Sem garantia de acesso a luz elétrica, Quilombo do Carmo, em São Roque, denuncia campanha de difamação

“É um quilombo que tem um histórico de conflito por conta de especulação imobiliária, expropriação de terras. São mais de 100 anos resistindo”, apontou o defensor público Andrew Toshio

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Na periferia rural de São Roque (SP) – cidade que integra a Região Metropolitana de Sorocaba e está na chamada “Área Conurbada de São Paulo” segundo a Anatel –, localiza-se um quilombo que há anos luta para ter seu registro concedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Enquanto os quilombolas não tem seu espaço oficialmente reconhecido pelo Estado, eles lutam por acesso à energia elétrica e sofrem uma campanha de difamação promovida por alguns vizinhos insatisfeitos.

“Desde que começamos a nos organizar politicamente, juridicamente e territorialmente, não faltaram ataques de vários adversários locais que buscam se organizar para criminalizar a causa, utilizando de todo tipo de artifício para prejudicar nossos associados, agregados e apoiadores”, relataram Altamiro de Araújo e Isaque da Cruz, lideranças quilombolas, à Fórum.

Registro

Nos registros do Incra, o processo corre desde 2006 sob o número 54190.002991/2006-06. Em 2000, a Fundação Palmares reconheceu a Comunidade Quilombola do Carmo e o patrimônio socioambiental a ela associado. Em 2007, a fundação expediu uma certidão. No entanto, até hoje, o Incra de São Paulo não concluiu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação. A demora foi alvo de ação movida pelo Ministério Público em 2010, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017.

Donos de uma terra de 2 mil alqueires paulistas em 1919 – o equivalente a 5 mil hectares –, os quilombolas hoje ocupam apenas 16 hectares e tem sofrido há anos uma dura campanha de difamação racista e discriminatória, que agora passa por uma mais intensa judicialização desde que uma ocupação se montou no local para retomar terras.

Com a chegada dos reocupantes – famílias que foram expulsas do passado e decidiram voltar –, houve uma intensificação dos ataques contra a comunidade, que conseguiu assistência jurídica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) e da Defensoria Pública da União (DPU).

Demanda por energia elétrica

Em ação movida em maio com o objetivo de cobrar fornecimento adequado de serviço público de energia elétrica à Comunidade Quilombola do Carmo, a DPESP, através do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (Nuddir), relatou parte das perseguições aos quilombolas e a redução territorial.

“A trajetória percorrida pelo Quilombo do Carmo até o presente foi permeada por violência e processos de expropriação do território tradicional, reduzido a menos de 1% da área original. Sem dúvida essa história marca a memória coletiva e certamente fragilizou laços comunitários, explicando, ao menos em parte, a existência de conflitos internos e as dificuldades de organização política e representação externa”, diz trecho da ação.

“Apesar de toda violência a que foi submetida a comunidade, a identidade quilombola está presente e o espírito comunitário se manifesta especialmente nas atividades e celebrações religiosas, fornecendo elo e sentido à vida coletiva”, apontam ainda os defensores do Nuddir.

Na ação, a Defensoria define a situação da distribuição elétrica no quilombo como uma “ofensa inadmissível a direitos fundamentais” com “risco potencial à saúde das famílias quilombolas e de toda a sociedade”. Apesar dos apelos dos moradores e da própria DPESP, há apenas um ponto de luz fornecido pela CPFL Energia para as 47 famílias da ocupação.

A CPFL alega que não há como ampliar a rede por irregularidade fundiária, no entanto a Defensoria destaca a intervenção do Incra, em 2018, em favor dos quilombolas em dois processos de reintegração de posse movidos pela Prefeitura e por um dono de terras da região. Esses processos estão sendo acompanhados pela DPU.

“De tudo que se pôde depreender até agora dos levantamentos realizados pela equipe da UFSCar, da trajetória histórica de expropriação que afligiu as famílias remanescentes do Carmo e restringiu sua ocupação territorial presente ao espaço da vila, e das demandas apresentadas pelos moradores locais, endossadas pelas famílias que tomaram à frente da ocupação, a área objeto da presente ocupação integra o território da comunidade remanescente de quilombo do Carmo e será incluída na proposta territorial a ser formalizada pelo RTID”, diz outro trecho do documento.

“Racismo estrutural óbvio”

O defensor público Andrew Toshio, um dos integrantes do Nudir e atuante na região do Vale do Ribeira desde 2012 prestando apoio jurídico a comunidades tradicionais, aponta que não é necessário o reconhecimento oficial do território quilombola pelo Estado para que os direitos fundamentais sejam garantidos às famílias. “A gente entende que as famílias tem seus direitos que devem ser preservados independentemente das questões fundiárias, independentemente das discussões jurídicas sobre o território. Mas, para além disso, existem marcos normativos que garantem direitos a essas comunidades reconhecidas em situação de vulnerabilidade”, afirmou. “Moradia digna não é só espaço físico e o contexto de pandemia exige que as pessoas fiquem em casa”, completou.

Segundo Toshio, o pedido liminar contra a CPFL por enquanto não foi aceito pela Justiça, mas o processo ainda vai continuar até uma decisão definitiva. A demanda está relacionada apenas aos ocupantes e não à Vila, composta pelos quilombolas que não saíram do local.

Questionado se enxergava a situação como racismo estrutural, o defensor foi categórico: “Dizer que é racismo estrutural é o óbvio, nossa função é identificar e combater o racismo de todas as formas”. “Em qualquer relação com o Estado, as comunidades quilombolas sofrem com o racismo estrutural, não só o Quilombo do Carmo ou na questão elétrica. As comunidades vivenciam relações que estão permeadas de racismo, ele é condicionante independente do interesse dos agentes”, declarou.

“Dizer que uma decisão que nega direitos para uma comunidade quilombola é uma decisão racista é um pouco dizer o óbvio. Quando se nega direitos a comunidades quilombolas, comunidades negras, que já sofreram processo de escravização e continuam sofrendo processo de exclusão e direitos são negados, é óbvio. Não quero dizer que essas pessoas são necessariamente racistas, mas o que está em jogo é uma sociedade que nega direitos a uma população”, finalizou.

Toshio ainda destacou o “histórico de conflitos” que o Quilombo do Carmo enfrentou. “É um quilombo que tem um histórico de conflito por conta de especulação imobiliária, expropriação de terras. Conflitos bastante violentos mesmo. São mais de 100 anos resistindo”, pontuou.

Campanha de difamação

Para o geógrafo Guilherme Pascal, o lobby político local fez com que a CPFL não instalasse os pontos de energia para os reocupantes. Pascal vive no loteamento vizinho, a Associação Residencial Ecológica Patrimônio do Carmo (Arepc), e tem uma relação próxima com a comunidade quilombola, atuando em defesa dos reocupantes e trabalhando com formação política.

O geógrafo denuncia a existência de uma persistente campanha de difamação coordenada por pessoas interessadas no fim do quilombo. Por conta de sua atuação política, o geógrafo também passou a ser alvo de ataques e já moveu processos. “Quando viram o povo se organizar, começaram os ataques. Iniciou-se uma campanha de calúnia e difamação pesada”, declarou.

"Eu também, assim como outros militantes da causa quilombola que colaboram de alguma forma, sofrem ataques de todos os gêneros, na vida pessoal e profissional. A militância para além de redes sociais causam esses dissabores”, declarou à Fórum.

Em um dos processos movidos por Pascal contra uma moradora que ele diz tê-lo difamado, a defesa anexou um e-mail que expõe de forma clara os ataques aos quilombolas. O geógrafo saiu derrotado na ação após o juiz entender que “espalhar um boato não é, por si só, dano moral”.

Em trecho do correio eletrônico é possível ler o seguinte: "Desde que as invasões começaram na região, há 2 anos, houve um aumento considerável de assaltos e violência praticada contra a fauna/flora. Alguns quilombolas legítimos, que desejam deixar o movimento são impedidos pelos seus líderes, que se impõem de truculência. De acordo com as informações que chegaram ao nosso conhecimento, os líderes do movimento mantém armas de fogo/corte num galpão metálico localizado à esquerda da entrada da invasão do Carmo, próxima à P4 do residencial”. Confira:

O e-mail foi escrito em 2018 por um morador da Arepc e enviado à Prefeitura e traz uma espécie de compilado de mensagens que foram postadas nas redes sociais por alguns vizinhos em 2017. Diversos comentários enviados para a Fórum mostram um grupo - minoritário dentro da Arepc - afirmando que os quilombolas são “criminosos assassinos de cães”, fazem gato elétrico, ameaçam mulheres e esfaqueiam morcegos. Pascal – identificado como Guilherme Fagundes - é atacado pessoalmente nessa postagem. O autor do e-mail citado acima, que comenta na postagem, ainda é exaltado como candidato à vereador. Confira:

“O que os motiva, muitas vezes isso, é a certeza da impunidade, pois atuam crendo que estão protegidos por uma questão de classe. Cabe aos movimentos terem uma postura firme, coesa, organizativa e com uma rede de proteção que envolvam outros movimentos sociais, órgãos de defesa jurídica, formação política, apoio de personalidades, partidos, sindicatos e afins. Mostrar que não estamos sozinhos e que daremos luz aos que se escondem e buscam, nas sombras, destruir pessoas e causas”, afirmou Pascal.

A diretora presidente da Arpec, Clarissa Barth, fez questão de ressaltar que o e-mail não tem nada a ver com a associação e que o responsável pela mensagem não atua hoje e nem atuava na gestão da Arpec na época da mensagem. “Sobre o teor dessa correspondência, eu só tenho a lamentar uma atitude dessas de um associado nossa em relação ao quilombo. A associação preza muito pela política de boa vizinhança com todas as comunidades do entorno. Nós nunca fizemos nenhum ato hostil contra essa comunidade e nem pretendemos. Nossa intenção é manter um bom relacionamento”, declarou.

“Nós não podemos afirmar que o aumento da violência tem alguma coisa a ver com a ocupação ou qualquer comunidade específica. Não temos nenhum indício disso. Eu acho que é uma informação leviana, não tem provas nem indícios disso. Não é o que a gente na associação considera”, apontou ainda.

Sobre o e-mail, Altamiro de Araújo e Isaque da Cruz disseram que“é apenas mais um episódio repugnante do que passamos aqui” e que pretendem acionar a Justiça contra o autor. “Esse e-mail inclui em sua denúncia acusações sérias que serão levadas à justiça para que ele responda e apresente todas as provas que diz possuir. Não aceitaremos mais calados esse tipo de ação que tenta macular a nossa história, nossa origem, nosso passado e nosso povo, iremos buscar justiça contra todos que tentaram ou tentam prejudicar a luta quilombola”, afirmam.

“Já fomos acusados de sermos criminosos, assassinar cães e roubar energia e água. Temos aqui apenas um ponto de energia que atendem 49 famílias e, mesmo assim, nunca puxamos energia ilegalmente de quem quer que seja. Usamos poço caipira para abastecer a comunidade e TODAS as casas possuem fossas ecológicas que não agridem o meio ambiente”, relatam.

“Vale ressaltar que quem decide se os quilombolas são ou não quilombolas são os estudos do Incra na construção da árvore genealógica e do estudo antropológico, não a opinião de outros. Os quilombolas tiveram que sair de sua região no passado e morar em cidades vizinhas, como Vargem Grande Paulista, pois o seu território foi reduzido de 2175 alqueires para 6 alqueires, uma perda de 99,72%”, completam.

O defensor Andrew Toshio disse que a Defensoria recebeu recentemente notícias sobre essa campanha, mas que ainda estão avaliando o que fazer. “Nós vamos dialogar com as lideranças para entender o contexto e ver as medidas que podem ser tomadas”, afirmou.

Traição?

Outro episódio que afetou os quilombolas se relaciona com um ex-líder da comunidade que acabou sendo desligado por ter se envolvido com figuras que atuavam contra o quilombo. O ex-líder teria se colocado contra o movimento de ocupação e tentou desmobilizar espaços de formação política articulados por movimentos. Após o desligamento, ele teria se aproximado de grupos conservadores pró-Bolsonaro. Há, inclusive, fotografias postadas por ele em suas redes.

“Esse sujeito ai dizia ser presidente de uma associação e que tinha advogado que estava defendendo a causa. Assim como falava que tinha contatos. Nem uma coisa se provou, nem outra. A associação estava sem eleição e abandonada, não tínhamos advogado e ele nem a cara queria dar e dizer que era parte da ocupação. Ele e a amiga dele lá jogaram os pretos na frente e ficaram de longe para ver o que ia dar. Nós arrancamos os dois daqui e onde ele está agora? Está lá fazendo reunião com gente do Patrimônio do Carmo e entregou a associação que ele dizia ter para o vereador local que ele falava mal”, afirmou Isaque da Cruz, liderança quilombola.

A Fórum optou por não divulgar a identidade do ex-líder, à pedido das lideranças.

Confira aqui a ação movida pela Defensoria Pública