A batalha pelas águas do Velho Chico

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Em fase decisiva da transposição, governo enquadra órgãos ambientais, inclui obra no PAC e dá início a editais de licitação. Movimentos lamentam fim do diálogo com o governo e preparam agenda de mobilização

Por Daniel Merli   Antes chamado de Opará (“rio-mar”) pelos índios caetés, os 2.800 km de água que saem da serra da Canastra e vão até o oceano Atlântico foram rebatizados em homenagem ao santo do dia 4 de outubro, data em que o navegador genovês Américo Vespúcio cruzou pela primeira vez suas águas. Conhecido pelo voto de pobreza, São Francisco converteu-se ao catolicismo após ser preso como soldado na guerra entre Assis e Perugia. Até hoje, todos os anos, uma procissão entre as duas cidades faz ao mundo um pedido de paz. Mas, entre as forças favoráveis e contrárias à transposição, a paz ainda parece distante. Com a licença ambiental emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no dia 23 de março e seu projeto incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a transposição do rio São Francisco entra em período decisivo. O edital para início das obras foi lançado, e o prazo para entrega de propostas pelas empresas é o dia 9 de maio. Por outro lado, os movimentos sociais planejam intensificar as manifestações contra o projeto. “A licença do Ibama vai fortalecer mais a resistência”, promete Luis Cláudio Mandela, da Cáritas, uma das entidades que organizou o Acampamento pela Vida do Rio São Francisco montado em Brasília de 12 a 16 de março para protestar contra a transposição. “Algumas pessoas ainda tinham a falsa impressão de que podiam contar com o apoio do Ministério do Meio Ambiente”, lamenta. As organizações que participaram do acampamento estão fazendo reuniões nos estados para planejar as próximas ações, que devem se fortalecer no mês de abril, junto com o Grito da Terra. As organizações sociais reclamam da falta de diálogo do governo federal. “As conversas vinham bem, até o início das eleições”, lembra dom Luiz Cappio, bispo de Barra (BA), que ficou famoso pela greve de fome contra a transposição em outubro de 2005. “O objetivo era construir o processo de diálogo para avançar para uma metodologia melhor que as audiências públicas”, relata Mandela, que participou da Comissão de Diálogo, como era chamado o grupo formado por governo e sociedade civil. A conversa ficou parada. “Tivemos diálogos maravilhosos e achávamos que as coisas iam, por fim, mudar”, afirma dom Cappio. “Quando o processo foi interrompido, achamos que era só pelo período eleitoral.” Mas o silêncio do governo foi interrompido, segundo eles, somente pela declaração à imprensa do então ministro da Integração Nacional, Pedro Brito, de que seriam lançados os editais para licitação da obra. “Tal qual havia sido planejada antes e sem levar em conta os diálogos”, lamenta o bispo. Nesse período, segundo os militantes contrários à transposição, também houve uma inflexão dos funcionários do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e outros órgãos do governo federal que mantinham ressalvas à transposição, como a Agência Nacional de Águas (ANA). “Os cargos de direção do ministério assumiram o mesmo discurso único”, afirma Mandela. Nesse enquadramento, parte dos descontentes com a linha definida engrossaram, por iniciativa própria, a lista de exonerados na transição dos mandatos. Os três funcionários do ministério com os quais a Fórum conversou mostraram-se alinhados na afirmação de que, “do ponto de vista técnico”, a obra não apresenta impacto ao meio ambiente. Também disseram que a transposição não é “excludente” ao processo de revitalização reivindicada pelo movimento social. “A integração de bacias [transposição] é uma obra, assim como tantas outras que já ocorreram no São Francisco”, afirma Maurício Laxe, coordenador do Programa Nacional de Revitalização de Bacias Hidrográficas do Ministério do Meio Ambiente. “O São Francisco já tem 20 represas e 23 dutos para irrigação. A transposição é apenas mais uma forma de uso da água.” Os movimentos sociais defendem que esse tipo de intervenção só poderia ser feita após a revitalização do rio, que tem um horizonte de 20 anos para ser concluído. Laxe, responsável no governo pela revitalização, porém, acredita que ela “não tem nexo causal nenhum com o projeto de integração”. Agronegócio e a sede  O centro da discórdia sobre a transposição diz respeito às águas desviadas. Movimentos sociais acusam o governo de querer favorecer o agronegócio e de não querer acabar com a sede da população no Nordeste setentrional. A resposta do Executivo é que, além do consumo humano, também se pode levar água para empreendimentos agrícolas, possíveis fontes de desenvolvimento para a região. “O Nordeste tem excelente clima por estar próximo à linha do Equador, só não tem água”, ressalta Rômulo de Macedo Vieira, coordenador da transposição, chamada oficialmente de Projeto de Integração do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. “As condições são melhores do que na Califórnia, porque aqui podemos instalar uma das maiores fronteiras hidroagrícolas do mundo”, afirma. A referência ao estado norte-americano deve-se ao fato de a região possuir áreas de clima parecido ao Semi-Árido brasileiro e ter implantado sistemas de irrigação que tornam a área um pólo da agroindústria. Os opositores da transposição não aceitam que seja tirada água do rio, a não ser para consumo humano, como determina resolução do Comitê da Bacia do São Francisco. “O Comitê de Bacia, que é formado pela sociedade e governo, só autorizou a captação da água para o consumo humano e animal, não para o agronegócio e a indústria”, ressalta Luciana Khouri, coordenadora dos Ministérios Públicos da Bacia do São Francisco. A promotora prevê que, se a água for usada com outros objetivos, aumenta tanto o ânimo das mobilizações, quanto a possibilidade de se contestar judicialmente a obra. Pela legislação brasileira que regulamenta a gestão da água desde 1998, o Comitê é soberano sobre as decisões a respeito do uso da água do rio. O Eixo Leste da obra, destinado a atender regiões da Paraíba e Rio Grande do Norte, inclui trechos em que há déficit hídrico, segundo o “Atlas Nordeste”, estudo produzido pela ANA. Nos estados receptores destes canais, a necessidade de se levar a água é admitida até pelos críticos da transposição. Eles não querem que a fonte seja o Velho Chico, mas defendem a construção de adutoras para levar água até a Paraíba. No Ceará, por onde passaria o eixo norte, não há risco de falta de abastecimento para consumo humano, segundo o mesmo levantamento. Isso faz com que este braço da transposição seja mais atacado, na medida em que favoreceria exclusivamente o agronegócio e indústrias – principalmente da região de Porto Pecém, próximo a Fortaleza. A premissa é de que o eixo leste seria mais “justificável”, segundo Juliano Sousa, secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia. “Temos de ir por onde há consenso, se tentarmos forçar o projeto todo, o dissenso de uma parte pode contaminar o consenso da outra”, teoriza o secretário. “O governo baiano está construindo essa posição politicamente”, explica. Segundo Sousa, o consenso se estende ao governo de Minas Gerais. O estado administrado pelo tucano Aécio Neves, junto com a Bahia, é onde estão os afluentes responsáveis por 90% do volume de água do São Francisco. Isso não significa que os baianos tenham se tornado entusiastas do projeto. Como estado doador, o medo dos impactos no rio é comum entre moradores de cidades ribeirinhas. De acordo com o jornal A Tarde, na edição do dia 27, o governo baiano assumiu o contato com a população, mas trabalham para jogar para o governo federal o ônus do projeto, preocupados com o desgaste gerado pela impopularidade do tema. De olho em Ciro Gomes  Não é só do ponto de vista do uso que um eventual retardamento do eixo norte encontra interessados. A resistência maior pode ser aproveitada por defensores do projeto, como o governador baiano Jaques Wagner, lembrado pela imprensa como um dos possíveis candidatos petistas à sucessão de Lula. Além de contornar a resistência dos movimentos sociais – ou pelo menos parte dele –, afasta de Ciro Gomes (PSB-CE) a aquisição de importante capital político. O deputado federal eleito com a maior votação proporcional do país foi o titular da pasta da Integração e o responsável pela condução do debate da transposição no primeiro mandato de Lula. Seriam dele os louros da execução, caso o projeto fosse levado adiante. Procurado três vezes pela Fórum, o deputado Ciro Gomes não atendeu à solicitação de entrevista até o fechamento da matéria. A movimentação de olho em 2010 é apontada como um dos motivos para Wagner ter batalhado pela indicação do baiano Geddel Vieira Lima (PMDB) ao Ministério da Integração Nacional. O fato do novo ministro ser baiano e ter sido um cabo eleitoral tanto do presidente Lula na reeleição, quanto do governador, “é um elemento facilitador”, na opinião de Sousa. Um sinal vem de entrevista do ministro ao jornal Valor Econômico, no dia 26 de março, em que Geddel admite a possibilidade de alterações nos dois principais projetos do ministério, a integração de bacias e a Transnordestina. Além de prometer um programa de acesso à água nas cidades ribeirinhas da bacia do São Francisco, Geddel assegura que se “tiver que levar adiante qualquer posição que comprovadamente prejudique ou atrase o desenvolvimento da Bahia”, será “entrevistado não mais como ministro, mas como ex-ministro”. Além de ter em Brasília um apoiador de suas aspirações para a região, Wagner tirou do ministério o grupo do concorrente Ciro Gomes. Pedro Brito, acomodado na recém-criada Secretaria de Portos, no Ministério dos Transportes, foi secretário-executivo do ministro cearense. Revitalização, projeto de 20 anos Defendido pelos movimentos sociais como alternativa à transposição, e planejado em 2003, o Programa Nacional de Revitalização de Bacias Hidrográficas tem horizonte de 20 anos para ser concluído. A revitalização do São Francisco era o segundo ponto do programa de governo para a área ambiental do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva à presidência em 2002. O primeiro era a realização da Conferência de Meio Ambiente, que caminha para a terceira edição. “O projeto é permanente e começou a ser elaborado há três anos”, garante Maurício Laxe, coordenador do Programa Nacional de Revitalização de Bacias Hidrográficas do Ministério do Meio Ambiente. Laxe destaca que o orçamento do projeto vem aumentando. Começou com apenas R$ 2 milhões no primeiro ano e subiu para R$ 36 milhões no segundo. Chegou a R$ 94 milhões em 2005 e a R$ 100 milhões no ano passado. Segundo Laxe, o orçamento pequeno no início do projeto não foi problema. “Estávamos na fase de elaboração do programa, de audiências e estudos”, afirma. Mas reconhece que, mesmo com um prazo de 20 anos para alcançar suas metas, o orçamento do programa teria de ser de R$ 450 milhões anuais. A verba é quase o dobro do que está previsto para este ano com revitalização, se aprovado o orçamento de R$ 270 milhões em uma das oito medidas provisórias que compõem o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O orçamento e o prazo dilatados se justificam pela ambição do projeto traçado em 2003. “A bacia do São Francisco é a mais degradada de todas, a que mais sofreu ação do homem, com 20 represas”, reconhece Laxe. São 600 mil hectares de área desmatada, segundo levantamento do Ministério do Meio Ambiente. Para cumprir o plano de revitalização em duas décadas, seria necessário reflorestar 30 milhões de mudas de espécies nativas por ano. Atualmente, temos só 4 milhões por ano, reconhece Laxe. Para superar esse déficit de 26 milhões de mudas anuais, Laxe conta com parcerias. “É um problema que não pode ser encarado como projeto do governo federal, mas como um movimento nacional para recuperação”. Por isso, fechou parceria com universidades federais para criação de viveiros de mudas, em áreas próximas à bacia do São Francisco. “Nesses centros estamos desenvolvendo tecnologia para recuperar com maior velocidade as áreas degradadas.” O programa é elogiado, com ressalvas, por críticos da transposição. “É óbvio que há iniciativas importantes. Mas estão muito baseadas no plantio de muda e viveiros. Falta uma ação integrada com saneamento”, destaca Mandela, da Cáritas. Luciana Khouri fiscaliza como promotora, desde 2001, as ações de degradação do rio – como desmatamento, mineração e retirada de madeira para gerar carvão vegetal para siderúrgicas mineiras. Ela concorda que o principal problema é a falta de saneamento que, segundo ela, atinge nove em cada dez cidades baianas que margeiam o São Francisco. Em toda a bacia, 50% dos municípios não têm nenhum tipo de rede nem tratamento de esgoto.