Um país que não valoriza seu cinema é um país que não se ama; por André Azenha

Se os bolsonaristas prestassem tanto atenção nos Estados Unidos, entenderiam que o Tio Sam sempre considerou o cinema algo fundamental para promover seus costumes, dentro de seu território e, principalmente, fora dele

Cena de Central do Brasil (Arquivo)
Escrito en DEBATES el

Por André Azenha*

Na última semana, o site da Cinemateca Brasileira chegou a sair do ar. Funcionários estão sendo demitidos. O espaço de preservação da memória do cinema brasileiro enfrenta crise sem precedentes. Fruto do desmonte perpetrado pelo Governo Federal, que enxerga seus principais inimigos nos segmentos que estimulam o pensamento: Educação e Cultura.

A Educação sofre uma verdadeira dança das cadeiras. Ministros vem e vão. Sem contar aquele que seria, mas não foi. Os cortes em pesquisas e nas universidades não cessam.

Na Cultura, o que era Ministério foi reduzido à Secretaria logo no primeiro dia de mandato, em 1º de janeiro de 2019. Contou e conta, é verdade, com profissionais da área à frente. Um imitou Goebbels, o Ministro da Propaganda Nazista. A seguinte fez ode à Ditadura e jogou uma extensa carreira na televisão pelo ralo. O atual representante da pasta era galã de quinta categoria e não apareceria nem em notas de rodapé da história da teledramaturgia brasileira, não fosse alçado a Secretário Nacional do setor. E agora pede que o filme brasileiro que tentará a vaga ao Oscar 2021 seja alinhado ao pensamento (?) do governo. Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos citavam esses tipos lá nos idos dos anos 1990 em uma faixa que talvez eles não achassem que se manteria relevante mais de duas décadas depois.

“Vamos celebrar a estupidez humana / A estupidez de todas as nações / O meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões” – Versos de Perfeição, música da Legião Urbana

O bolsonarismo tem sido sustentado, em boa parte, por quem celebra a estupidez. Trata-se de uma extrema-direita chula, hipócrita e totalmente contraditória, que faz uso de símbolos nacionais como a bandeira nacional e a camisa da seleção brasileira, mas entregam nosso Estado ao interesse estrangeiro. São imitadores bem ruins de Donald Trump e companhia. Péssimos imitadores. Erguem a bandeira dos Estados Unidos e acabam com a produção cultural brasileira.

Paulo Betti, em conversa recente comigo, destacou a falta de preparo dos últimos representantes da Secretaria de Cultura e citou o próprio Sérgio Paulo Rouanet, autor da lei que leva seu sobrenome e é desancada pela extrema-direita. O consagrado ator de tantos papeis de destaque na TV, teatro e cinema lembrou: o próprio Sérgio era alguém de direita, mas erudito, doutor em ciência política e medicina e que entendia a importância de uma cultura nacional pujante.

Se os bolsonaristas prestassem tanto atenção nos Estados Unidos, entenderiam que o Tio Sam sempre considerou o cinema algo fundamental para promover seus costumes, dentro de seu território e, principalmente, fora dele. Percebam: conhecemos mais os bastidores da Casa Branca graças aos filmes e séries de Hollywood, do que os interiores do Palácio do Planalto.

A indústria audiovisual de lá não depende tanto do apoio público tal qual a produção daqui. Há quem tentará argumentar que é preciso priorizar investimentos em saúde, segurança, etc. Compreendo, ainda mais num país com uma das maiores disparidades sociais do mundo, com grande parte de sua riqueza concentrada em poucas pessoas. Só que a Cultura pode desempenhar um importantíssimo papel, inclusive na autoestima de um povo, trabalhada junto à educação, ao turismo, à economia.

Vejamos, para exemplo, o caso da Coreia do Sul: um país bem menor que o Brasil, investiu fortemente na educação, no cinema, promoveu cotas de tela e arrebatou a principal estatueta do Oscar, este ano, com Parasita. Foi um longo e eficiente processo. O cinema sul-coreano se destaca em festivais não é de hoje, influencia cineastas de várias partes do mundo, entrega filmes dos mais variados gêneros, estilos, capazes de fazer refletir, provocar e entreter. Nos serviços de streaming encontramos vários deles. Com incentivos fiscais, públicos, educação forte, cultura estimulada, a Coreia do Sul tem levado sua gente e seu jeito de ser ao mundo. Nada é por acaso.

Porém, o país asiático é apenas um caso de como o audiovisual, com o devido apoio, promove resultados positivos. Não entro nem no mérito dos milhares de empregos gerados, da economia que gira, e do que retorna em impostos ao Estado – Paulo Guedes, que adora falar em austeridade fiscal, deveria chamar a atenção de seu chefe para a cadeia audiovisual e tudo o que ela proporciona. Fiquemos, entretanto, apenas na propagação dos costumes, da imagem do país, suas paisagens, jeitos de ser, vestir, sua gastronomia que, quando mostradas na telona ou na telinha e levadas ao mundo, contribuem direta ou indiretamente para o turismo, para a exportação de produtos, de conhecimento.

Algo recorrente comigo é encontrar alguém que pergunta: por que o cinema brasileiro não consegue ser tão bom quanto o argentino? Pacientemente me proponho a explicar que nem todas as produções dos país vizinho chegam ao Brasil. Que aportam por aqui somente as melhores. E que temos, sim, grandes filmes, prestigiados várias vezes mais no exterior do que dentro das nossas fronteiras. Em algumas das vezes esse tipo de questionamento é feito por quem justamente prega que não deve existir leis de incentivo, Lei Rouanet e por aí vai. Se essas pessoas se atentassem aos letreiros iniciais dos filmes da Argentina, perceberiam que na Terra de Juan José Campanella e Ricardo Darín (diretor e ator que trabalharam juntos várias vezes, inclusive no vencedor do Oscar de filme em língua estrangeira O Segredo dos Seus Olhos) o Estado incentiva sua cadeia audiovisual.

Temos parte de uma elite que adora ir à Paris e citar suas visitas ao Louvre e à Torre Eifell, dizer ter amado filmes tipo Intocáveis (2011, de Olivier Nakache e Éric Toledano), mas esbraveja por que o cinema brasileiro precisa dos incentivos fiscais. Novamente: basta uma olhadela nos letreiros dos longas franceses para perceber o apoio estatal em sua indústria cinematográfica.

Esse apoio se dá ainda em séries como La Casa de Papel, da Espanha, ou O Assassino de Valhalla, da Islândia, ambas produzidas e disponibilizadas no Netflix e elogiadas em solo brasileiro.

Sabe aquela história do sujeito classe média alta que tem nojo de andar de transporte público ou pegar o metrô em São Paulo, mas faz selfie no metrô de Nova York? Funciona para a relação com o cinema e a cultura em geral.

Outro clichê recorrente é a crítica negativa aos filmes que mostram as periferias. Vez ou outra nos deparamos com alguém reclamando da pobreza e da violência retratadas nas produções brasileiras a exemplos de Cidade de Deus e Tropa de Elite. Essas mesmas pessoas celebram Quem Quer Ser Um Milionário?, coprodução entre Reino Unido e Estados Unidos cuja trama é ambientada na Índia e reúne vários atores indianos. Esquecem que esta mesma obra copia descaradamente temas, personagens e até a fotografia de cores saturadas de Cidade de Deus e que o filme de Fernando Meirelles é referência internacional, tendo influenciado cineastas do Ocidente e do Oriente.

A animação O Menino e o Mundo (2013) alcançou a façanha de ser indicada ao Oscar da categoria, concorrendo com pesos pesados da Disney e do espetacular estúdio japonês Ghibli. No Brasil, foi visto por cerca de 35 mil pessoas. Na França, um público praticamente três vezes maior prestigiou a fábula criada por Alê Abreu: 100 mil espectadores, num país menor em território e população. Ok, na França há muito mais salas de cinema do que em nosso país e uma cultura cinéfila enraizada. O que nos impede de desenvolver algo parecido?

Sempre que houve liberdade criativa e o país passava por um momento de certa estabilidade na economia e investimentos em educação, o cinema brasileiro brilhou. Fosse entre os anos 1950 e 1960, culminando na Palma de Ouro em Cannes para O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte e, quase ao mesmo tempo, com o Cinema Novo, ou no início do Real com a Retomada e as praticamente consecutivas indicações ao Oscar de filme em língua estrangeira para O Quatrilho (1995), O Que é Isso Companheiro? (1997), Central do Brasil (1998, que ainda concorreu a atriz com Fernanda Montenegro), e às quatro indicações em categorias principais para Cidade de Deus (2002).

Passou da hora de perdermos nossa “síndrome de vira-latas”, como dizia Nelson Rodrigues. O cinema nacional possui talentos em diferentes setores. Volta e meia é premiado nos principais festivais do mundo. O próprio Bong Joon-Ho, diretor de Parasita, disse ser fã de Glauber Rocha. Somos um povo que consome filmes e maratona séries americanos, das mais às menos famosas, mas faz ranço quando Rodrigo Santoro e Alice Braga conseguem papeis por lá. Sem contar o tempo que Sonia Braga, a responsável por abrir esse caminho, enfrentou críticas injustas por fazer sua carreira no exterior. Alberto Caeiro, o poeta bucólico criado por Fernando Pessoa, há bastante tempo, versava sobre a valorização do que é nosso.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia – Fernando Pessoa

Paulo Emilio Salles Gomes costumava defender que o pior filme brasileiro era mais importante do que o melhor filme estrangeiro. Figura fundamental na criação da Cinemateca Brasileira, o historiador, crítico de cinema, professor, ensaísta queria dizer que era justamente o filme brasileiro que nos mostrava, nos dava protagonismo. Hoje essa afirmação pode ser reavaliada, pois com a globalização e o intercâmbio cultural um acontecimento do outro lado do mundo afeta, em pouco tempo, nosso cotidiano. Vide a pandemia do novo coronavírus. Entretanto, em muitas situações é sim o cinema nacional que nos revela, nos abraça. Quando alguém reclama dos filmes “sobre favela” seria um mea culpa em relação à desigualdade social do país, fruto de injustiças estruturais de séculos e do egoísmo exacerbado da parte de alguns? Seria puro e simples fascismo? Preconceito de classe?  Algo a ser refletido.

Ao tentar dinamitar a Cinemateca, retirar cartazes de filmes brasileiros da Ancine, cancelar editais de séries LGBTQIA+, paralisar o fundo setorial de audiovisual (cuja verba vem do próprio segmento), o Governo Bolsonaro, representado por Mario Frias, remete à Alemanha de 1933. Somente uma corrente cinematográfica até hoje teve data para terminar. O expressionismo alemão, alçado à categoria de arte degenerada por Hitler e seus parceiros. Esse mesmo expressionismo seria influência primordial para o desenvolvimento do cinema nos Estados Unidos, dos clássicos de terror aos filmes noir e à ficção científica. Hollywood não seria a mesma sem que cineastas alemães cruzassem o oceano fugindo do Füher e da Segunda Guerra. Foi preciso um trabalho hercúleo de cinéfilos e historiadores para recuperar cópias da produção cinematográfica alemã dos anos 1920.

Só que Bolsonaro é pior. Alguém que não se preocupa em ler, estudar – e o fato de ter condições financeiras e notadamente jamais ter procurado melhorar seus conhecimentos, só escancara seu desprezo pelo ensino, pelo conhecimento e pela cultura. Hitler e Mussolini deixavam claro seus objetivos nefastos. Em relação ao atual presidente ficamos sem saber: quem está por atrás dele? Quais os interesses em destruir a cultura, a educação, toda a estrutura de Estado? Cogitamos hipóteses tentando entender essa política kamikaze que só tende a causar retrocessos no país. Bolsonaro não entende que governa para todos e que um país só se reconhece enquanto nação graças à sua cultura, sua história. Coloca sua ideologia torpe à frente da população que deveria cuidar, educar, incentivar. Bate palma aos states, porém não entende que lá o governo não diz o que diretores, roteiristas, produtores, atrizes, atores e artistas em geral devem ou não filmar, criar. Tanto que há filmes demolindo George W. Bush, desancando Trump, Dick Cheney e, nem por isso, a Casa Branca ou o Pentágono tentaram impedir seus lançamentos. Se por acaso esses sujeitos se sentem injustiçados quando presentes nos filmes, livros, etc, podem ir à justiça. Jamais censurar a obra. Somos imaturos nesse sentido. E somos governados por entreguistas que atuam a favor de um imperialismo que nada tem a nos oferecer.

Eu gosto do cinema hollywoodiano, inclusive dos super-heróis. Há pouco tempo entrevistei o cineasta capixaba Rodrigo Aragão, um dos expoentes do cinema  de horror brasileiro – gênero que outra vez, vejam só, chama atenção aqui após receber vários prêmios e elogios no exterior. O diretor me disse algo que assino embaixo: um país que não valoriza seu cinema é um país que não se ama. Já passou da hora de aprendermos a nos amarmos e dos nossos líderes amarem seu povo.

*André Azenha é Mestre em Comunicação, crítico de cinema e produtor cultural