À procura de um novo socialismo

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O sociólogo Michael Löwy analisa a influência atual do marxismo na América Latina e aponta quais os principais pontos que devem ser debatidos para a construção do socialismo do século XXI

Por Por Glauco Faria e Nicolau Soares   Fórum – Qual é a força do marxismo hoje, tanto no cenário político institucional quanto no dos movimentos sociais da América Latina? Michael Löwy – É difícil medir a força ou a influência do marxismo, não existe um aparelhinho, um “marxômetro”, para um cálculo científico. É uma coisa difusa, às vezes invisível. Se virmos a história do marxismo do século XX até hoje, como tento mostrar no livro O Marxismo na América Latina (Perseu Abramo, 2006), há um primeiro período que chamo de revolucionário, em que estão os primeiros grandes pensadores marxistas, como José Carlos Mariachi. Depois tem o período do stanilismo, que vem já com o alinhamento com a URSS, da idéia da política, da aliança burguesa nacional, da revolução democrático-patriótica, enfim, bastante importante na orientação da estratégia de pensamento. Embora com exceções, como Caio Prado Júnior, que mantém um pensamento autônomo interessante. Com a Revolução Cubana, começa um novo período revolucionário que vai se manifestar em uma série de lutas e ressurreições, resistências, armadas ou não. Um período marcado pelas idéias de Guevara, em que a experiência sandinista foi a mais bem-sucedida. Com a derrota de 1990, posso dizer que terminou este ciclo da Revolução Cubana. Mas, por outro lado, haveria uma outra leitura possível, a de que efetivamente há um certo esgotamento a partir de 1990. Em parte também porque o modelo cubano tem uma série de limitações e problemas. Mas o marxismo continua presente nas lutas sociais, no pensamento, na prática política latino-americana através de uma série de formas não muito evidentes e bastante imprevistas, heterodoxas, e que de alguma maneira têm a ver com essa tradição. Seria o caso, por exemplo, do movimento zapatista no México e que tem, em uma das suas vertentes, o guevarismo. Eles tomam fuzil e depois, obviamente, há uma mudança no enfoque que se dá para o lado da luta política. Mas ainda fica aquela coisa do exercito zapatista. A experiência venezuelana, Chávez e a revolução bolivariana, já é muito diferente. Tem pouco a ver, mas não é por acaso que a referência política do Chávez é Cuba. É uma ressurgência do marxismo onde não se esperava. De um coronel, de corte populista, mas que mudou muitas coisas. Fórum – Hoje o chavismo seria a expressão mais evidente do marxismo dentro das forcas políticas da América Latina? Löwy – Não sei se daria para dizer isso, mas é uma das manifestações. Não diria que é a mais importante, mas é a mais visível. Não sei se seria a que tem mais organicidade, o processo na Venezuela é muito interessante, muito rico, mas é referenciado em uma pessoa. Contrariamente às experiências passadas em que havia mais sindicatos, movimentos etc., o que se tem aí é um líder carismático, com um discurso muito radical, e as pessoas o apóiam. Essa é uma limitação do processo na Venezuela. Mas, se olharmos os movimentos sociais na América Latina, veremos que o MST é o mais importante. É óbvio que sem agitar necessariamente a bandeira do marxismo – o discurso do MST é fundado na educação –, mas os seus quadros políticos são marxistas. É também um marxismo ecumênico, acho muito importante isso. Tem um cartaz do MST que é muito engraçado: tem Luiz Carlos Prestes, Rosa Luxemburgo, Marighella, várias figuras muito diferentes entre si. A influência sociopolítica e cultural do marxismo passa menos pelos partidos do que por movimentos revolucionários como o zapatismo, movimentos sociais como o MST e processos difusos como a revolução bolivariana. Fórum – Dentro da discussão a respeito das alternativas de esquerda, como o senhor vê o processo do Fórum Social Mundial? Quais as conquistas a partir dele que mereceriam destaque? Löwy – A conquista mais importante do Fórum é o próprio Fórum, que apareceu como um pólo alternativo. Isso atrai a atenção de milhões de pessoas no mundo afora que compartilham dessa busca. Obviamente, não resolve o problema, não é o suficiente para virar a mesa, mas é uma primeira condição necessária: haver pessoas que se reúnam e digam que existe uma alternativa. Este mundo que está aí, da guerra, da destruição, da exploração, nós não queremos, nós buscamos um novo mundo, que é possível. Outra coisa importante é o aprendizado recíproco. Há poucos lugares em que sindicalista ouve um membro do movimento de mulheres explicar o seu problema, ou um ecologista, ou marxista, anarquista, explicar as idéias dele. Há um intercâmbio. Também é através do Fórum que vão se dando articulações setoriais muito importantes, por exemplo, no movimento camponês. O Fórum foi um dos veículos que permitiu, por exemplo, à Via Campesina se estender como movimento camponês mundial. Antigamente havia aquilo dos militantes da esquerda e dos paí­ses do Norte serem solidários com os países do Sul, algo como “vamos ajudar esses países, dar um apoio, ajudar aquele pobre diabo que está ali lutando”. Hoje em dia não é mais isso, é gente que está em pé de igualdade lutando pelos mesmos objetivos contra os mesmos adversários. A Confederação Camponesa na França, o MST, o pessoal da Índia, estão lutando contra os mesmos adversários, que são a Monsanto, as multinacionais. Há um novo tipo de solidariedade baseado em luta contra adversários comuns em torno de objetivos comuns. Fórum – E em relação àquilo que o Fórum ainda tem que avançar? Löwy – Não acho que o Fórum deve avançar no sentido de se tornar um movimento político. Sei que há essa proposta, respeito essa vontade. O próprio presidente Chávez tentou vender essa idéia. Mas acho que não passa por aí. No momento em que o Fórum assumir caráter de movimento político, de uma linha, vai acabar, porque os que não aceitam a linha vão sair e os outros vão brigar pela hegemonia. É bom politizar a discussão dentro do Fórum. Isso já houve em Caracas, foi um evento muito politizado, no sentido de que se discutiu o que fazemos em relação aos atuais governos, o que é o socialismo de século XXI, questões políticas que antes estavam um pouco mais marginalizadas e agora estão no centro do debate. Não para tirar uma linha, tirar uma resolução, mas para discutir e ver dessa discussão o que vai sair. Fórum – O senhor falou do socialismo do século XXI. Como seria esse socialismo e qual seria o foco principal? Löwy – Esse socialismo do século XXI tem que fazer um balanço crítico do socialismo do século XX. Não é uma rejeição, mas um balanço crítico que vê os limites, erros, até os crimes realizados em nome do socialismo, pelo stanilismo, pela socialdemocracia... E também avanços que foram feitos e, sobretudo, as idéias dos dissidentes. Além disso, tem que se ressaltar que não pode haver socialismo sem democracia, sem auto-organização de base, e também sem uma ruptura com os fundamentos do capitalismo. E ao mesmo tempo tem que existir uma integração no projeto socialista desses desafios novos colocados pelos movimentos sociais, a questão do feminismo, do indigenismo, da ecologia, temas fundamentais do socialismo do século XXI. Por enquanto é uma idéia, uma utopia, no sentido bom da palavra, pela qual a gente sonha, luta, mas que vai ser um processo histórico longo. Para mim, o marxismo, o socialismo do século XXI, tem que incorporar experiências dos movimentos sociais, aprender com o movimento camponês, com o movimento de mulheres, com os movimentos das comunidades oprimidas, incorporar a questão da cultura indígena, negra. Por último, e talvez mais importante, é preciso incorporar a questão do meio ambiente. O marxismo do futuro tem que ser um marxismo ecológico, um ecossocialismo. Senão vai estar fora da realidade do século XXI.