A caminho da Índia

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Vinte e três de janeiro, chuva forte em Porto Alegre. Depois de dias de muito sol, São Pedro parece querer aprontar na marcha de abertura do Terceiro Fórum Social Mundial. Capas e guarda-chuvas preparados. Ao notar o ato “Pela Paz, contra a Militarização e a Guerra, até o santo resolve mostrar de que lado está. Recebe milhares de pessoas no Largo Glênio Peres, no centro da capital gaúcha, com temperatura agradável e nenhuma gota d’água. Daí por diante, por 4 horas, tribos de todo o planeta gritam palavras-de-ordem, fazem protestos bem-humorados e cantam. “Bush é um bom companheiro/ Bush é um bom companheiro/ Ninguém pode negar/ Se não ele manda matar.” Ao chegar à Praça do Pôr-do-Sol, no começo da noite, todos preparam-se para ouvir Paulinho da Viola e Sivuca.

Mas é no dia seguinte que começa a verdadeira maratona. Com cerca de 1,3 mil oficinas e seminários (organizados por entidades e ONGs), 100 mil participantes, entre eles 20 mil delegados de 156 países, dividem-se entre painéis, mesas de diálogo e controvérsia, testemunhos, conferências... Em duas delas, cerca de 15 mil pessoas acotovelam-se no ginásio do Gigantinho para ouvir Eduardo Galeano (veja texto à pág12), Noam Chomsky, Leonardo Boff, Jean Ziegler. Na pauta dessas conferências, “Paz e Valores” e “Como Enfrentar o Império”, dois temas presentes em praticamente todas as discussões.

Seqüestro de Davos Já na marcha, a faixa anunciava uma das polêmicas desta edição do FSM: “Davos, desista. O Lula é um dos nossos!” A discussão continuou até que o presidente resolveu enfrentar a multidão e tentar explicar. Em seu testemunho, no anfiteatro do Pôr-do-Sol, afirmou que o convite para ir à Suíça foi feito em conseqüência do que sempre disse em Porto Alegre. E que o FSM é uma prova inquestionável da capacidade de organização da sociedade civil. “Embora estejamos tão longe de Davos, tenham certeza de que o encontro da Suíça não tem mais a força que tinha antes do Fórum Social Mundial. (...) Vocês conquistaram um espaço na História”, lembrou. Lula saiu aplaudido, principalmente por reafirmar que iria dizer na Europa o mesmo que sempre falou por aqui. E garantiu que pediria aos países desenvolvidos para optarem pela paz. “Vou dizer que o mundo não está precisando de guerra, mas de paz, de compreensão. (...) Como seria bom se, em vez de gastar com armas, gastássemos dinheiro com pão, feijão e arroz para pôr no prato das pessoas”, afirmou. Mas Lula não esteve presente no Fórum só no dia de seu testemunho.Em quase todas as discussões, de gente de todas as partes do planeta, falou-se da expectativa e da esperança com o novo governo brasileiro.

O julgamento da mídia Outra polêmica durante o FSM foi a presença do presidente Hugo Chávez. O venezuelano não era convidado oficial, mas apareceu, deu entrevista coletiva e participou do julgamento da tentativa de golpe feita pela mídia de seu país no ano passado.

Para um dos organizadores do FSM, Francisco Whitaker, a presença de Chávez não atrapalhou nada. “Fez um evento no hotel em que ficou e tinha todo o direito de agir assim.” Para ele, mais importante que a presença de estrelas como Chávez e Lula foi a participação de entidades do mundo inteiro nas 1,3 mil oficinas, que serviram para discutir a luta de cada um. “A principal idéia que se tira do Fórum é que vale a pena continuar criando esse tipo de espaço pelo mundo afora. Para que as pessoas que trabalham em diversas áreas possam trocar experiências. Por exemplo, quem lida com meninos de rua em pequenas cidades discute com outros que trabalham controlando a Câmara Municipal em outro município. Isso dá mais força para cada movimento, ao mesmo tempo em que se vê que o mundo não se reduz ao mundinho deles.”

Cadê as propostas? As idéias, que aparecem a todo momento dentro do Fórum, foram e estão sendo recolhidas e devem ser publicadas em breve. Essa é umas novidades da atual edição, em que houve o compromisso de repassar todas as sugestões assumidas por delegados em oficinas, seminários etc. O mural de Propostas de Ação é uma espécie de resposta a quem fica sempre cobrando propostas práticas, muitas vezes sem entender o verdadeiro espírito do encontro. Não existe um documento final com as “resoluções do Fórum”. Por um motivo simples, apontado por Chico Whitaker, o de ser praticamente impossível fazer uma proposta que seja aprovada pelas 100 mil pessoas que participaram. “Você vai pôr a enormidade de ações que existem para mudar o mundo num documentozinho de duas páginas? Obviamente todos ficarão esquecidos. Se vai discutir um documento final vai passar os cinco dias debatendo aquela vírgula, aquela frase que não entrou. Esse é um sistema piramidal, nós somos aqui um sistema horizontal. Todos os documentos dos participantes são documentos finais. O Fórum é esse conjunto.”

Mas há quem desconfie do atual sistema e queira mudanças para a próxima edição, já marcada para 2004, na Índia, ainda sem data nem local definidos, escolhas que devem acontecer nos próximos meses. Um dos críticos é o indiano Jai Sene (veja entrevista à pág. 10), que faz parte do comitê que organizará o próximo fórum. Para ele o III FSM foi um evento maior do que deveria. “De modo geral, o que fica é que um Fórum tão grande não é bom, que não somos capazes de lidar com essas proporções”, afirma.

Roberto Sávio, membro do conselho internacional do Fórum, é outro que questiona esse tamanho. Diz que há três elementos principais no FSM: a mobilização dos que querem denunciar um mundo inaceitável, a participação e as trocas que faz com que todos saiam mais cheios de energia de Porto Alegre e a necessidade de elaborar estratégias e propostas para um mundo diferente. “Não é com o gigantismo que se podem alcançar essas metas”, afirma. Lembra que na última reunião do conselho internacional ficou decidido que no Fórum da Índia já não haverá coincidência com a data de Davos. E que a escolha do país asiático é um passo importante na internacionalização do FSM.

Para os que já estão saudosos do Fórum, tristes por abandonar Porto Alegre e não terão como pegar o caminho das Índias no ano que vem, os organizadores nacionais dizem que está sendo estudada a possibilidade de fazer no Brasil, em 2004, um fórum temático para, nas palavras de Cândido Grzybowski, pensar a transição e a refundação do Brasil. “Aqui podem passar coisas que interessam ao mundo. Não exatamente por ter o governo Lula, mas para saber qual é nosso papel enquanto cidadãos para fazer essa coisa ir além? Como radicalizar a situação brasileira? Esse é um desafio para nós e para o mundo.” Seja como for, os saudosos de Porto Alegre podem já marcar na agenda o ano de 2005, para quando está prevista a quinta edição do Fórum Social Mundial, na capital gaúcha.