A construção do medo

"Cada novo atentado alimenta ainda mais a construção do medo. Medo de perder nossas liberdades, medo do outro, medo do retrocesso, medo do ódio, medo do fundamentalismo religioso": o panorama dos atentados na França, traçado por uma jornalista brasileira que vive há 18 anos em Paris

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"Cada novo atentado alimenta ainda mais a construção do medo. Medo de perder nossas liberdades, medo do outro, medo do retrocesso, medo do ódio, medo do fundamentalismo religioso": o panorama dos atentados na França, traçado por uma jornalista brasileira que vive há 18 anos em Paris

Por Erika Campelo*

Paris foi atacada de novo. Em menos de três horas, pelo menos, 128 pessoas morreram e 99 ficaram feridas nos sete atentados que sofreu a cidade. Os principais lugares atacados foram restaurantes e bares do 10° e 11° distrito da capital, bairros do leste da cidade, entre a praça da República e a praça da Bastilha. Duas aéreas boêmias da cidade, onde mora uma população de artistas e intelectuais de esquerda.

O ataque mais importante aconteceu na casa de show Bataclan, que também fica na região leste da cidade. Quatro homens entraram atirando durante um show de heavy-metal, visto por 1.519 pessoas.

Ao mesmo tempo, ao norte de Paris, na periferia popular da Seine Saint-Denis, 80 mil pessoas assistiam ao amistoso eFrança-Alemanha, quando um ou dois kamikazes explodiram suas bombas perto do estádio de France. O presidente francês François Hollande assistia ao jogo.

Logo em seguida, ele declarou estado de sítio/emergência. Todos os lugares públicos (escolas, bibliotecas, universidades), teatros e casas noturnas estarão fechados neste sábado. As fronteiras do país também foram fechadas e o exército está nas ruas. Tudo isso porque as pessoas que cometeram os ataques ainda não foram todas identificadas, nem presas. De acordo com fontes de segurança, oito terroristas foram mortos – sete deles se suicidaram.

Nesta manha de sábado, algumas pessoas circulam pelas ruas da cidade, que estão muito mais calmas que em um sábado “normal”. Paris amanheceu silenciosa.

A hora é de união nacional entre as diferentes forças políticas do país. Anne Hidalgo, prefeita da capital, declarou que “Paris continua de pé, apesar da dor e do luto”.

Alguns políticos afirmam estar de acordo com o cancelamento das próximas eleições regionais que devem acontecer em dezembro. Essas eleições elegem os 22 presidentes das diferentes regiões do país. O partido socialista do presidente François Hollande deve perder várias regiões e o partido de extrema-direita francês, Frente Popular (FN), tem boas chances de eleger uma ou duas presidentes e será provavelmente o grande vitorioso desse pleito. A legenda se construiu denunciando os imigrantes estrangeiros como responsáveis pelo desemprego dos franceses, e depois dos atentados ao Charlie Hebdo, apontou sua mira aos muçulmanos.

Além das eleições regionais, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21) começa dentro de duas semanas. Esses atentados vão contribuir para endurecer a segurança durante o evento. Mas podem também impedir as mobilizações sociais e altermundialistas previstas durante a conferência. Os movimentos sociais já haviam denunciado o clima de tensão e de policiamento exacerbado de parte do governo francês. Mais de 130 representantes de governos e estados do mundo inteiro estarão presentes em Paris para participar das negociações. A cidade espera receber 30 mil pessoas.

Em menos de um ano, Paris sofreu dois ataques

Os últimos atentados aconteceram em janeiro deste ano. O primeiro, na redação do jornal satírico Charlie Hebdo, que fica a apenas alguns metros da casa noturna Bataclan, onde mais de 88 pessoas foram mortas na última noite. E o segundo ataque de janeiro aconteceu em um supermercado kacher. Os dois lugares também ficam do lado leste da cidade.

Desde os ataques ao Charlie, o país estava em “alerta vermelho”. As autoridades francesas sabiam que outros atentados poderiam ser cometidos. A França está em guerra contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. O país faz parte da coalizão internacional. Além de ter tropas no Mali desde a guerra de 2013, onde lidera a operação contra os djiadistas na região do Sahel.

Logo após os atentados de janeiro, o Conselho do Culto Muçulmano Francês condenou os ataques. O Islã é a segunda religião do país – cerca de dois milhões de franceses são de confissão muçulmana. De acordo com dados do Ministério do Interior, entre cinco e seis milhões de franceses são de origem muçulmana, têm pais ou avós muçulmanos. Porém, os últimos estudos mostram que estes franceses cada dia são alvo de mais discriminação e racismo.

Durante os atentados do início do ano, a amálgama entre franceses de confissão muçulmana e os responsáveis pelos atentados já havia sido feita. Agora, a amálgama se estende aos refugiados que desembarcam todos os dias nas praias da Europa. Alguns "especialistas" da mídia afirmam que os terroristas "entraram" na Europa como refugiados. Mesmo que ainda a identidade dos homens que cometeram os atentados não tenha sido divulgada. A ligação destes com o fundamentalismo islâmico é bem provável, muitas vítimas afirmam que alguns dos homens gritavam que estavam vingando “seus irmãos mortos na Síria”. Hoje mais cedo, o Estado Islâmico reivindicou a autoria dos ataques.

E assim a construção do medo continua. Medo de perder nossas liberdades, medo do outro, medo do retrocesso, medo do ódio, medo do fundamentalismo religioso. Vivemos um momento conturbado, uma equação matemática complexa, os desafios são imensos: crise social, crise econômica, crise ambiental e, misturado a elas, o fundamentalismo religioso. Não sabemos como a situação vai evoluir, só sabemos que nossas democracias estão em perigo.

O filosofo italiano Antonio Gramsci, em uma de suas citações mais conhecidas, descreve o período que atravessamos: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.”

Os parisienses mostraram que o novo que está nascendo pode ser simbolizado pela solidariedade, e não pelo medo. Durante toda a noite, circulou pelas redes sociais a hashtag #porteouverte (“portas abertas”, na tradução para o português), por meio da qual milhares de pessoas ofereciam a quem não podia voltar para casa um lugar para dormir, e talvez, um lugar para superarem juntas o medo.

(*) Erika Campelo é jornalista, cientista política e radicada em Paris há 18 anos. É uma das fundadoras da ONG Autres Brésils, que traduz do português para o francês conteúdo jornalístico produzido pela mídia livre brasileira

(Foto: Mathieu Delmestre/Partido Socialista (PS) da França)