64 anos do Nakba: A limpeza étnica da Palestina e as responsabilidades ocidental e brasileira

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No aniversário do Nakba ('Catástrofe'), um especial da Fórum reconstitui a pré-história do massacre que expulsou 750.000 palestinos de suas casas. 

Por Idelber Avelar [15.05.2012 08h04]

 I- A Palestina Árabe

A derrota que os árabes impuseram ao domínio bizantino na Palestina, confirmado entre os anos 633 e 638 da era cristã, foi bem recebida pela população local, tanto por cristãos como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos numericamente importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos os motivos para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos (aliás, no início do período árabe na Palestina—que se estenderia pelos próximos 1.300 anos–, uma pequena população judaica voltaria a se estabelecer em paz em Jerusalém, depois de 500 anos de ausência, que datavam da sangrenta expulsão que os romanos lhe haviam imposto no segundo século da era cristã). O período árabe também foi bem recebido pelos cristãos da região, que “eram arameus [e] não ficaram incomodados pela organização árabe, pois a etnia era semelhante, de origem semítica”, não tendo eles “motivos para gostar da administração bizantina, de origem romana, não semítica”1. Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a atmosfera não tinha muito em comum com o regime de terrorífica perseguição que se instalaria nas regiões controladas pelo Cristianismo. A Sura 2 de Maomé explicitamente rejeita a conversão e o proselitismo violento: “Não obrigueis ninguém em assuntos de religião”. A violência sectária só voltaria a se disseminar na Terra Santa com as empresas cristãs de conquista conhecidas como Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II em 1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em 1099, uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe, ironicamente semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as construções israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.

As cruzadas à Palestina enfrentariam os muçulmanos locais aos invasores cristãos, com a pequena população judaica da região frequentemente lutando ao lado daqueles contra estes, como em 1099, em Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século XII, na época da Segunda Cruzada, os muçulmanos se reunificam politicamente sob o comando do General Saladino, curdo nascido em Cairo. Saladino recupera Damasco (1174), Acre, Jafa, Beirute, e a própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira Cruzada, Ricardo Coração de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a negociar e celebrar o tratado de paz que “abriu caminho a um período de calmaria militar e tolerância religiosa na Palestina”2, permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio para a região da atual Turquia, instalando o Império Latino de Constantinopla. A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada de Federico II que, conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter do sultão a entrega pacífica, embora condicionada, de várias terras e das cidades de Belém, Nazaré e Jerusalém, onde o imperador entrou e foi coroado em 1229”3. Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último reduto cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O controle de toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os atuais territórios de Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria em mãos árabes até a invasão turco-otomana, em 1517. Mesmo durante o período marcado pela sua incorporação ao Império Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma interrupção egípcia durante a década de 1830), a Palestina manteria sua enorme maioria árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na região, que o império turco não alteraria significativamente.

As sucessivas demonstrações de desmemória na política ocidental para o Oriente Médio contrastam com o forte arraigo que certos eventos históricos possuem na reminiscência das massas árabes. Em 1993, acusado de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que não concedia nada aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas as condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz, mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor noção do que se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de notar a ironia involuntária da impotente insistência de Arafat na menção a Saladino. Antes de entrar no período histórico que imediatamente influencia o curso dos acontecimentos que nos ocupam, portanto, é boa ideia lembrar alguns fatos que se desprendem desse esquemático sumário de alguns séculos de história palestina. Inicia-se no século VII uma intensa arabização da região, que já era visível em séculos anteriores a Maomé, mas que solidifica suas raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em 638, e a construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos os árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias judias na região.4 Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano) tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes cristãos e 59.000 judeus.5 De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos, a população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11% judaica. No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região, mesmo depois de 60 anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação ilegal, você verá desinformados funcionários da grande mídia dissertando, “mui ponderadamente”, sobre os “direitos” dos dois povos sobre a Palestina.

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