A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher

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Se para Simone de Beauvoir a mulher é o outro por não ter reciprocidade do olhar do homem, para Grada Kilomba, a mulher negra é o outro do outro, posição que a coloca num local de mais difícil reciprocidade. Por serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade Por Djamila Ribeiro, no Blog da Boitempo “Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias necessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engasgando” – AUDRE LORDE Tomando como ponto de partida a dialética do senhor e do escravo de Hegel, Beauvoir cunhará o conceito de Outro. Segundo o diagnóstico de Beauvoir, a relação que os homens mantêm com as mulheres é esta: da submissão e dominação. As mulheres estariam enredadas na má fé dos homens que a veem e a querem como um objeto. Beauvoir mostra em seu percurso filosófico sobre a categoria de gênero que a mulher não é definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do olhar do homem. Olhar este que a confina num papel de submissão que comporta significações hierarquizadas dadas à mulher através deste olhar masculino. Este olhar funda a categoria do Outro beauvoriano. Beauvoir explica que esta categoria do outro é antiga e comum, segundo a filósofa, nas mais antigas mitologias e sociedades primitivas já se encontravam presente uma dualidade: a do Mesmo e a do Outro. Esta divisão não teria sido estabelecida inicialmente tendo como base a divisão dos sexos, pois a alteridade seria uma categoria fundamental do pensamento humano. Nenhuma coletividade, portanto, se definiria nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si. Por exemplo, para os habitantes de certa aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugar são os “outros”; para os cidadãos de um país, as pessoas de outra nacionalidade são consideradas estrangeiras.
Os judeus são “outros” para o anti-semita, os negros para os racistas norte americanos, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários. Ao fim de um estudo aprofundado das diversas figuras das sociedades primitivas, Levi Strauss pôde concluir: “A passagem do estado natural ao estado cultural define-se pela aptidão por parte do homem em pensar as relações biológicas sob a forma de sistemas de oposições: a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria, que se apresentam sob formas definidas ou formas vagas, constituem menos fenômenos que cumpre explicar os dados fundamentais e imediatos da realidade social”. Tais fenômenos não se compreenderiam se a realidade humana fosse exclusivamente um mitsein baseado na solidariedade e na amizade. Esclarece-se, ao contrário, se, segundo Hegel, descobre-se na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto. Simone de Beauvoir, O segundo sexo, pp. 11-12.
Percebe-se nesta exposição da hermenêutica do outro o princípio da reciprocidade que tira o sentido absoluto da ideia de Outro e se descobre a relatividade; “por bem ou por mal os indivíduos e os grupos são obrigados a reconhecer a reciprocidade de suas relações” (p. 11). Como, então, se explica que entre os sexos esta reciprocidade não tenha sido colocada? Por que um dos sexos se impôs como o único essencial e com isso negou toda relatividade em relação ao seu correlativo, definindo este sexo (masculino) como a alteridade pura? A mulher aparece como o negativo, de modo que, toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade.
Na medida em que a mulher é considerada o Outro absoluto, isto é – qualquer que seja sua magia – o inessencial, faz-se precisamente impossível encará-la como outro sujeito. As mulheres nunca, portanto, constituíram um grupo separado que se pusesse para si em face do grupo masculino; nunca tiveram uma relação direta e autônoma com os homens. Simone de Beauvoir, O segundo sexo, p.90.
Porém, se para Simone de Beauvoir a mulher é o outro por não ter reciprocidade do olhar do homem, para Grada Kilomba*, a mulher negra é o outro do outro, posição que a coloca num local de mais difícil reciprocidade. Por serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade.
Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro. Grada Kilomba, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. p.124.
Nesta afirmação de Kilomba percebemos que ela discorda da categorização feita por Beauvoir. Para a filósofa francesa não há reciprocidade, a mulher sempre é vista pelo olhar do homem num lugar de subordinação, como o outro absoluto, numa visão absoluta de patriarcado. Além do que, essa afirmação de Beauvoir diz respeito a um modo de ser mulher, no caso, a mulher branca. Kilomba além de sofisticar a análise, engloba a mulher negra em seu comparativo. Para ela, existe reciprocidade entre mulher branca e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um status oscilante que ora pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito. Kilomba rejeita a fixidez desse status. Mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos em dados momentos, assim como o homem negro também. Beauvoir diz:
“Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição de Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.”
Kilomba além de mostrar que mulheres possuem situações diferentes, rompe com a universalidade em relação aos homens também mostrando que a realidade dos homens brancos não é a mesma da dos homens negros, que também em relação a esses deve-se fazer a pergunta: de quais homens estamos falando? Reconhecer o status de mulheres brancas e homens negros como oscilante nos possibilita enxergar as especificidades e romper com a invisibilidade da realidade das mulheres negras. Para Kilomba, ser essa antítese de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como sujeito, a mulher negra então seria o outro absoluto para usar termos de Beauvoir. O olhar tanto de homens brancos e negros e mulheres brancas confinaria a mulher negra num local de subalternidade muito mais difícil de ser ultrapassado. Essa categoria do outro do outro se assemelha ao que diz Patricia Hill Collins ao cunhar a categoria da “forasteira de dentro” [“outsider within”]. Para Collins a mulher negra dentro do movimento feminista ocupa esse lugar de forasteira de dentro, por ser feminista e pleitear o lugar da mulher negra somo sujeito político, mas ao mesmo tempo ser “uma de fora” pela maneira como é vista e tratada dentro do seio do próprio movimento, a começar pelo modo pelo qual as reivindicações do movimento feminista foram feitas, crítica que também se estende quando falamos de teoria feminista. A autora defineoutsider within como posição social ou locus fronteiriço ocupado por grupos com poder desigual. Na Academia, por exemplo, esse lugar permite às pesquisadoras negras constatar, a partir de fatos de suas próprias experiências, anomalias materializadas na omissão ou observações distorcidas dos mesmos fatos sociais e, embora Collins se refira à Sociologia, pode-se pensar como prática política a ser desenvolvida em todas as áreas do conhecimento. Lélia Gonzalez também possui visão semelhante:
“O fato é que, enquanto mulher negra sentimos a necessidade de aprofundar a reflexão, ao invés de continuarmos na repetição e reprodução dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações”. Lélia Gonzalez. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. p.225

* Escritora e professora do Departamento de Estudos de Gênero da Humboldt Universität, em Berlim. NOTAS BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo: fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980. _____. O segundo sexo: a experiência vivida; tradução de Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980. _____. Por uma moral da ambiguidade; tradução de M.J. de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. _____. As belas imagens; tradução de Lucila Ribeiro Bernardet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. COLLINS, P.H. Black Feminist Thought: knowledge, consciousness and the polittics of empowerment. Nova York: Routledge, 2000. GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p. 223-244, 1983. KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Berlim: Unrast, 2008. LORDE, Audre. Textos escolhidos. Disponível em: <[email protected]> Acessos em 10 de janeiro de 2016.