Arqueóloga desvenda a arquitetura da repressão de centros de tortura da Ditadura

Utilizando a Arqueologia Sensorial e a Arqueologia da Arquitetura, Caroline Murta Lemos demonstra como a experiência de detenção era determinante nos porões da ditadura para obtenção de informações

Sede do DOI-CODI no Rio, instalada no quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército, no bairro da Tijuca (Foto: Fundo Última Hora/Apesp)
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Por Roger Marzochi* É comum associar o trabalho do arqueólogo às aventuras de um Indiana Jones. Para além da mística dos filmes de ficção, que não correspondem aos heróis da realidade, um outro movimento tem ocorrido nessa disciplina. Por anos, o trabalho desse profissional foi o de escavar para encontrar estruturas de povos antigos, vestígios de passados distantes ou nem tão remotos. Há muito nesse trabalho a prevalência da visão como guia não apenas em campo, mas em relatos científicos do projeto de pesquisa. A partir dos anos 2000, ocorreu uma mudança com intuito de quebrar o paradigma visual nesses estudos, consolidando a chamada Arqueologia Sensorial. Neste método, entram em observação não apenas aspectos visuais, mas outros sentidos como olfato, tato e audição. Com base nesse tipo de abordagem, utilizando-se também das ferramentas de estudo da Arqueologia da Arquitetura, a arqueóloga Caroline Murta Lemos defendeu, no fim de outubro, a tese de doutorado “Arquitetando o terror: um estudo sensorial dos centros de detenção oficiais e clandestinos da Ditadura Civil-Militar do Brasil (1964-1985)”, na Universidade Federal de Sergipe. Lemos mergulhou na arquitetura de casas de tortura oficiais e clandestinas para retratar o peso mais profundo dos anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil. Nos últimos quatro anos, ela visitou centros oficiais como o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), em São Paulo, além de locais clandestinos de tortura e extermínio de prisioneiros como a Casa Azul, em Marabá, no Pará, e a Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Como a pesquisadora diz logo no início da tese, todo o projeto de pesquisa transcorreu durante o período mais conturbado da política brasileira, com o impeachment de Dilma Rousseff e a vitória da extrema-direita nas eleições de 2018, com defesas enfáticas a torturadores e à Ditadura. E, agora, com defesas explícitas de agentes do Estado conclamando por um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso, ampliou cassações de mandatos políticos e escancarou o terrorismo de Estado. “Levando isso em consideração, apresento esta tese como mais uma voz contra esse governo e tudo que ele representa. Esta tese sou eu colocando meu bloco na rua em defesa da democracia e dos direitos humanos”, escreve Lemos, em sua Introdução, em uma citação à música “Eu quero é botar meu bloco na rua”, de Sérgio Sampaio (1972), a qual a pesquisadora divulga em epígrafe. De acordo com a tese, o DEOPS e o DOI-CODI, de São Paulo, eram centros oficiais “ligados a fortes aparatos repressivos da ditadura e juntos fizeram mais de mil de vítimas com detenções, torturas e assassinatos”. Lemos cita o relatório do “Projeto Brasil: Nunca Mais”, no qual das 1.370 denúncias de tortura durante a Ditadura no Estado de São Paulo, 1.002 eram relativas a esses dois aparatos de terrorismo de Estado. De acordo com o “Relatório de Tombamento do DOI-CODI”, de Debora Neves, a estimativa é a de que o DOI-CODI tenha feito 57 mortos e desaparecidos de 1970, data de sua criação, até 1977; já no DEOPS 36 pessoas teriam sido mortes e desaparecidas entre 1968 até 1976. Este órgão funcionou até 1983, enquanto o DOI-CODI, até 1982. Segundo Lemos, essas edificações eram determinantes no processo de interrogatório e tortura. “Como as estratégias de repressão e resistência são materiais, toda experiência humana ocorre no mundo físico. Os historiadores se baseiam nos fatos sobre quem controlava essas casas, sobre os presos que passavam pelo local. Mas como era a repressão cotidianamente?”, questiona a pesquisadora. Mas, não seria óbvio que essas casas tivessem uma arquitetura repressiva? Para a pesquisadora, a ideia foi justamente demonstrar como funcionava essa arquitetura repressiva, por uma perspectiva inédita dos estudos desse período. “Muitas pessoas falam sobre as sessões de tortura. Mas ninguém fala sobre como a experiência de detenção era fundamental para que os agentes conseguissem bons resultados nas sessões de tortura. A experiência de detenção dos presos e o papel que a materialidade dos centros desempenhava no condicionamento dessa experiência era tão importante e essencial no funcionamento desses órgãos quanto as sessões de tortura em si. Acontece que ninguém sabe nada sobre isso, esse assunto é inédito e não tem nada de óbvio”, afirma. “Minha pesquisa foi justamente sobre como esses espaços eram espaços de controle e vigilância e como eles buscavam destruir o psicológico e o emocional dessas pessoas para que elas dessem aquilo que eles queriam: informação.” Além de visitar esses locais, obtendo plantas das edificações, a arqueóloga realizou entrevistas com sete ex-presos políticos com o objetivo de entender as condições das celas, revestimentos das paredes, pisos, temperatura, lembranças sobre o cheiro do local, sabor da comida, luminosidade, memória auditiva do som naquele local e experiências de resistência dos presos. “Eu busquei estabelecer zonas de comunicação, por exemplo: o preso dentro da cela conseguia conversar com outros presos?; e o posicionamento do carcereiro, ele conseguia ouvir as tentativas de comunicação?”. Era estratégica, por exemplo, permitir que os presos ouvissem os gritos dos torturados. “Isso era para deixar o preso na expectativa que será o próximo, para criar um clima de terror constante.” Quando não foi possível a entrevista, a pesquisadora usou relatos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) ou na literatura sobre o tema. Foi assim o caso da Casa da Morte de Petrópolis, cuja única sobrevivente, Inês Etienne Romeu, morreu em abril de 2015, quando a pesquisadora iniciava o seu estudo. Essa casa, que começou a operar em 1971, teria sido o palco do assassinato de no mínimo sete pessoas, todas ainda desaparecidas. Com as entrevistas, a pesquisadora também discute as estratégias de resistência e ações físicas de edificações para impedir o diálogo entre os presos, como a construção de um muro separando as celas no DOI-CODI. As celas eram insalubres, grande era a sujeira, entre ratos e baratas, além de uma alimentação deficiente. “A arquitetura foi usada sabiamente para evitar o contato entre prisioneiros”, afirma, em entrevista. “Também foi constatado que as estratégias repressivas praticadas nesses espaços buscavam desconstruir a identidade do prisioneiro, disciplinando-o por meio de estímulos e privações sensoriais que afetavam seu sensorium, como, por exemplo: ameaças e humilhações; permanência por dias em aposentos sujos, muito quentes ou muito frios, pequenos e superlotados; detenção em regime solitário; capacidade limitante de manutenção da higiene pessoal; alimentação insuficiente e/ou de baixa qualidade etc”, escreve a pesquisadora em sua tese. Um exemplo de resistência que Lemos destaca em sua tese foi o caso de Ivan Akselrud de Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Ele foi preso, aos 16 anos, em 16 de abril de 1971 e levado ao DOI-CODI/SP junto com seu pai, dirigente do MRT, Joaquim Alencar de Seixas. Sua mãe também militante, Fanny Akselrud de Seixas, e suas irmãs, que não eram militantes, Ieda e Iara, também foram capturadas na residência da família e levadas ao DOI-CODI/SP. Em poucos dias de prisão, um outro prisioneiro político lhe pediu ajuda, porque havia sido preso com documento de uma organização da luta armada e precisava de uma desculpa para despistar os militares. Seixas conta, em entrevista a Lemos, que estava paralisado na cama após passar pela tortura do pau de arara e, mesmo assim, ajudou o rapaz. O prisioneiro iria dizer que encontrara os documentos em uma lata de lixo, mas Seixas explicou que os policiais saberiam que era mentira. “Eu acho que você vai apanhar muito, cara, isso aí não dá pra acreditar. Você tem que inventar uma história”, disse-lhe Seixas, que deu a seguinte ideia: diz que estava em um ponto de ônibus e um cara lhe entregou esses documentos por causa da sua aparência de estudante. “Ele subiu (para a sala de tortura), uma gritaria, foi um horror, uma tortura violenta. De repente, silêncio. Falei ‘Puta Merda! Mataram o cara, né.’. Aí vieram lá com ele todo arrastado e tal. Puseram na cela de novo e aí ele falou assim: ‘Falei o que você mandou.’. Falei: ‘Cara, não é mandou, não fala isso que pega mal, né.’. Então eu falei, falei: ‘E aí?’. ‘Ah, eles vão me levar daqui a pouco pro ponto.’ (...) Falei: ‘Ah, legal. Então você fica lá, não vão achar ninguém, ninguém vai aparecer porque é frio [ponto frio – local falso], né. E aí você se livra e vai embora daqui, cara.” Sobre a disposição dos cômodos dos imóveis, a pesquisadora notou que era estratégica a posição da sala de tortura, na maioria dos casos estudados, estruturada no local de mais difícil acesso das edificações. Ao menos na Casa Azul, local que era ocupado pelo antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), hoje Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), as torturas eram realizadas muitas vezes à céu aberto, uma vez que era o início da construção da Rodovia Transamazônica e o edifício era bem isolado. “Eles faziam tortura a céu aberto. A sala de tortura é uma das mais acessíveis, é uma das primeiras salas, ao contrário a todos os outros centros”, explica a pesquisadora. Além de serem locais de torturas e assassinatos, esses prédios clandestinos da Ditadura também serviam no intuito de transformar suspeitos em colaboradores do sistema. Segundo Lemos, na Casa Azul se buscava formar “mateiros” que pudessem se infiltrar na floresta para obter informações sobre a Guerrilha do Araguaia.  Entre os casos de estudo, só não foi possível fazer um trabalho apurado da Casa da Morte, porque a residência está ocupada. O atual proprietário permitiu a entrada da CNV, mas não com pleno acesso aos acômodos e sem fotografias e filmagens, afirmando que o local nunca foi utilizado para torturas. Apesar disso, os registros atestam que a residência foi, à época, um local clandestino da Ditadura. Lemos foi recebida pelo proprietário, que a deixou conhecer apenas o primeiro piso da edificação. Da varanda, é possível ver as serras fluminenses, num bairro que durante a década de 1970 era pouco habitado, mal podia se imaginar que dentro daquelas paredes o terror imperava. “Ele renega essa memória coletiva histórica de que ali foi um centro de tortura”, afirma. Para ela, estudos como esse, são importantes para mostrar que a Ditadura Militar não foi um período de segurança e crescimento econômico, como muitos defendem. Documentos, vítimas, vestígios históricos atestam que houve terrorismo de Estado, com o fim da liberdade e a repressão aos direitos civis e humanos. “E essa violência, esse cala boca, essa repressão simbólica e física, não atingiu só a esquerda, mas todo mundo. Ela atingiu todas as classes sociais e durou muito tempo. As pessoas hoje, quando trazem a lembrança da Ditadura de volta para mostrar como elas estão a favor desse governo, elas acham que não seriam atingidas. As pessoas não entendem que o terrorismo de Estado prejudica todo mundo que de alguma forma não concorde com a ordem vigente, numa submissão que machuca de verdade.” *Roger Marzochi é repórter freelancer