A gente não se vê por aqui

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Quilombolas contestam cobertura feita pela Globo e prometem barulho no dia 5 de outubro

Por Juliana Cézar Nunes   A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) promoverá no próximo dia 5 de outubro um amplo debate sobre o papel das concessões públicas de televisão com o lema “Globo, a gente não se vê por aqui”. Os quilombolas criticam a cobertura realizada pela Rede Globo a respeito dos processos de regularização das terras reivindicadas pelos afro-descendentes. Segundo uma das coordenadoras da Conaq, Clédis Souza, nos últimos meses, o Jornal Nacional veiculou matérias distorcidas e entrevistas manipuladas. Em nota sobre o caso, a emissora reafirmou as denúncias de fraude nos processos de regularização e disse que elas estão baseadas em apurações corretas feitas pelos jornalistas da empresa. As comunidades quilombolas pediram direito de resposta, mas até o momento não foram atendidas. “As reportagens não mostram a razão histórica do pleito quilombola. Para nos deslegitimar, entrevistaram os peões dos fazendeiros que, apesar de serem quilombolas, negam essa condição porque sofrem ameaças. Entrevistas feitas com quem não tem ligação com os fazendeiros não vão ao ar”, reclama Clédis, quilombola da comunidade Rincão dos Martinianos (RS). De acordo com ela, organizações quilombolas e movimentos sociais farão debates e protestos no dia 5 de outubro, em frente às retransmissoras da Rede Globo nos estados. A data foi escolhida porque marca o vencimento da concessão pública dada à emissora há 15 anos. “É importante que o governo saiba que uma parte da população não está sendo bem atendida por uma emissora que recebe dinheiro público e tem uma concessão pública”, diz a coordenadora da Conaq. “Temos 5 mil comunidades quilombolas já mapeadas, mas menos de 100 (82 até maio) regularizadas. As matérias do Jornal Nacional são uma reação dos fazendeiros e grileiros ao processo de regularização. Elas intimidam e fazem o governo recuar.” Uma das matérias questionadas pelos quilombolas foi ao ar no dia 14 de maio deste ano. A reportagem levanta suspeitas de fraude no processo de regularização da comunidade quilombola São Francisco do Paraguaçu (BA) e acusa os moradores de extrair madeira da Mata Atlântica de forma irregular. No dia 1º de junho, outra matéria foi veiculada no mesmo telejornal, desta vez questionando as origens da comunidade Brejão dos Negros (SE), autodeclarada remanescente de quilombo. Assim como outras 1,1 mil comunidades quilombolas, São Francisco do Paraguaçu e Brejão dos Negros receberam certificado de reconhecimento cultural da Fundação Palmares, mas ainda não possuem a titularidade da terra, com processo em andamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Apesar de não garantir o direito das comunidades à posse, nem o acesso a serviços públicos, o certificado dado pela Fundação Palmares também foi questionado nas matérias do Jornal Nacional, assim como o decreto presidencial no 4887/2003, que regulamenta o processo de regularização das terras quilombolas, conforme determina a Constituição (artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias). Nesse sentido, o Partido Democrata têm uma ação no Supremo Tribunal Federal que pede a revogação do decreto por inconstitucionalidade, alegando que qualquer regulamentação de norma constitucional deve passar pelo Congresso Nacional. Com base nesse mesmo argumento, fazendeiros do Espírito Santo organizaram o Movimento Paz no Campo após receberem do Incra notificação para, em 90 dias, apresentar defesa contra a acusação de que suas propriedades estão em terras de remanescentes de quilombos. “Alguns movimentos sociais defendem atitudes radicais, como a separação da população brasileira em territórios para negros e territórios para brancos. O Brasil passaria a ser bicolor e não multicolorido como é atualmente”, afirmam, em nota, os representantes do Movimento Paz no Campo. Segundo eles, “muitos membros desses movimentos radicais defendem ações mais agressivas por parte dos intitulados movimentos sociais provocando as invasões de terras, de repartições públicas, de rodovias e tantos manifestos que vemos acontecer por todo o Brasil”. A ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Matilde Ribeiro, diz que, apesar da reação dos fazendeiros e das matérias equivocadas divulgadas pelos meios de comunicação, o governo federal seguirá apoiando o processo de regularização das comunidades quilombolas e corrigindo eventuais equívocos, se necessário. Em setembro, segundo Matilde, será lançado um “pacote” quilombola com a finalidade de acelerar a execução orçamentária de projetos voltados para as comunidades negras, especialmente do Programa Brasil Quilombola, que prevê investimentos na regularização das terras. “Temos no Brasil mulheres e homens negros que vivem a invisibilidade histórica. Mexemos com a estrutura da propriedade da terra e por isso estamos vivendo ataques da mídia. Dizem que o governo Lula está fazendo brotar quilombos, como se eles nunca tivessem existido”, reclamou a ministra, durante a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, no dia 18 de agosto, em Brasília. 19 mulheres quilombolas participaram da conferência. Entre elas, Regina Aparecida Ferreira, uma das coordenadoras da Associação de Remanescentes de Quilombo do Cafundó (SP). Identificada em 1972, a comunidade é freqüentemente visitada por jornalistas, pesquisadores e documentaristas. Mas, segundo Regina, as matérias e filmes não refletem os anseios e necessidades das 25 famílias, que reivindicam 218 hectares de terra e a efetiva aplicação de programas de assistência social anunciados pelo governo. “Falamos uma coisa para os jornalistas e sai outra. Os filmes que fazem aqui não chegam sequer a ser apresentados para a comunidade”, diz Regina, que também reclamou mais espaço para as mulheres quilombolas na Conferência. “Enfrentamos muitas dificuldades para participar dessa Conferência. Viemos porque não conseguimos, das nossas comunidades, cobrar o que o governo nos deve.” A Articulação de Mulheres Negras Brasileiras defendia que todos os estados adotassem, na escolha de delegadas para a conferência nacional, cotas de pelo menos 40% para mulheres negras. Isso nos mais diversos segmentos (governo, movimentos sociais, juventude, sindicatos). A organização da conferência afirma que 45% das delegadas se autodeclarou negra. No entanto, segundo Lúcia Maria de Castro, uma das coordenadoras da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, esse índice poderia ser ainda maior se as cotas fossem respeitadas. “O Rio de Janeiro adotou uma cota de 40% de mulheres negras para as representações de todos os setores. Isso ajudou a ampliar a representação de negras desse estado. Mas em outros lugares esse critério não foi levado em consideração. Reagimos trazendo como prioridade a luta contra o racismo, que foi incluída na segunda versão do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, afirma Lúcia. “As mulheres negras, quilombolas, enfrentaram resistências nas conferências estaduais para apresentar suas reivindicações, para conseguir vagas como delegadas. E não temos dúvida que isso foi uma reação dos governos às reportagens contrárias às comunidades quilombolas, às políticas de ação afirmativa. Eles nos acusam de racializar a sociedade. De criar uma divisão, um conflito. Só esquecem de mostrar as conseqüências perversas do racismo neste país.”