públicas.

Esse cenário evidencia, conforme frisou o geógrafo Milton Santos[iv], a ordem capitalista dominante de uma globalização perversa, onde atores hegemônicos (instituições financeiras e empresas capitalistas multinacionais e transnacionais), para atender aos seus fins particulares de maximização de uma mais-valia global, subordinam territórios, frações e espaços inteiros, através de um direcionamento altamente seletivo e segregador.

Em consonância com o dito por Milton Santos, Mike Davis[v] nos alerta que a produção em massa da pobreza e da segregação socioespacial urbana, sustentadas em regulações urbanísticas excludentes, que se são pactuadas entre Estado e setor imobiliário, pode ser constatada em números que exprimem a escala planetária da favelização[vi].

O que observamos no Brasil, de um modo geral, é a concentração da maior parte de recursos, de infraestrutura e equipamentos públicos em áreas especificas, nas chamadas áreas “formais” da cidade, embora essas áreas abriguem um contingente populacional restrito, com densidade populacional mais baixa, composta por segmentos com faixas de renda média e alta.

Por outro lado, os espaços ditos informais da cidade – onde vive parte significativa da população - são marcados por negação de direitos sociais. São áreas com densidade populacional mais alta, não por acaso, situada nas faixas de nenhuma ou de baixa renda, espelhando uma lógica que vulnerabiliza, marginaliza e aglomera os mais pobres em condições de habitabilidade precárias.

Dados da Fundação João Pinheiro - instituição especializada na produção de estatísticas e na criação de indicadores econômicos, financeiros, demográficos e sociais – apontam que o país tem uma demanda habitacional de 6,3 milhões de domicílios, considerando o déficit habitacional e a inadequação de moradias[vii].

Como déficit habitacional – composto por habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados - a FJP entende a necessidade de construção de novas unidades habitacionais “para a solução de problemas sociais e específicos de habitação, detectados em certo momento”[viii], sendo a ideia de déficit quantitativo. Já a inadequação de moradias indica problemas numa dimensão da qualidade de vida dos moradores, com seu dimensionamento visando o “delineamento de políticas complementares à construção de moradias, voltadas para a melhoria dos domicílios”[ix].

São justamente as famílias que não têm habitação ou vivem em moradias inadequadas que mais são afetadas pela crise ocasionada pela pandemia do novo coronavírus, visto que não possuem condições objetivas, materiais, de atender às necessárias recomendações de isolamento social da Organização Mundial de Saúde e demais órgãos de saúde e vigilância sanitária internacionais e nacionais. São as desempregadas/os, trabalhadoras/es da informalidade, pessoas em situação de rua e outras vulnerabilidades, obrigadas a aglomerar-se cotidianamente na luta diária por direitos.

Ao caracterizar o coronavírus como “o perfeito desastre do capitalismo de desastre”, a jornalista Naomi Klein nos lembra que “em momentos de mudança cataclísmica, o anteriormente impensável de repente se torna realidade”[x]. E o coronavírus tem apontado alguns exemplos: na Irlanda, o governo anunciou seis semanas de pagamentos emergenciais a todos/as os/as trabalhadores/as que perderam o emprego. No Reino Unido, como forma de evitar demissões, um pacote de medidas inclui o pagamento pelo Estado de até 80% do salário dos/as empregados/as. Conhecida por ter uma das políticas fiscais mais duras, a Alemanha anunciou um pacote de 800 bilhões de euros para sustentar a economia do país, sendo aproximadamente 160 bilhões para pagar benefícios sociais. Na Venezuela, dentre outras medidas de proteção, o Estado assumirá o pagamento dos salários dos/as trabalhadores/as de pequenas e médias empresas do setor privado pelos próximos seis meses. Até mesmo no Brasil, em que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, tem defendido o fim do isolamento e o progressivo retorno das pessoas às suas rotinas, destacam-se algumas medidas adotadas por governos estaduais e, mais recente, a aprovação pelo Congresso Nacional de um auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, a trabalhadores/as informais que não recebam benefícios assistenciais ou previdenciários[xi].

Frente a este cenário de incertezas em todo o mundo, especificamente no que diz respeito ao espaço urbano e à dimensão coletiva da vida na cidade, a crise da COVID-19 pode alterar de anteriormente impensável para bastante possível a ideia de um mundo comum que, segundo Hannah Arendt, nos faz transcender para além da esfera privada, pois é aquilo que produzimos e realizamos no mundo comum, e que tem presença pública, que sobrevive para além da breve existência humana[xii].

Partindo da concepção de Arendt, há, portanto, o desafio do pensar/efetivar a cidade enquanto espaço público que traduz a noção de eternidade, pois como coletividade somos mais do que simples indivíduos, sendo a diversidade um elemento inerente ao mundo comum. Afinal, o que é a cidade se não o mundo comum?

*Robertha Barros é urbanista, doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente na Universidade Federal de Sergipe, atualmente em estágio doutoral na Technische Universität Berlin (Alemanha)

Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia


[i] BOFF, Leonardo. Coronavírus: o perfeito desastre para o capitalismo de desastre. 2020, s/p. Em: https://leonardoboff.wordpress.com/

[ii] “São não-lugares, na medida em que a sua vocação primeira não é territorial, não é a de criar identidades singulares, relações simbólicas e patrimônios comuns, mas antes de facilitar a circulação (e, dessa maneira, o consumo)”. AUGÉ, Marc. Le temps em ruines. Paris: Galilée, 2003, p. 85.

[iii] OXFAM. Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. 2020, p. 5.

[iv] SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 2000. / SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2004.

[v] DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

[vi] Em Planeta Favela (2006), Davis apresenta dados do Relatório The Challenge of Slums, publicado no ano de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat), segundo o qual a população das favelas no mundo cresce na base de 25 milhões de pessoas por ano, sendo que essa população foi estimada em 921 milhões de pessoas no ano de 2001, e 1 bilhão em 2005.

[vii] Fundação João Pinheiro (FJP). Déficit Habitacional no Brasil: resultados preliminares – 2015. 2017. FJP: Belo Horizonte. Em: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-deficit-habitacionalno-brasil-3

[viii] Idem, p. 10.

[ix] Idem, ibidem.

[x] KLEIN, Naomi. Coronavírus: como vencer o capitalismo que se abastece de desastres? 2020, s/p. Em: https://theintercept.com/2020/03/21/coronavirus-capitalismo-de-desastre/

[xi] O auxílio será de R$ 1200 para uma casa que possua duas pessoas adultas nessas condições, mesmo valor a ser recebido por mulheres que criem sozinhas os filhos.

[xii] ARENDT, Hannah. A condição humana. Chicago: University of Chicago Press, 1985.