A disputa pelo conhecimento

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O telefone toca e atende Ladislau Dowbor. Do outro lado, um jornalista de uma emissora de TV quer saber como vão abrir os mercados depois do feriado. “Não faço idéia de como vão abrir, não entendo disso”, responde o filho de poloneses nascido na França e radicado no Brasil desde os quatro anos. “Mas o senhor não é economista?”, indigna-se o jornalista. Diante da confirmação, ele insiste: “Então, do que o senhor entende?”. Não foi exatamente simples para o professor da PUC-SP explicar que está mais interessado em temas como desenvolvimento e sistemas de poder local, a economia do conhecimento e sua democratização.
Para falar de alguns desses temas é que Dowbor recebeu a reportagem da revista Fórum. Desde 2002, mantém uma página eletrônica com seus artigos e livros que publica sob uma licença Creative Commons, que permite que todos baixem, leiam e distribuam os textos gratuitamente.
Descrente de qualquer “ismo”, Dowbor prefere olhar o que têm em comum os lugares onde as coisas funcionam: o retomar das rédeas do desenvolvimento. As gestões descentralizadas e participativas são a forma mais racional de organizar o conjunto dos processos produtivos, especialmente dos bens comuns, como conhecimento, água e petróleo. Confira os principais trechos.

Fórum – O senhor fala do paradigma da competição substituído pelo da cooperação na economia. Como se dá esse processo exatamente?
Ladislau Dowbor –
Na base desse processo está a mudança radical da tecnologia. As pessoas não percebem que estamos provavelmente diante do processo de transformação tecnológica mais radical que a humanidade já viveu, o que tem duas dimensões fundamentais. Uma é a capacidade virtualmente ilimitada de estocagem de pesquisa, informação e conhecimento, um eixo cuja amplitude em termos de repercussão planetária está começando apenas. O outro, vinculado a este, é que a dimensão do conhecimento no conjunto dos processos de criação de riqueza se deslocou para conhecimentos técnicos e tecnológicos de diversos tipos. Quando se compra hoje um produto, quando muito, 25% são custos materiais, 75% são de pesquisa, estudos, publicidade, comunicação etc. Isso muda radicalmente os processos porque, quando a base da produção da riqueza é o conhecimento e o sistema de comunicação e informação permite que todos tenham acesso a esse acúmulo planetário – com diversos entraves –, o que acontece é que passamos do sistema de bens rivais para não-rivais. Quando passo o meu relógio para você, deixo de tê-lo, ou seja, a propriedade faz sentido. Mas quando passo conhecimento, continuo com ele e, como você vai utilizá-lo de outra maneira, ele se multiplica. Quanto mais você faz circular o conhecimento, mais todos se enriquecem.
Quando falamos em uma economia centrada em processos colaborativos, não é uma visão reciclada de esquerda, mas a descoberta de que essa é a forma mais racional de organizar o conjunto dos processos produtivos. É possível ver isso em trabalhos recentes, como o de Alvin Toffler, A Riqueza Revolucionária, que atesta como mudou radicalmente o conceito de riqueza. Wikinomics, que aplica o conceito Wiki à economia, e apresenta centenas de exemplos de empresas que descobrem que podem gerar um processo colaborativo. Por exemplo, um laboratório farmacêutico que pode verificar a validade de um medicamento por meio de uma amostra controlada ou gerar um processo colaborativo em que todos que usam o remédio possam dar sua opinião. Um terceiro trabalho muito interessante é de Peter Senge, um dos papas do management, com Necessary Revolution, que simplesmente constata que, para a evolução do sistema de conhecimento, a mudança é necessária. Claro que viemos antes, Hazel Henderson, em vez do “eu ganho, você perde”, propõe debater qual o tipo de articulação em que ambos ganhamos, o “win-win”. Mesmo Celso Furtado – que só não é prêmio Nobel de Economia pelo modo deformado como a escolha é feita –, que contrapõe a importância do lucro ao conceito de produto social.
Outro eixo complementar é o do esgotamento de recursos. Há alguns anos fiz, com o Renato Tagnin, o livro Administrando água como se fosse importante. Não é um muro das lamentações sobre o esgotamento da água, mas como administrá-la de modo inteligente, que tem que ser por meio de processos colaborativos. Não adianta cada um cuidar do seu. Um uso inteligente, por exemplo, é organizar sistemas de pactuação por bacias geo¬gráficas em que os usos industriais e agrícolas encontrem seu caminho, porque são sistemas interdependentes, o que um joga como esgoto priva de água todos que moram rio abaixo. As pessoas em São Paulo andam a 14 km/h e queima-se combustível aos borbotões, sem se perceber o quão irracional é isso.
O que se chama em economia de bens comuns exige processo colaborativo. Precisamos de processos colaborativos em recursos escassos, não só por causa do aquecimento global, mas também para evitar a destruição da vida nos mares, do esgotamento do solo, assim por diante. É um planeta pequeno demais para poder simplesmente obedecer aos clássicos e neoclássicos que deixam qualquer um maximizar seus proveitos que, para eles, traria benefícios a todos. O sistema de valores do Ocidente está se encerrando de certa maneira. Digo “encerrando” dentro de uma dimensão de desejo, porque você explicar isso para a Exxon-Mobil, que ganha rios de dinheiro se apropriando de um recurso natural, é difícil, mas a humanidade está se dando conta de que o prejuízo é para todos. O conceito da evolução da competição, que ganhe o melhor e se dane o resto, está nos levando à barbárie. É uma forma eficiente somente em termos micro, em termos de produto, não de resultado. É a “eficiência” que permite, por exemplo, extrair mogno e liquidar com a floresta amazônica. O resultado é desastroso.

Fórum – Sempre que ocorre uma mudança econômica, ela vem acompanhada de um aparato ideológico. O senhor vê algo assim atualmente?
Dowbor –
Hoje, há centenas de exemplos de coisas que estão funcionando sob esses novos paradigmas. Não apareceu O Capital da economia do conhecimento, o livro que mais sistematiza as transformações no horizonte é A Sociedade em Rede, do Manuel Castells. Atualmente, está mudando o conceito de economia do tempo, de territorialidade, o conceito de meios de produção, de infra-estrutura. Há diversos elementos que compõem essa mudança, mas quando se tem mudanças sistêmicas é prematuro querer fazer a teoria geral. Muita gente está fazendo a lição de casa e outros estão reagindo a isso.

Fórum – Como contrapor-se ao poder dessas transnacionais que querem barrar as transformações?
Dowbor –
Em um estudo chamado Inovação Social e Sustentabilidade, apresento minha visão. É legal reunir as pessoas pra dizer que um outro mundo é possível, mas tem que mostrar que outra gestão é possível. Enquanto não se faz a ponte entre os ideais e os processos decisórios da sociedade, não se tem mecanismos para a construção desses ideais. Hoje, trabalho com o conceito de resiliência, que é a capacidade de uma estrutura agredida resistir a um processo de mudança. Quando são construídas as estruturas de edifícios hoje em regiões de terremoto não se põe mais concreto e mais ferro para torná-las mais rígidas, buscam-se estruturas mais flexíveis para se adaptar às mudanças. Um autor como [Thomas] Homer-Dixon diz o seguinte: há uma convergência de tragédias ambientais e sociais que vão se juntando e colocando o planeta em perigo. Se você trabalhar com sistemas descentralizados, com mais liberdade de fluxo de informação, autonomia e independência dos subsistemas, o sistema se torna resiliente frente às ameaças que vão chegando, existirá uma possibilidade maior de resposta.
Um sistema é resiliente porque você pode atacar aqui e ali as conexões das mais diversas formas, existe um sistema de auto-defesa. Quando você está, na sua vida pessoal, em uma situação extremamente insegura, quer manter o máximo de portas abertas possíveis. Ter um leque de soluções compensatórias obedece ao princípio da precaução. O fato de não se ter a visão teórica geral, não significa que se está impotente. Quando você constata um problema, começa a reagir.
A idéia de resiliência tem um chão. Quando surgem as idéias de sistemas integrados e multimodais de informação, como o sistema norte-americano militar, começa a nascer a visão de um sistema integrado. Depois você tem o brilhantismo de Tim Berners Lee que cria a web. O interessante é que uma ONG criou o principal processo de avanço de produtividade do planeta, que foi montado no Centro Europeu de Energia Nuclear (Cern). Interessante é que todo mundo conhece o Bill Gates e ninguém conhece o Tim Berners Lee, a distância em termos de contribuição para a humanidade é imensa.

Fórum – Qual o papel da economia solidária nesse aspecto?
Dowbor –
A linha é democratizar a economia. Como propunha o pensador do século XX Bertrand Russell, foi uma evolução para a humanidade chegar ao conceito de democracia, sem um rei por direito divino. Mas no plano econômico continuam grandes grupos comprando um do outro, transferindo [fábricas] com operários. Trabalhei muitos anos na ONU, na Ásia, na África, na América Central. Conheço também os Estados Unidos, o Canadá, a Suécia. Países pobres e ricos. Posso dizer que não acredito hoje em nenhum “ismo” em particular. Minha preocupação está em constatar o que têm em comum os lugares onde as coisas funcionam. O denominador comum é que são países ou regiões em que as populações se apropriaram dos processos de desenvolvimento. Há um recuperar das rédeas do processo decisório social pela própria comunidade. Tão simples e complexo assim. Pude constatar isso na Suécia, onde, em média, cada pessoa pertence a quatro associações comunitárias. O orçamento é descentralizado a ponto de o uso de mais de 70% dos recursos ser decidido pelas próprias comunidades. No Brasil, é apenas 15%. Não é só o tamanho do Estado, mas onde ele está. Há uma sociedade participativa que é muito difícil alguém conseguir inventar da própria cabeça. A Suécia é rica e nórdica. Mas na Índia, no estado de Kerala, uma grande área, a renda per capita é de US$ 300, dez vezes menor que no Brasil, mas a mortalidade infantil é metade da nossa. Usam de maneira participativa os poucos recursos que têm. Trabalhei em regiões na África que tinham escapado do “progresso da colonização” por distanciamento, onde os rios que serviam à irrigação estavam limpos, a terra não tinha sido ocupada por grandes proprietários e era fértil para produzir o arroz. São áreas em que, na nossa forma de contabilizar PIB, vive gente de extrema pobreza. Mas, no convívio, não vi uma pessoa com dentes careados, nenhuma com as nossas obesidades.
Não que o passado distante seja ótimo. O uso inteligente e participativo dos recursos é que funciona. Isso engancha com visões de futuro que tenham, como denominador comum, democracia em um sentido muito mais amplo envolvendo uma série de processos econômicos. O eixo central é este: como restituir à sociedade as rédeas sobre os processos decisórios.

Fórum – Mas quem se beneficia da concentração econômica não vai aceitar passivamente esse tipo de transformação. Como enfrentar esses focos de resistência ao processo colaborativo?
Dowbor
– É combater mesmo. Existem empresas que querem “produzir madeira” e estão liquidando a cobertura florestal do planeta. Não produzem nada, se apropriam de bens naturais e os vendem. Petróleo é a mesma coisa. Os que vendem água no supermercado torcem para haver mais coliformes fecais na torneira do que na garrafa e, portanto, se transforma água em bem precioso. As empresas farmacêuticas imobilizam e proíbem pesquisas sobre determinados princípios ativos para manter monopólio – chamo isso de economia do pedágio. Nas duas horas e vinte do filme A Corporação entende-se mais sobre o embate das transnacionais e as visões humanitárias do planeta do que passando seis meses lendo livros. Ali está colocada, com toda a clareza, a tensão entre a apropriação, a geração planetária de mais-valia que não é no nível produtivo, mas social, que gerou a estrutura de poder que hoje são um conjunto nocivo. Essa estrutura de poder está sentindo o calor. Quase todas as empresas dizem que têm programas verdes, de responsabilidade social e ambiental. A ampla maioria disso são ações cosméticas, mas é simplesmente necessário. E estão surgindo pessoas conscientes que adotam uma posição anticorporativa. É gente de dentro do sistema, do mainstream da economia – que não tem nada de gostar de tartaruga –, para falar da falência dos mecanismos de mercado do planeta, como Joseph Stiglitz.
Da mesma maneira que [George W.] Bush tem o “Eixo do Mal”, há um outro eixo do mal formado por empresas como a Exxon-Mobil que financiam filmes e dão dinheiro a pseudocientistas para tentar mostrar que não existe aquecimento global. Eles não produzem nada, estão extraindo, vendendo e fazendo dinheiro. As empresas que fazem as ações pró-cíclicas que tiram o dinheiro quando há risco de crise para forçar a quebra e recomprar as ações a preço mais baixo. Construir quebradeiras. Lembre-se das teorias da bola da vez nos anos 90, a Rússia, o Sudeste Asiático, o México, a Argentina. É gente que pega as leis vigentes e a zona jurídica e não pode ser acusada criminalmente de ilegalidade, mas claramente contribuem de maneira imensamente negativa para o planeta. Não são muitas empresas, basicamente as rough corporation são entre 500 e 600 corporações internacionais com imenso poder que, por meio do controle da publicidade, de patentes, do conhecimento, tentam travar esse processo. Nos produtos, incorporam o uso da publicidade, o que faz com que seja extremamente difícil para os meios de comunicação falarem delas, porque são financiados pela publicidade, que mantém o status dos produtos. Fecham o circuito da construção da boa imagem dessas corporações.

Fórum – As detentoras de patentes estão nesse grupo de empresas?
Dowbor
– O problema das patentes e do controle do conhecimento é absolutamente vital. Ignacy Sachs, quando lançou o último livro dele no Brasil, disse que, se no século passado o embate era por quem controlava as fábricas, porque o centro da economia era a indústria, hoje o grande embate é quem controla o direito de acesso ao conhecimento. O conceito de propriedade intelectual está no centro do embate da Organização Mundial do Comércio, chama-se Trips [Trade-related aspects of intelectual property rights], em que grandes corporações tentam se apropriar de grandes sistemas de acesso ao conhecimento. É para aí que se desloca o poder.
Há contribuições como a de diversos autores, a construção do Creative Commons e o copyleft. Meu site é copyleft. Os cursos do MIT hoje podem ser acessados gratuitamente dentro do que eles chamam de open course web, OCW, em analogia ao softwares open source. É um movimento de cientistas. Direito autoral atualmente não é direito de quem cria, é dos intermediários. Ao conceder uma entrevista a um canal de TV sempre me fazem assinar um [contrato de] copyright dizendo que todos os direitos vão para eles. Eu digo: “Mas são minhas idéias”. Por isso acrescento uma frase: “Fica assegurado ao autor o direito de utilizar as idéias da maneira que quiser”, o que contradiz o restante do contrato, mas é assim. Essa é a guerra.
Não só não devemos impedir o acesso aos bens não-rivais como temos de pegar a imensa massa de gente excluída do planeta e ajudar ao máximo por meio de cursos, capacitação e acesso on-line, à apropriação desse processo por que passa a humanidade. Essas empresas em geral são dominadas por intermediários financeiros, especialistas em finanças e advogados. Quando surge alguma boa idéia em termos de produtos, compram a empresa dos pés-rapados que promoveram a inovação e acham o máximo ganhar US$ 100 milhões, e os advogados asseguram a posse do que foi criado. É a grande briga, a economia do conhecimento.

Fórum – Alguns pesquisadores, escritores e músicos também mostram resistência à idéia de copyleft. A pergunta que fazem é como eles se sustentam?
Dowbor
– É o estribo da justificação dos intermediários, dos donos do pedágio. Os donos dos laboratórios farmacêuticos admitem que cobram mais caro, mas dizem que é para financiar a pesquisa. Algumas pessoas questionam o fato de eu manter meus artigos e livros abertos no site, porque não ganho dinheiro. Para já, são 50 mil acessos por mês. Posso até ganhar dinheiro com uma faixa de publicidade. Mas não preciso ganhar dinheiro necessariamente com tudo que faço. E a forma como circulam meus trabalhos faz com que eu seja convidado para eventos e palestras que me pagam. Meus livros vendem porque o pessoal cansa de ler na tela. É sair da visão de que alguém tem que ganhar para aquela em que todos ganham. F
Para saber mais:
Riqueza Revolucionária, de Alvin Toffler e Heidi Toffler (2007), defende que o mundo vive atualmente a transição para a chamada economia do conhecimento, que desafia o conceito de riqueza. Ele entende que a compreensão desse novo sistema pode ajudar a reduzir as desigualdades e a pobreza extrema. De acordo com ele, “Estamos vivendo época semelhante à que precedeu a Revolução Francesa, em que a burguesia já havia tomado conta do poder informal, mas as estruturas políticas não haviam ainda se adequado a essa realidade”.
Wikinomics: How Mass Collaboration Changes Everything, assinado por Don Tapscott e Anthony D. Williams em 2006, faz “uma metáfora para uma nova era de colaboração e participação” ao aplicar a idéia de Wiki à economia. Eles analisam a lógica de produção colaborativa de conteúdos e como ela altera hoje a economia e o funcionamento de empresas, que terão vantagem em relação a seus concorrentes caso adotem o compartilhamento de informações.
The Necessary Revolution, de Peter Senge, foi publicado em 2008 e apresenta estratégias de pessoas e empresas para dar sustentabilidade a produtos e processos, de modo a torná-los mais rentáveis. O autor é apontado como uma das personalidades mais influentes do mundo dos negócios. F