A ameaça de retrocesso

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A conquista é histórica e, segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a reivindicação data de mais de 30 anos. Trata-se da lei nº11.738/08, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 16 de julho que instituiu o Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) para os profissionais da educação pública no valor de R$ 950,00. O projeto apresentado pelo senador Cristovam Buarque (PDT) tramitou por 13 meses na Câmara dos Deputados e no Senado Federal antes da aprovação e pode ser o primeiro passo para estruturar a educação de qualidade para todos no Brasil.
Com a medida, é assegurada também a obrigação desta remuneração ser atingida sem bonificação, garantindo-se assim uma aposentadoria calculada em valores reais. Outra conquista é a reserva de um terço da jornada de trabalho do docente para atividades extraclasse, ou seja, para um professor com jornada de 40 horas semanais, a cada 27 horas trabalhadas em sala, ele deve destinar 13 para preparação das aulas, planejamento, correção de provas e formação continuada.
As medidas são válidas a partir de janeiro de 2009 e o prazo de transição para que seja plenamente aplicada se encerra em 2010. “É um importante passo no sentido da valorização da educação. O piso é o início de um novo rumo em direção à justiça da condição social do professor”, avalia Célio da Cunha, assessor especial para a área de Educação da Unesco no Brasil. Já Marilene Betro, diretora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Bahia (APLB), observa que a batalha pela implementação sempre exigiu um piso de R$ 1.100 para os habilitados em ensino superior e R$ 800, para os de ensino médio. “Valorizar a educação passa necessariamente pela remuneração. O piso já estava previsto na Lei de Diretrizes de Bases da Educação, não é novidade, mas um direito conquistado. Além disso, o valor do piso não é o ideal, mas foi o que conseguimos no Brasil”, pondera a sindicalista.
Com a lei sancionada e data certa para sua efetiva implementação, a movimentação calcada nas lutas pelo piso vão continuar, mas agora em outras frentes. Muitos governadores e prefeitos foram à mídia falar sobre aspectos que consideraram prejudiciais, contando (como sempre) com o apoio dos grandes veículos. O jornal Folha de São Paulo, por exemplo, em seu editorial intitulado “Piso Pedagógico”, de 5 de agosto, não mediu palavras para passar o “pito” nas autoridades. “Desleixo de prefeitos e governadores deixou passar dispositivos ruins na lei que fixou salário mínimo de professor”, afirma o texto que, indignado, dá o tom da campanha antipiso. “Em vez de ater-se a seu objetivo – cumprir a Carta e fixar um salário mínimo para o professor brasileiro –, a lei determina que nada menos que um terço da jornada de trabalho do docente seja reservada para atividades extraclasse. Não há motivo para norma federal descer a tal pormenor.” Outro jornal que deu o seu puxão de orelha foi o gaúcho Zero Hora. Já no dia 21 de julho afirmava que os cálculos preliminares feitos pelo governo do estado “apontam números atemorizantes”, mas destacava que “houve tempo para o setor público se preparar”.
E foi assim, “atemorizados”, que os secretários de Educação se reuniram no dia 31 de julho, em Porto Alegre (RS), na 3ª Reunião do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). E logo uma tropa de choque liderada pelos três estados que mais arrecadam na federação, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, prometeram reverter a situação. “O Congresso [Nacional] estragou o projeto. A proposta original do Executivo era correta, tratava de piso e não de jornada. Foi o Congresso que se submeteu à pressão do movimento sindical”, argumentou Mariza Abreu, secretária de Educação do Rio Grande do Sul. Da reunião surgiu a estimativa de que a lei causaria um impacto de R$ 5,9 bilhões em dez estados da federação e que seria necessário contratar cerca de 125 mil professores para aumentar a jornada extra-classe. A conclusão foi entregue dias depois, em forma de documento, à bancada tucana da Câmera e a senadores pedindo a revisão da lei.

A questão da jornada
Com tantos números, parece que as autoridades e a mídia esqueceram de perguntar para os mais interessados o que significa o piso salarial. “É evidente que a medida vai beneficiar professores, alunos e suas famílias e vai se refletir, futuramente, em melhores índices de desenvolvimento, com distribuição de renda e valorização dos trabalhadores”, sustenta Artur Henrique, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Roberto Franklin Leão, presidente da CNTE, em artigo em que também cobram a responsabilidade conjunta dos entes federativos para a melhoria da educação. “Alegar a inconstitucionalidade da medida, como já estão fazendo alguns governadores e prefeitos, é menos compreensível ainda. Em campanha, todos são unânimes em proclamar a necessidade de valorizar professores, portanto, um pouco de coerência é o mínimo que esperamos.”

Quanto à estimativa no aumento dos gastos na área, apresentado pelo Consed, educadores, sindicalistas e especialistas são unânimes: é impossível pensar em melhorias na educação e promover a valorização do professor sem novos investimentos. “Sinto como se estivéssemos no século XIX, com a lei abolicionista e a movimentação contra ela. Não consigo entender como os secretários de Educação podem ser contra o piso. Não é só pelo dinheiro, pois quem arca com os custos adicionais é a União, isso está na lei. É um crime o que estão tentando fazer”, indigna-se o senador Cristovam Buarque, autor do projeto original de lei do piso salarial nacional.
“Estão usando parâmetros para falar em valores que vão gastar, mas estamos falando das condições essenciais daqueles que são responsáveis pela formação do futuro trabalhador do Estado, daquele que vai gerar trabalho e renda para o próprio Estado. Precisamos parar com isso que investir em educação é desperdício”, pondera a sindicalista Marilene Betro. Na Bahia, o piso do professor é de R$ 415,00 e muitos municípios só chegam a isso com bonificações diversas, por lá está assegurada, desde 1987, a destinação de 13 horas para atividades fora da sala de aula a cada 28 trabalhadas.
Apesar de muitos dos 417 municípios não cumprirem até hoje a lei, Marilene assegura que a conquista do piso no estado foi essencial para a qualidade da educação baiana, sendo que a lei nacional pode ser um passo ainda maior. “Essa reserva de tempo não pode ser considerada como tempo que o professor fica ocioso, nossa experiência aponta que muitos reservam esse período para avaliar e debater os rumos das escolas e o aperfeiçoamento do projeto pedagógico”, detalha a sindicalista.
As considerações de Marilene acerca do envolvimento com as questões internas da escola encontram eco no depoimento da professora Gisele Almeida Castro, que atua na Grande São Paulo. “O piso para mim não vale, pois em São Paulo o valor é maior, mas assegurar que um terço da minha jornada é para atividades fora da sala de aula será essencial para começar a me envolver mais na escola. Trabalhamos muito com atividades extra-classe sem ganhar a mais por isso, e não sobra tempo para nada”, conta a professora. No entanto, a secretária de Educação do Estado de São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro, afirma ser necessário um gasto adicional de R$ 1,4 bilhão por ano para a contratação de professores devido à jornada estabelecida pela lei e questiona a legalidade da medida. “Não faz nenhum sentido, em um regime federativo, ter uma lei federal que regulamente as carreiras estaduais e municipais. Quem oferece educação básica são os estados e municípios”, alega.
Os professores da rede pública de Minas Gerais enfrentam resistência semelhante e, junto ao Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sindiute/MG), estão em greve desde o dia 28 de agosto (até o fechamento da edição a greve durava 30 dias). Eles reivindicam a valorização da categoria, melhorias na infra-estrutura e implementação imediata do piso salarial nacional. Segundo informações do sindicato, o piso salarial dos professores no estado é de R$ 333,26 pela jornada de 30 horas.
“Temos estados que pagam mais do que o piso oferece, mas há outras conquistas a serem buscadas. Ter mais tempo para preparar e elaborar as aulas é essencial para melhorar a educação no país”, defende Gilberto Araújo, membro da direção do Sindicato dos Trabalhadores de Ensino Público do Estado da Paraíba (Sintep). “O professor vai ter tempo para estudar, para se preparar e preparar as aulas. Hoje ele não dá aula, faz maratona, porque dar oito aulas por dia é uma maratona”, sustenta Cristovam Buarque.

A implementação e os passos seguintes Se o Consed se articulou para atacar o piso, a perspectiva é de que os sindicatos da categoria façam o mesmo do outro lado. “Estamos nos mobilizando e deixando claro que haverá muitas outras [lutas]. Esse piso é uma conquista nossa e será uma luta árdua”, afirma o professor Gilberto Araújo, da direção do Sintepe paraibano. No estado, no último dia 16 de setembro houve uma paralisação de quase 100% da rede estadual. O motivo: a luta pela implementação imediata do piso salarial. Pela mesma razão, os professores se mobilizaram em outros 11 estados e prometem, daqui até o final do ano, uma série de atividades sempre no dia 16 de todo mês, em referência à data de sanção da lei do piso.
“Não pode deixar esfriar. O piso tem que ser apenas o começo e sua implementação é urgente”, opina o especialista Célio da Cunha, que vislumbra o período posterior à implementação e as lutas seguintes. “É tarefa do Ministério da Educação (MEC) e do governo supervisionar a implementação do piso, e da sociedade civil cobrar. Não podemos deixar passar essa oportunidade. A batalha acontece na sala de aula e precisamos, a partir da Lei do Piso, criar um Sistema Nacional de Formação. Formar mais e melhor ao longo da vida para assegurar uma escola pública de qualidade. Precisamos colocar um ponto final na situação do professores mal remunerados.”
Cristovam Buarque também pede mobilização contra o que qualifica como “um passo atrás” e também sugere que a próxima frente de batalha deva ser a questão do plano de carreira. “Uma proposta que já está em debate no Senado é a implementação da Carreira Nacional do Magistério, que definirá um novo plano de cargos e salários. Funcionaria por uma prova e, anualmente, selecionaria e daria formação a 100 mil professores por ano”, explica. “Após a formação, eles ganhariam um salário razoável, cerca de R$ 4 mil, e iriam para algumas cidades com estruturas novas e com horário integral na educação, além da dedicação exclusiva. Em 20 anos agindo desta forma atingiríamos todos estados do Brasil”, explica o parlamentar. F

A lei, 19 anos depois
“É um momento muito importante para o Brasil. Só tenho a agradecer a luta de todos que estão aqui, que resultaram no projeto que institui o piso”, declarou Gumercindo Milhomen, que representou os professores durante a cerimônia no dia 16 de julho deste ano, em que foi sancionado o projeto de lei que criou o piso nacional. Milhomen foi o primeiro parlamentar a apresentar um projeto de lei propondo a criação do Piso Salarial Nacional, em 1989. À época no PT, foi presidente da Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), entre 1981 e 1987.
Seu projeto previa o piso com reajustes mensais pelo índice de inflação do Dieese e fazia referência à proposta aprovada no XIV Congresso da Confederação do Professores do Brasil (CPB), em 1981, que estipulou o valor do piso em três salários mínimos para uma jornada de 20 horas semanais. No Congresso, a proposta não foi muito bem vista e acabou sendo rejeitada, inclusive com argumentos que ressoam, nos dias atuais, como a suposta interferência na autonomia das unidades federativas.
Somente em 1993 o assunto voltaria à pauta. Na gestão Itamar Franco, o ministro da Educação Murilo Hingel assinou o Plano Decenal da Educação e o Pacto pela Valorização do Magistério e Qualidade da Educação Publica, ambos frutos da I Declaração Mundial de Educação para Todos, formulada em Jomtien (Tailândia), em 1990, sob coordenação da Unesco. Dentre as iniciativas, foi proposto um piso salarial nacional no valor de R$ 300, que deveria ser implementado em 1995 e corrigido pela inflação. Porém, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, praticamente todos os acordos e pactos assinados pelo governo anterior na área da Educação foram revogados ou extintos. Segundo a CNTE, o acordado em 1994, reajustado pela inflação até o final de 2007, equivaleria ao valor de R$1.575,00, pela jornada de 30 horas semanais. “As duas gestões de Fernando Henrique caracterizaram-se pelo estímulo à privatização e à municipalização da educação, pelo encolhimento do Estado brasileiro em relação à educação superior e tecnológica e pela redução de direitos dos trabalhadores”, denuncia Juçara Dutra no livro O Piso Salarial Nacional dos Educadores. Dois Séculos de Atraso. Na obra, ela discute a brutal influência dos organismos internacionais – como o Banco Mundial – nas políticas nacionais, e narra a situação das discussões sobre o piso durante este período. “Evidentemente, nessa conjuntura, a discussão sobre o PSPN não tinha as mínimas condições de prosperar”. Após a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, o assuntou voltou a ser tema de debates.
Porém, somente nos dois últimos anos do primeiro mandato, os professores tiveram sua reivindicação novamente pautada pelos seus representantes legislativos. Em 2006, a Medida Provisória nº 339, regulamentou o Fundeb, e estipulou prazo de 90 dias, ou seja, até 30 de abril de 2007, para que fosse encaminhado projeto de lei sobre o piso salarial ao Congresso Nacional. À época, alguns projetos de lei tramitavam paralelamente na Câmara dos Deputados e no Senado, entre eles o do senador Cristovam Buarque, que, aprovado em 2006, instituía um piso de R$ 800 para portadores de habilitação de nível médio e de R$ 1.100 para portadores de diploma de nível superior. O mesmo projeto recebeu emendas durante os 13 meses de tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado e foi aprovado no dia 2 de julho, em caráter definitivo, e sancionado pelo presidente Lula, no dia 16 de julho de 2008. F