A crise, o impeachment e a experiência da derrota

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"Na mesma medida em que caminhávamos para a consolidação de nossa democracia institucional, um percurso brutalmente interrompido pelo processo ilegítimo do impeachment contra Dilma Rousseff, assistimos a um processo de crescente precarização de nossa cultura pública e democrática". Confira o novo artigo de Clóvis Gruner Por Clóvis Gruner* A poucos dias da votação que deve selar seu futuro político, Dilma Rousseff se manifestou enviando ao Senado, no começo da semana passada (16), carta pedindo que encerrem o processo de impeachment contra ela. E se compromete a chamar um plebiscito para, se for a vontade geral da nação, convocar eleições antecipadas. Há quem diga que a carta veio tarde, e mesmo o PT emite sinais no mínimo ambíguos ao rejeitar, por exemplo, a proposta de antecipação das eleições, derrotada pela maioria de sua executiva. Premido pelas próprias contradições, Dilma e o PT têm recorrido e reafirmado insistentemente a ideia de que está em curso um golpe de Estado, e tal como uma farsa se repete, em 2016, a tragédia de 1964. E se por um lado tal recorrência tornou-se uma necessidade ante a eminência da queda, porque o golpe transforma o governo em vítima e isenta o PT de fazer a necessária auto crítica, ainda assim a narrativa não se sustenta. Entre outras coisas, há o contraste inegável entre o atual e o contexto passado. Um exemplo basta: em 64 o golpe aconteceu logo após Jango anunciar suas reformas de base, incluída a reforma agrária. Em 2015, ano em que Kátia Abreu assumiu o Ministério da Agricultura, o governo brasileiro não realizou um único assentamento. Além disso, a postura do partido não é coerente com quem sofre um golpe. Um dos primeiros gestos do PT após o afastamento de Dilma Rousseff foi sua participação vergonhosa na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados: no lugar de apoiar Luiza Erundina, um gesto que sinalizaria a disposição do partido em compor uma aliança de esquerda no Legislativo federal, o partido fechou apoio à candidatura do ex-ministro de Dilma, Marcelo Castro, do “golpista” PMDB. Perdeu. Decidiu então por Rodrigo Maia (DEM) contra Rogério Rosso (PSD), alegando que eleger o primeiro seria uma derrota de Eduardo Cunha. Eleito e empossado, Maia disse que não anteciparia a votação pela cassação de Cunha, marcada para 12 de setembro, depois da votação do impeachment de Dilma no Senado, portanto. De fato, uma derrota que Eduardo Cunha terá dificuldades em esquecer. O voto em Rodrigo Maia, um dos principais articuladores do impeachment na Câmara e integrante da base de apoio do interino e ilegítimo Temer, não teve nada de inocente ou inconsequente: foi um gesto pensado e discutido, ainda que não tenha sido unânime (parte da bancada petista não votou nele), e é mais um reflexo da opção do PT pelo pior da realpolitik, opção que entre outras coisas lhe custou a presidência. Tanto aprendeu, que nas eleições municipais desse ano, segundo dados do TSE, o partido está aliado ao PMDB, PSDB ou ao DEM em 1406 cidades, e em São Paulo o vice de Haddad, o ex-secretário de Educação Gabriel Chalita, só recentemente trocou o PMDB pelo PDT e justamente para viabilizar sua candidatura. Não há golpe, mas tampouco nossa democracia sai ilesa. E se é necessário retroceder no tempo para fincar os eventos de agora no terreno mais estável da duração, penso que é preciso fazê-lo não recorrendo a 64, mas ao biênio 1984-1985; o fim, portanto, não o começo da ditadura, me parece uma chave de leitura mais rica para compreender nossa contemporaneidade. Os arranjos políticos que culminaram com a transição para a democratização não forjaram uma estrutura suficientemente sólida para garantir o fortalecimento das instituições democráticas. A começar pela Lei da Anistia, que condenou ao esquecimento e ao silêncio os muitos crimes cometidos pelo Estado ao longo de duas décadas de ditadura civil militar, em nome da governabilidade o PT aceitou manter praticamente intocadas as estruturas políticas herdadas do pacto que forjou a “Nova República”. Um percurso inconcluso – Ao aceitar e reproduzir tais estruturas, por um lado, o PT colaborou para a permanência de uma histórica despolitização da sociedade brasileira, danosa para a consolidação de uma efetiva cultura democrática. De outro, e nisso reside uma das contradições principalmente do lulismo, o mero fato de um projeto de esquerda, ou de centro-esquerda, chegar ao governo serviu como estímulo para que movimentos e temas antes tabus aos poucos ganhassem uma maior visibilidade, incorporando ao espaço público determinadas pautas e mobilizações que cooperaram para forjar uma percepção mais pluralista de nossa sociedade, ao mesmo tempo em que apontavam para a necessidade de ampliar nossas conquistas democráticas. Tal ampliação restou, no entanto, precária. Na mesma medida em que caminhávamos para a consolidação de nossa democracia institucional, um percurso brutalmente interrompido pelo processo ilegítimo do impeachment contra Dilma Rousseff, assistimos a um processo de crescente precarização de nossa cultura pública e democrática. Precarização que é também fruto do sentimento de horror à política, entendida como a gestão do convívio entre diferentes, ou seja, como o que organiza e regula a convivência entre indivíduos e grupos livres e plurais. Por um lado, é verdade, não se pode atribuir exclusivamente aos governos e ao Estado a responsabilidade por esta gestão. Por outro, também o é que parte de nossa conduta pública advém da maneira como políticas de governo empreendem esforços no sentido de promover a inclusão de novas e mais expressivas e plurais camadas da população na vida política. Isso contribui para ampliar tanto as fronteiras do que se entende por democracia, como as percepções sociais acerca dela. O PT falhou nisso. E não apenas porque, em nome da governabilidade, firmou alianças escusas e reproduziu o verdadeiro balcão de negócios a que se convencionou chamar, eufemisticamente, de “presidencialismo de coalizão”. Tampouco me refiro as inúmeras denúncias e escândalos de corrupção: embora reconheça a extrema politização e seletividade da Lava Jato, e os usos que fizeram disso a oposição e parte da mídia, não é mais possível acreditar na inocência do PT e no papel de vítima que o partido assumiu. Não vou falar disso, porque sobre isso já se falou demasiado, e se falará ainda mais. A esquerda enfraquecida – Quando afirmo que o PT falhou na promoção de uma cultura democrática mais efetiva, me refiro à aproximação promovida pelos governos Lula e Dilma com grupos e forças conservadores, que não apenas travou debates fundamentais à esquerda (a legalização do aborto, a descriminalização do uso de drogas, a criminalização da homofobia, por exemplo), como contribuiu para o recrudescimento dos discursos de ódio. Ou à aliança com grupos ruralistas e o descaso com os direitos das comunidades indígenas e quilombolas, sintetizado de maneira exemplar em Belo Monte. Ou ainda à ausência de uma discussão ampla sobre as políticas de segurança pública e a desmilitarização da polícia, além de uma política que facilitou a criminalização de muitos movimentos sociais, culminando com a assinatura da “Lei anti-terrorismo”, pouco antes do afastamento de Dilma. Um dos resultados dessas escolhas foi a manutenção de práticas políticas que silenciam a maioria da população, falando em nome dela e perpetuando seu silêncio. Ao mesmo tempo – e é outra das contradições do lulismo – políticas distributivas que permitiram, de maneira inédita, elevar os padrões de consumo de parcelas significativas dessa mesma população. Nesse sentido, a estratégia do social-desenvolvimentismo complementou o esforço por diluir outros temas nos índices de diminuição da pobreza percebidos na última década. Que fique claro: nada tenho contra as ações sociais patrocinadas pelos três últimos governos; quaisquer iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos índices de miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema democrático, nem foi suficiente para amadurecer nossa cultura pública. Entre outras coisas, porque limitamos os critérios pelos quais a medimos quase que exclusivamente pelo acesso ao mercado e à ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não é o bastante. E o resultado dessa despolitização repercute, inclusive, na consolidação da democracia tomada mesmo em seu entendimento mais básico e formal: pesquisa realizada em abril, pelo Ibope, revela que a democracia é a forma de governo preferível para apenas 40% dos brasileiros. Para outros 34%, tanto faz, enquanto 15% afirmam que governos autoritários são preferíveis aos democráticos em algumas circunstâncias – e a julgar pelas muitas faixas pedindo intervenção militar, exibidas durante as manifestações pelo impeachment no segundo semestre de 2015, parece que basta uma crise institucional e econômica para justificar o apelo aos governos autoritários.

Mas o ocaso do PT não significa apenas uma derrota para o partido e seus dirigentes, mas afeta parcela expressiva da esquerda, pois durante anos foi o PT principalmente quem reivindicou e representou, quase hegemonicamente, a esquerda brasileira, notadamente a partidária. Enfraquece a esquerda, e fortalece a direita: hoje, assistimos à precarização das pautas e reivindicações progressistas que ameaçam inclusive a garantia de direitos e liberdades fundamentais. O alegado avanço conservador, nas esferas institucionais ou fora delas, é também resultado do alijamento dos movimentos sociais e populares que poderiam garantir ao governo algum apoio, e legitimar o avanço das conquistas democráticas que eram a promessa do PT ao país.

Nesse sentido, o revés sofrido pelo partido e o governo não apenas aprofunda nossa fragilidade democrática, mas a estende para outros aspectos que não os meramente institucionais, e é bastante provável que nos próximos anos assistamos a uma degradação ainda maior desse quadro. Sob certo aspecto, se a ruína do PT é também em parte uma derrota da esquerda, a vitória não foi apenas da oposição, mas das forças conservadoras e reacionárias dentro e fora do parlamento, fortalecidas em sua capacidade de usarem a democracia para, justamente, expressarem seu ódio contra ela. Nós, a esquerda, fomos derrotados, e talvez seguir a sugestão do historiador inglês T. J. Clark – “é preciso levar a sério a experiência da derrota” – seja o primeiro passo para a superarmos e criarmos outras alternativas que reintroduzam, no debate público e na vida política, o que ficou pelo caminho. *Clóvis Gruner é historiador e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Foto: Mamana Foto Coletivo