“A Universidade sem condição” e a resistência à “Escola sem Partido”

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"Sem uma proposta de ação e parceria estratégica transformadora, a educação no país continuará como expressão de marionete de pano controlada-negligenciada pelos poderes assumidos por muitos sujeitos desdenhosos dos valores de uma qualificada educação para o país, os quais estão dentro e fora das universidades" Everaldo Batista da Costa* Esta reflexão é dedicada aos envolvidos, diretamente, com as universidades e as escolas públicas brasileiras. Próximo a completar sete anos introdutórios como docente do magistério superior, cinco deles na Universidade de Brasília, vejo que o tempo é suficiente para apreciar a emergência de uma “Universidade sem condição” [aos moldes postos por Jacques Derrida1, que vislumbra um futuro novo para as Universidades; debate que amplio aos diversos espaços e níveis de ensino e de produção de conhecimento]. Reforço, aqui, poucas das muitas problemáticas atinentes à instituição Universidade: i) o descaso com a ideia do que é “público” (sua gestão e/ou administração); ii) o corporativismo que desemboca no descompromisso docente com os estudantes em sala de aula e fora dela (expresso pela fuga do debate e da crítica política acadêmica e, especialmente, social); iii) a cegueira ou a pseudo-cegueira moral e ética (retratada pela opressão do produtivismo desenfreado, a qual todos somos submetidos nas instituições de ensino superior ); iv) a arrogância estamental (traduzida pelo elitismo e o pretenso poder almejado e compartilhado por alguns docentes, que chega ao nível da perseguição violenta a colegas e a estudantes); v) o bloqueio ou o descaso em se estabelecer diálogos concretos com as bases expressas pelos movimentos sociais e, sobretudo, com as escolas ou os professores do ensino fundamental e médio, no bojo do seu desprestígio público, o que não é fato novo, neste país. Entendo que há alguns fatores preponderantes para o descaso quase geral com determinada Universidade e não toda ela (instituição de compromisso com quais grupos sociais ou econômicos?). Isso advêm do modelo de ciência adotado já na modernidade, cuja base se deu sob ideais de uma sociedade potencializadora das formas, destinada a atender os mandos das técnicas, do dinheiro ou dos poderes constituídos. Nessa sociedade, a ciência universal se fez com valores das ciências naturais, nomeadamente à ideia de transformar o mundo numa questão aritmética e de fixar cada uma das suas componentes numa fórmula matemática, como prenuncia George Simmel2. Ainda, essa ciência moderna caminhou para composição de disciplinas especializadas, parcelárias, participantes da divisão do trabalho, do mercado do saber, imprimindo um estado de aparente segurança (critica Henri Lefebvre3), mas verdadeiramente catalizadoras de um processo de crescimento (que alguns tratam, equivocadamente, por desenvolvimento social) unidirecionado a grupos do poder. A “Universidade sem condição” sucumbe às determinações do capital, afinal, faz-se ela sustentáculo do Estado-mercado. Nessa direção, a formação para uma cidadania crítica, consciente do lugar da democracia e dos lugares na democracia, da participação popular nos processos decisórios em todos os níveis, da concepção de solidariedades sociais, para a interação entre os lugares, é deixada para último ou nenhum plano. Tudo isso se reflete na gestão e nos usos dos territórios, em todas as escalas e níveis de poder. Exemplo de resistência se deu contra aquela proposta de política educacional do estado de São Paulo, na qual jovens estudantes ocuparam, exemplarmente, cerca de uma centena de escolas, na tentativa de barrar uma reestruturação de ensino que previa o fechamento de noventa e quatro escolas, arbitrariamente; mais um descalabro do poder. Precisamos acreditar no potencial transformador das denominadas ciências humanas, ao aprofundar o debate sobre questões como as brutais origens e as duras condições resultantes da acumulação capitalista, o que se expressa em contradições das existências sobre os territórios – humanidades que apontam ou denunciam os problemas. Vejamos o caso do crime social cometido pela Vale do Rio Doce (Samarco) no município de Mariana-MG, expressão mais recente dos dramas que sempre acompanham a busca inconteste do “desenvolvimento” mundo afora. Essa Universidade mal administrada e enviezadamente constituída direciona-se ou dá privilégios a quais cursos, com sua atenção e seus recursos, bem como opera em prol de quais sentidos da vida? Àqueles que atendem, razoavelmente, às demandas do capital e estão a serviço das técnicas ou dos potenciais da globalização; desatenção e migalhas às ciências humanas, uma vez que pouco interessa o sentido de desenvolvimento como liberdade4, ou espaços de pressão ao governo central5. A humanização dos técnicos, dos políticos e dos universitários [em todas as áreas] parece uma tarefa para o futuro. A ciência em geral é vista e tratada como aparato de produção e controle (o saber é relegado ao gueto, diz Henri Lefebvre). No mundo do presente, participa ativamente da imposição generalizada da manipulação, em que a ideia de desenvolvimento social é confundida com a capacidade mais geral dessa manipulação. Quando a “Universidade sem condição” dá as costas ao debate político social criativo e relativo aos segregados, apreendidos pelos usos do território, ela atende às necessidades mais rasteiras para o fazer educacional? Traz para dentro de seus muros [ou vai ao encontro de] os problemas sociais relativos à pobreza ou precarização da existência social, cumprindo completamente seu papel? A missão da Universidade restringe-se aos interesses de doutores individuais centrados em sua ideologia e trabalho fechado? Sua tarefa é a oferta, em progressão geométrica, de certificações profissionais, para que cada vez mais pessoas mergulhem no mercado de trabalho? A “Universidade sem condição”, hoje, realiza suas tarefas em qual nível de qualidade, a dos rankings acadêmicos estatísticos nacionais e internacionais duvidosos? A “Universidade sem condição” está sendo feita por professores (nós próprios, bem doutrinados ou não pelo modelo imposto), estudantes (mobilizados e críticos ou não) e técnicos administrativos (cientes de seu compromisso público ou não). Enquanto instituição, a Universidade se dá com sujeitos em carne e osso. Porém, na matematização da ciência e sua ambiguidade [reflexo de uma visão pobremente geométrica da realidade], com a potência direcionada à manipulação como método soberano da filosofia científica, o próprio pesquisador, o estudante e o técnico assumem uma individualização ou independência quase completa – o que expressa, em meu entender, uma fuga de responsabilidades; estratégia para se eximir de compromissos mais básicos perante a sociedade. A negligência à epistemologia e à ontologia denota a valorização desta manipulação do mundo; o cientista social é tratado como o sujeito do blábláblá. Contudo, este blábláblá chama a sociedade à discussão sobre seu presente e seu futuro, sobre os lugares da vida. O restrito manuseio das coisas do presente de forma direcionada, com o discurso de benfeitorias coletivas (mais pura retórica) é comprovado pelo desgoverno de nossas cidades, pela precarização do trabalho no meio rural e o tratamento criminoso e violento para com a base educativa nacional, tudo isso retratado pelas escolas de ensino fundamental e médio, Brasil afora (de norte a sul, de leste a oeste). Enquanto a educação nacional (base do desenvolvimento social interno por meio de boas práticas para e nas escolas) mergulha e definha em um poço de desesperos e desesperanças, a Universidade que está aí, rendida e vendida aos anseios do mercado, assume uma ciência cada vez mais longe da verdade; paradoxal essa realidade de polos, quando escolas e Universidades deveriam compor uma unidade verdadeira para o pensamento e a ação do desenvolvimento interno nacional. O Estado não parece querer assumir esse compromisso; afinal, pode lhe custar “caro”. A força da oposição à transformação social brasileira materializa-se na atual proposta da “Escola sem Partido”. Determinações reflexivas capazes de colocar em cena a origem-destino dos segregados historicamente em nosso país (negros, mulatos, indígenas, mulheres e crianças pobres etc.), reflexões a lançar luz sobre os cotidianos das margens, deveriam ser as bases de qualquer campo disciplinar, valorizando o sentido essencial de ser da sociedade. Quais disciplinas formam seus alunos com um olhar mais estrábico sobre as realidades territoriais? Em que medida a Universidade mais próxima tem debatido seu lugar na formação cidadã e, efetivamente, apresenta propostas para a melhoria da qualidade de vida local, regional e nacional, com pesquisas de denúncia e para uma prática política transformadora e localizada? Segundo Maria Adélia de Souza, a ciência, a técnica e a informação podem ser apropriadas não apenas pelo mercado, mas serem colocadas a serviço de um novo mundo, mais justo e que contemple os pobres do planeta6. Se a Universidade, como sugere Derrida, é desprovida de poder próprio, uma vez que sua impotência se expressa no assédio e na incapacidade de defesa perante os poderes que a comandam [Estado e estruturas que a demandam historicamente], qual a saída, para a emergência de uma “Universidade Condicionada ao Ser Social”, notoriamente? Se ela se rende, se vende, se arrisca a servir simplesmente para ocupar, tomar, comprar, prestes a se tornar uma sucursal de conglomerados internacionais, segundo Derrida, o que nos resta a fazer? Resistir pelo questionamento, pelo chamado público ao debate, pelo apoio epistemológico, ontológico, esclarecedor e traduzido junto aos professores, pais e estudantes escolares! O caso da resistência estudantil, em São Paulo, bem como o atual debate contra a “Escola sem Partido” podem e devem ser exemplos notórios de repúdio à negligência com nossos jovens nacionais. Mas, é necessário sairmos um pouco de nossos gabinetes, na Universidade. É urgente a aproximação às escolas, uma das bases da formação humanística mundial, de forma efetiva! Os movimentos docentes universitários, quando em debate pela entrada ou não em greves ou em diálogo com o governo, não deve reduzir a problemática ao plano de carreira, questões salariais e melhorias na educação superior. Olhar para dentro não basta; se há fronteiras ou limites a serem superados, eles se dirigem para fora; estratégias de somatório de forças devem ocorrer na aproximação dos distintos níveis de ensino nacional, para reverberar às governanças omissas. Sem uma proposta de ação e parceria estratégica transformadora, a educação no país continuará como expressão de marionete de pano controlada-negligenciada pelos poderes assumidos por muitos sujeitos desdenhosos dos valores de uma qualificada educação para o país, os quais estão dentro e fora das universidades. Derrida questiona, de forma pertinente, em que medida, a organização da pesquisa e do ensino deve ser sustentada, ou seja, direta ou indiretamente controlada, de maneira eufemística “patrocinada”, visando a interesses comerciais e industriais, exclusivamente? Intensifica a problemática a lógica em que as Humanidades fazem-se áreas pouco valorizadas pelo próprio Estado, lugares abandonados, quando o discurso distintivo direciona variados recursos e condições aos departamentos de “ciência pura” ou “aplicada”, que agregam os investimentos mais rentáveis de capitais nacionais e estrangeiros no mundo acadêmico. Isso faz com que uma parcela dos cientistas sociais se rendam ao processo. Por isso, Maria Adélia de Souza é enfática ao dizer que as humanidades ficaram desprovidas do humano e aderiram às formulações oportunistas exigidas pela racionalidade técnica, da qual passaram a ser tributárias. A “Universidade sem condição” retrata os tormentos da sociedade que está aí, cada vez mais virtualizada e fragmentada. Todavia, poderia e deveria, com muitas estratégias de fácil arranjo, ser exemplo de resistência institucional às lógicas de desumanização, de individualização e de mercadorização exacerbada da vida social. Em síntese, o que coloco é a importância da parceria progressiva real entre os sujeitos da Universidade e da Escola, do ponto de vista prático, na busca de um caminho necessário à transformação da educação neste país, pelos movimentos. Fica este brevíssimo chamado ao debate pela mobilização docente, estudantil e de técnicos somados aos escolares, em prol de novos espaços de ensino-aprendizagem e produção do conhecimento (utopia mais que necessária). O Estado e os Governos fingem de “cegos” para os problemas que nos batem à porta, diariamente. Só para lembrar, a violência é uma categoria econômica – diz Lukács7 –; como tal e no contexto aqui discutido sinteticamente, está dentro das instituições de ensino. A “Escola sem Partido” surge de um ciclo vicioso. Assume uma bandeira ou um partido conservador e retrógrado, ganhando força na progressão geométrica do descompromisso universitário com a formação consciente-cidadã dos futuros profissionais, em todos os níveis e áreas. A resistência à “Escola sem Partido” também depende de uma nova Universidade, mais condicionada à cidadania plena. 1 DERRIDA, J. A universidade sem condição. São Paulo: Cia das Letras, 2003. 2 SIMMEL, G. A metrópole e a vida do espírito. In: FORTUNA, C. (org.). Cidade, cultura e globalização: ensaios de sociologia. Celta Editora: 1997, p. 29-37. 3 LEFEBVRE, H. Hegel, Marx, Nietzsche o el reino de las sombras. 12ª Ed. Madrid: Siglo XXI Editores, 2010. 4 SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Motta. São Paulo: Cia das Letras, 2010. 5 SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp: 2007. 6 SOUZA, M. A. A. As humanidades e a universidade: crises e futuro. Biblos, Coimbra, nº 1, 2015, p. 31-56. 7 LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012. *Everaldo Batista da Costa é Professor doutor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília – UnB