A pedagogia da memória e o Massagre da Lapa

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Freqüentemente omitido quando se fala da ditadura militar, 30 anos depois o último crime de sangue dos órgãos de segurança ainda provoca reflexões e invoca a necessidade de abertura dos arquivos sobre o período

Por Pedro Pomar   Impossibilitado de comparecer ao ato de 19 de dezembro de 2006 no Sindicato dos Jornalistas, em São Paulo, que marcou o trigésimo aniversário do Massacre da Lapa – a última grande operação sangrenta da ditadura militar, que liquidou três dirigentes do então clandestino Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e encarcerou outros seis militantes –, o dramaturgo Augusto Boal enviou aos organizadores mensagem que foi lida na ocasião, da qual destaco o seguinte trecho: “Não só hoje, mas todos os dias, devemos lembrar desses covardes assassinatos, cometidos pela subversiva ditadura cívico-militar que, durante tantos anos, torturou e assassinou tantos patriotas empenhados apenas em restaurar a democracia violada, ditadura que concentrou riquezas e distribuiu misérias. Temos que acreditar na Pedagogia da Memória, não como vingança, mas porque só através do estudo do passado poderemos entender o presente, e preparar o futuro”. Boal participou das massivas manifestações realizadas em Portugal em 1977, em repúdio ao massacre – devidamente registradas pelas lentes do repórter fotográfico brasileiro Samuel Iavelberg. Recentemente, quando se encontrava no complexo penitenciário do Bangu, onde realiza oficinas de teatro com detentos, Boal aproveitou a presença de cerca de 300 pessoas (inclusive “autoridades de todos os tipos”) para falar a respeito do episódio da Lapa, colocando em prática assim a “pedagogia da memória”. A reflexão de Boal provoca indagações. Por exemplo: tendo sido este o último crime de sangue dos “órgãos de segurança” da ditadura, como explicar que seja freqüentemente omitido pela imprensa nas retrospectivas e matérias que tem publicado sobre os anos de chumbo? Que mecanismos objetivos e subjetivos atuam na contramão da “pedagogia da memória”? Embora derrotados pelo movimento de massas na primeira metade dos anos 1980, os generais da ditadura conseguiram negociar com Tancredo Neves e outras lideranças liberais a garantia de uma transição suave para um governo civil, que lhes assegurou a impunidade no tocante aos crimes cometidos contra milhares de brasileiros em nome da “segurança nacional”. Paralelamente, desenvolvia-se – desde o governo do general-presidente Ernesto Geisel – uma ofensiva ideológica mediante à qual forjaram-se determinados mitos, que se prestaram a preservar a imagem do penúltimo ditador, emprestando-lhe uma aura de estadista. A operação para “salvar” Geisel teve início antes mesmo do Massacre da Lapa. A destituição do general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército em janeiro de 1976 – quando do assassinato do metalúrgico Manuel Fiel Filho, na esteira da crise provocada pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975 – e sua substituição pelo general Dilermando Gomes Monteiro foram apresentadas à sociedade, ou assim entendidas, como uma derrota do aparato de repressão simbolizado e representado pelos DOI-Codi, os Destacamentos de Operações de Informações. Divulgou-se um perfil amigável de Dilermando, mais tarde descrito pela atriz Dina Sfat, que o entrevistou em um programa de televisão, como um general “bonzinho O Massacre da Lapa revelou a falsidade tanto da idéia de que os DOI-Codi haviam se civilizado quanto da definição de Dilermando como um democrata buona gente. No início dos anos 1980, a onda de ataques da extrema direita a bancas de revista, à OAB e a outros alvos, cujo ápice foi o fracassado atentado do Riocentro, demonstrou não só que os DOI-Codi continuavam ativos, mas também que os generais no poder, então chefiados por João Figueiredo, recusavam-se a punir seus colegas de armas que se opunham ao processo de abertura em andamento. Apesar das evidências em sentido contrário, a mitificação de Geisel e de aspectos da ditadura ganhou progressivamente novos contornos, com curiosas variantes. A ditadura passou a ser designada “autoritarismo” ou “período autoritário” por alguns historiadores. Outros, mais recentemente, trataram de justificar o golpe militar de abril de 1964 como resultado de uma reação ao golpismo da esquerda! Foi somente na virada do século XX para o XXI que se desvaneceu, ao menos em parte, a imagem do Geisel como o general que enquadrava os órgãos de segurança ou que não admitia a execução dos inimigos do regime militar. A desconstrução do mito Geisel tornou-se possível em boa medida graças a informações publicadas pelo jornalista Elio Gaspari em seus livros sobre a ditadura (ou, como ele gosta de frisar, sobre a dupla Geisel e Golbery). Geisel sabia da execução de opositores e dava sua aprovação a ela. Também, em depoimento prestado a pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, ele admitiu a tortura como prática necessária. Geisel chegou a entender-se com seu predecessor Garrastazu Médici sobre a política de extermínio a ser empregada contra os agrupamentos de esquerda, o que joga por terra a distinção habitual entre os dois ditadores, que fazia do primeiro o contraponto civilizado à ferocidade do segundo. Geisel não se opunha à matança, desde que esta estivesse a serviço dos planos do regime, como na repressão à Guerrilha do Araguaia e na caçada aos militantes do PCdoB. Neste sentido, a morte de Herzog foi um enorme desserviço à ditadura: além de nada acrescentar de útil ao desmantelamento dos grupos opositores, criou forte comoção na sociedade, acelerando o desgaste político do regime. Mesmo assim, é de se notar que o general Ednardo somente foi destituído do comando do II Exército após o “suicídio” de Fiel Filho, portanto mais de dois meses depois do “suicídio” de Herzog. “Terroristas” No caso da Lapa, de dezembro de 1976, aos obstáculos à “pedagogia da memória” já citados, podemos acrescentar outros, específicos daquela ação. A ditadura obteve certo êxito ao retratar – com o auxílio de alguns dos maiores jornais – os militantes do PCdoB como “terroristas”, e ao difundir a farsa de que houve tiroteio entre os ocupantes da casa 767 da rua Pio XI e a tropa dos DOI-Codi (I e II Exércitos). Convém, portanto, reiterar aqui: 1) Não houve resistência ao ataque. Pedro Pomar e Angelo Arroyo foram metralhados sem que tivessem qualquer chance de defesa. 2) As armas apresentadas pelo Dops como recolhidas na casa foram claramente plantadas no local após a execução de Pomar e Arroyo. Entre elas, havia sabres e até um rifle do século XIX. 3) João Baptista Franco Drummond não morreu “atropelado”, como (des)informou o II Exército, mas vítima de uma queda, no vão da antena de rádio do prédio do DOI-Codi na rua Tutóia. Drummond tentava fugir em meio a sessões de torturas. Sua morte ocorreu na madrugada de 16 de dezembro, antes do ataque à casa. 4) A casa esteve cercada e vigiada pelos agentes do Exército durante quatro dias. A Secretaria de Segurança foi oficiada no dia 14 de dezembro sobre a necessidade de bloquear o trânsito na rua Pio XI no dia 16, a partir das 6 horas da manhã. Portanto, o ataque foi marcado com antecedência de 48 horas! Isso demonstra que, se quisessem, os militares poderiam ter poupado a vida de Pomar e Arroyo. 5) A localização do “aparelho” foi possível graças à traição de Manoel Jover Teles, um dirigente do partido que fora preso meses antes, no Rio de Janeiro. Houve um acordo entre Jover e os militares, envolvendo dinheiro e empregos para ele e sua filha numa indústria de armas. Jover não conhecia o endereço: sua colaboração consistiu em deixar-se seguir pelos militares. Quando foi apanhado em São Paulo pelos companheiros de partido, em um ponto combinado com antecedência, os militares limitaram-se a seguir o carro, até descobrir a casa, na véspera do primeiro dia de reunião da direção nacional do PCdoB. 6) Os cinco militantes presos na ação (antes do ataque à casa) foram torturados durante semanas na rua Tutóia: Aldo Arantes, Elza Monnerat, Haroldo Lima, Joaquim Celso de Lima e Wladimir Pomar. Todos, exceto Joaquim, foram também transportados de avião para o Rio de Janeiro, onde sofreram dez dias de torturas no DOI-Codi do I Exército, na rua Barão de Mesquita. Espancamentos, sessões de choques elétricos (nas modalidades “cadeira do dragão” e “tortura chinesa”) e “geladeira” foram os métodos utilizados. 7) O Superior Tribunal Militar condenou Aldo a quatro anos de prisão, Elza, Haroldo e Wladimir a três anos (em primeira instância haviam sido todos condenados a cinco anos), com base na Lei de Segurança Nacional, por “reorganização de partido clandestino”. Dirigentes do PCdoB, todos os quatro tiveram os direitos políticos suspensos por dez anos. Joaquim foi condenado a dois anos de prisão (cinco de suspensão de direitos políticos). Maria Trindade, a caseira que sobreviveu ao ataque e foi presa, e Solange Lima, esposa de Haroldo, foram absolvidas. Vários réus foram julgados à revelia nesse mesmo processo. Entre eles, Armando Teixeira Frutuoso, dirigente do PCdoB assassinado em 1975 no DOI-Codi do I Exército, então comandado pelo general Leônidas Pires Gonçalves. Apesar dos vários depoimentos e referências ao assassinato de Frutuoso, os juízes da Auditoria Militar negaram-se a reconhecer sua morte: ele foi condenado a cinco anos de prisão! A primeira reparação demorou quase 20 anos para surgir. Em 1993, a Justiça Federal reconheceu que João Baptista Franco Drummond morreu nas dependências do DOI-Codi do II Exército, dando ganho de causa à sua família em ação movida contra a União. Em 1996, finalmente, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (do Ministério da Justiça) reconheceu a responsabilidade do Estado pelas mortes de Arroyo, Pomar e Drummond. Vitórias importantes, simbólicas, mas insuficientes. Futuro sombrio? 30 anos depois do Massacre da Lapa, o Brasil pouco mudou no que concerne ao poder institucional dos militares. As Forças Armadas, e o Exército em especial, continuam a comportar-se como nos 20 anos em que exerceram o poder, colocando-se acima da lei, considerando-se credoras e tutoras da sociedade brasileira, como ilustrado por vários incidentes recentes. Situa-se nesse contexto a questão da abertura dos arquivos militares. É preciso desarquivar o Brasil! É preciso escancarar os arquivos da ditadura para que a sociedade conheça tudo que se passou, em toda a sua inteireza. Não é só uma questão de justiça. É um pressuposto para que a sociedade brasileira torne-se verdadeiramente democrática. Ainda se espera do governo Lula uma atitude firme e digna para abrir caminho não apenas ao direito individual, à justiça (garantia constitucional), mas também ao direito da sociedade brasileira de escrever a história da ditadura. No primeiro mandato, o governo lamentavelmente recorreu da corajosa sentença judicial que ordenou a abertura dos arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia. Depois, comprometeu-se a franquear todos os documentos militares referentes à repressão política, mas não o fez. Pelo contrário, em 2005, por iniciativa do governo, o Congresso aprovou a MP 228/04, que institui o “sigilo eterno” de determinados documentos. Teremos no Brasil uma democracia digna desse nome enquanto pairar sobre nós a sombra dos crimes da ditadura? Enquanto os papéis que documentam esses crimes estiverem a salvo de pesquisadores, jornalistas e familiares das vítimas do regime militar? Enquanto vigorar uma Lei da Anistia que contempla torturadores e assassinos? É preciso aplaudir Janaína Teles e seus familiares, que ousaram desafiar um legado cruel ao processar o coronel Brilhante Ustra, pedindo à Justiça que reconheça neste oficial sua condição de torturador. Abrir os arquivos sem mais demora, sem tergiversações; banir para sempre a tortura; abolir a “licença para matar” concedida às Polícias Militares; democratizar as Forças Armadas, que precisam ser transformadas em instituições a serviço da população e da democracia. Estas são tarefas que o governo terá de cumprir se quiser derrotar definitivamente a ditadura militar. F