Economista argentino desmente Folha, que atiçou extrema-direita ao falar que “produtos somem” de supermercados em Buenos Aires

Folha de São Paulo aumentou a onda de boatos e notícias falsas que a extrema-direita global tem produzido para atacar o governo de Alberto Fernández na Argentina. Confira vídeo de Rogério Tomáz Jr.

O economista argentino Sérgio Chouza (Reprodução/Youtube)
Escrito en GLOBAL el

Por Rogério Tomaz Jr.*

A Folha de São Paulo deu a sua contribuição – através da reportagem “Produtos somem das lojas na Argentina após congelamento” – para aumentar a onda de boatos e notícias falsas que a extrema-direita global tem produzido para atacar o governo de Alberto Fernández, que completou dez meses no cargo na última quinta-feira (10).

A matéria tratou a falta de iogurte natural e arroz integral em dois estabelecimentos no bairro de Palermo, área nobre de Buenos Aires, como uma prova de que o programa “Precios Cuidados” – que regula os preços de alimentos e serviços considerados essenciais para a sociedade – está causando o “sumiço” de produtos no comércio do país.

O tweet da Folha com a matéria tinha mais de 1.800 retuítes e superava a marca de 1.300 respostas até a manhã desta terça-feira (15). A ampla maioria dos comentários reflete uma orientação política típica da extrema-direita e muitos citam o termo “desabastecimento”, além de relacionar a Argentina com Cuba e Venezuela em tom depreciativo.

O economista Sergio Chouza, professor da Universidade Nacional de Avellaneda (UNAv), criticou a reportagem. “É absurdo o que [a materia] sugere. Na Argentina não há desabastecimento. Inclusive sugeriram isso antes do início da pandemia, para insuflar medo, e não aconteceu absolutamente nada”, enfatizou o economista.

“Sempre pode haver algum produto de nicho que, por determinado motivo, sofra algum efeito temporal que cause a sua falta, mas somos uma economia com 45 milhões de pessoas e dezenas de milhares de produtos diferentes. Não se pode falar de desabastecimento por algum produto em particular”, complementou Chouza, que ainda informou que “os indicadores de inadimplência do sistema financeiro estão quase voltando aos níveis anteriores ao da pandemia”.

O docente explica com mais detalhes a situação no vídeo abaixo [legendado] e diz que se houvesse qualquer sinal de desabastecimento no país, seria algo que “automaticamente estaria nas manchetes de todos os jornais argentinos, nos portais. Você veria reclamações nas redes, reclamações nos canais de televisão, nos jornais”.

https://www.youtube.com/watch?v=9zQxmMsK9lI

Reações da extrema-direita

A reportagem conseguiu a proeza de fazer os apoiadores da família Bolsonaro acreditarem na Folha de São Paulo. Um usuário do Twitter com nome de Luiz Antonio Costa (@PatriotaOnline), respondendo à postagem com a matéria, falou em “Sarneyização” argentina, fazendo referência ao governo José Sarney (1985-1990), quando houve tabelamento de preços dos itens da cesta básica. “Já vimos esse filme e sabemos que terá continuação”, escreveu Costa, que tem mais de 4 mil seguidores no microblog.

“Mais um congelamento q provoca desabastecimento, igual 100% dos anteriores desde o Edito sobre preços máximos de Diocleciano”, escreveu também no Twitter o usuário Guilherme Ayres (@gaslucas), reproduzindo a ideia à qual o título induz, a de que há um desabastecimento de alimentos no país.

“Los hermanos cruzando a fronteira em 3,2,1”, publicou Marla Sousa (@MarleideSousa6). “O socialismo corroendo um país. Até os gafanhotos fugiram da Argentina”, disse Fabio Hojjo (@fabio_hojjo).

Se a Folha pode inventar produtos que somem, o usuário Fernando Mammini (@FernandoMammini) seguiu o exemplo. “Já tem mercado paralelo”, disse.

Não faltaram “analistas de Internet” prevendo tempos piores. “Votaram nesse comunista, agora aguenta, o pior ainda virá”, emendou a usuária “Eliane 38” (@DalleEliane).

Desmentidos
Brasileiros que vivem no país – como este jornalista – negam o cenário “denunciado” pelo título da reportagem, que utilizou uma generalização grosseira para fazer uma crítica política ao programa “Precios Cuidados”, ouvindo até um economista para justificar a tese que orientou o texto.

“Também moro aqui e confirmo a informação: comprei nessa semana vários produtos do programa "Precios Cuidados" sem nenhum problema. Acho que a matéria apresenta um erro de generalização grave (uma pequena amostragem de um bairro já definiu um país) e uma manchete muito tendenciosa”, comentou Leonardo Souza (@leoguerreiro), que ainda publicou fotos de prateleiras de supermercados cheias e mostrando as etiquetas do programa governamental.

“Moro em Buenos Aires e não vi nada disto. Ontem fiz compras com minha amiga em Belgrano e compramos de tudo. Não sei de qual Argentina q eles falam”, publicou Rose (@Rose37046581).

“Gente, a Folha não tem vergonha na cara. Liguei hoje para um amigo que mora em Caseros e ele disse que não tem nada faltando no mercado”, escreveu a antropóloga e fotógrafa Viviane Junqueira (@vivi_junqueira).

Na sexta-feira (11), este jornalista fez compras num hipermercado do Carrefour de Mendoza e não encontrou qualquer prateleira vazia ou produto em falta. Em compensação, o preço do arroz faz inveja aos brasileiros: R$ 2,67 o quilo, fazendo a conversão de pesos [na cotação da Western Union] para o real. Confira no vídeo abaixo.

https://www.youtube.com/watch?v=8SqezmO5LiU

*Rogério Tomaz Jr. é jornalista brasileiro residente em Mendoza, onde cursa mestrado em Estudos Latinoamericanos na Universidade Nacional de Cuyo.

Temas