Abril de 2002, o golpe da mídia

A forte participação dos meios de comunicação é o enfoque da análise do editor da Fórum, Renato Rovai, no livro "Midiático Poder, o caso Venezuela e a guerrilha informativa".

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No dia 11 de abril de 2002, há cinco anos, ocorria uma golpe tentativa de golpe militar na Venezuela. O esforço para depôr presidente Hugo Chávez foi encampado pela mídia e pela elite venezuelanas, mas acabou mal-sucedido. A forte participação dos meios de comunicação é o enfoque da análise do editor da Fórum, Renato Rovai, no livro "Midiático Poder, o caso Venezuela e a guerrilha informativa".

Por Renato Rovai

Nos dias anteriores à greve, a mídia contrária ao governo Hugo Chávez convocou o movimento exaustivamente, em chamadas que se repetiam a cada dez minutos.”

Mesmo com esse apoio extraordinário, a paralisação não foi maciça. Os funcionários públicos trabalharam, como boa parte do setor privado. A greve teve muito mais característica de locaute. Os donos de empresas fecharam as portas e pediram que seus trabalhadores ficassem em casa. Mas a Fedecámaras e a CTV consideraram o movimento um sucesso e decidiram continuá-lo. A paralisação é esticada para 48 horas. E no dia 10 passa a ser por prazo indeterminado e a ter como objetivo não só a readmissão dos diretores, mas a renúncia do presidente da república.

Os apresentadores dos telejornais convocam as marchas desses dias, em meio a outras notícias, como a alta do dólar, ou o aumento do preço do feijão. No bloco seguinte, as marchas voltam a ser destaque do noticiário. Só que, em vez de um anúncio convocatório, o apresentador entrevista famosos que, de maneira geral, fazem comentários com o mesmo tom, expondo suas preocupações com o destino do país e dizendo que participariam da marcha do dia seguinte.

Um show midiático foi criado para justificar o golpe no dia 11 de abril. A escolha das lideranças políticas das manifestações, no entender da jornalista Blanca Eekhout, fazia parte do script. Pedro Carmona, presidente da Fedecámaras, a entidade nacional dos empresários, e Carlos Ortega, da Central dos Trabalhadores Venezuelanos (CTV) significavam trabalhadores e empresários unidos, a imagem forte que os meios poderiam oferecer como garantia de que a sociedade venezuelana estava unida contra um ditador.

As passeatas realizadas nos dias 9 e 10 eram acompanhadas por um pool de TVs, que trocavam imagens da cobertura. A vinheta utilizada nas emissoras para anunciá-las não deixava dúvida a respeito do tom editorial: “ni un paso atrás”.

Na marcha do dia 11, a estratégia midiática foi ainda mais agressiva. As emissoras RCTV, Venevisión e Globovisión transmitem a marcha ao vivo. (...)

“Na rede de rádio Union, um trio, popular entre os opositores do presidente, cobre a passeata: Marta Colomina, Miguel Rondon e Kiko. Kiko, repórter em meio à marcha, analisa:

– Um dia histórico para a Venezuela. Do estúdio, onde estão Marta e Rondon, 12 horas antes da queda, se ouve:

– Parece que Chávez não está no Palácio, se foi...” (...)

Caça a chavistas O governo de Pedro Carmona nem estava instalado e as rádios e TVs comunitárias do país já sentiam a força “democrática” de suas ações. Os veículos de comunicação alternativa haviam sido invadidos e tirados do ar ainda durante a madrugada do dia 12. (...) Só havia a versão das emissoras comerciais.

Desde cedo elas mostravam prisões de personalidades próximas a Chávez e invasões de suas casas, principalmente de deputados da base de apoio do governo deposto. Os militares e a Polícia Metropolitana chegavam a essas residências acompanhados de jornalistas para que fosse difundido o linchamento moral e físico a que essas lideranças eram submetidas por “populares” revoltados. As lideranças saiam de suas residências e iam direto para a cadeia, sem direito a julgamento. (...)

Como a mídia comercial do Brasil viu esse golpe No dia 12 de abril de 2002, sexta-feira, os principais jornais do Brasil comentavam apenas os acontecimentos que tinham levado ao conflito que resultaria, na madrugada daquele dia, no golpe midiático-militar que manteve Pedro Carmona presidente da Venezuela por 47 horas. (...) A tônica geral era de que havia caído mais um presidente impopular na América Latina. (...)

Nessa mesma sexta-feira, dia 12, a Rede Globo de Televisão produz um Jornal Nacional especial, dedicado quase que totalmente à Venezuela. Artigo do professor Gilson Caroni Filho, à época professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Rio de Janeiro), conta na íntegra e com precisão como foi aquele JN. (...)

“A Globo mostrou franco-atiradores disparando contra a multidão que protestava. No jogo semântico da emissora, como de resto o de toda a imprensa brasileira, quem não reza a cartilha neoliberal, como o presidente venezuelano, pretende ser ‘messiânico’, ‘salvacionista’, e isso leva à perdição. (...)

Mas vamos ao discurso festeiro e ordenador de cautelas ao eleitorado da Rede Globo em seus telejornais de sexta-feira. (...)

“Num pedaço do mundo onde a democracia ainda é uma experiência recente, Hugo Chávez e [Fernando] de La Rúa [ex presidente argentino] frustraram milhões de eleitores em seus países com promessas que não poderiam cumprir. ‘Que sirva de alerta aos brasileiros neste ano de eleição’”, recomenda o cientista político Fernando Abrúcio, em São Paulo. “É bom lembrar que é preciso colocar a democracia no lugar do salvacionismo. Mas tem que resolver a questão econômica e social, talvez com mais paciência e menos demagogia (...)”

Mas o momento mais espalhafatoso e hilariante daquele Jornal Nacional ainda estava por vir. O suposto comentarista Arnaldo Jabor, segurando uma banana, deleitava-se:

“Eu ia dizer que a América Latina estava se ‘rebananizando’ (...)

Mas aí, hoje, o Chávez caiu. Só que os militares entregaram o governo a um civil democrata. Talvez a América Latina tenha entendido que a idéia de romper com tudo, do autoritarismo machista, só dá em bananada. Temos que nos defender sim da atual arrogância imperial americana. Mas a única maneira será pela democracia radical.

Por isso acho boa notícia a queda do Chávez. Acordamos mais fortes hoje e eu já posso ‘desbananizar’ a América Latina. Para termos respeito da América e do mundo temos de ser democráticos. Tendo moral pra dizer não.”

Internet, motoboys, celulares e postes de luz A reação popular ao governo golpista de Carmona não se deu somente em Caracas. No interior do país, o povo foi às ruas exigir a volta de Hugo Chávez. Até porque a popularidade do presidente era mais alta no interior do que na capital. Mas foi em Caracas que a reação colocou em xeque o novo regime. “Como não se sabia o que estava acontecendo, tanto porque o novo governo tinha fechado as principais rádios e TVs comunitárias e os veículos comerciais não falavam mais nada sobre Chávez e a revolta das ruas, as pessoas organizaram um circuito de comunicação alternativa que foi a salvação do movimento. Em primeiro lugar, os que tinham internet se comunicavam com gente do mundo inteiro e se inteiravam a respeito de como outros governos estavam tratando o golpe”, conta Blanca Eekhout. “Essas pessoas avisavam seus amigos por telefones, que permaneceram ligados. Principalmente aos celulares”, completa. Em Caracas, em razão do mau serviço da telefonia fixa que quase não atende os bairros populares, a maior parte dessa população faz uso de celulares. (...) Nesse circuito alternativo de informação, foi muito importante a ação dos motoboys. Em Caracas, eles são aproximadamente 1.500. A maior parte vive na parte alta da cidade e é chavista. Após a definição dos horários dos protestos contra o golpe, eles visitavam os bairros e repassavam a informação para que outras comunidades pudessem se organizar. Isso fez com que os motoboys fossem duramente reprimidos pela Polícia Metropolitana. (...)

Até os postes de luz de Caracas que são de metal acabaram sendo utilizados como instrumento de comunicação. Os motoboys passavam com barras de metal batendo nos postes e fazendo um barulho ensurdecedor. Era a senha para que as pessoas saíssem para receber informação. “Ou como preferiam os jornais locais, para que as hordas chavistas se organizassem”, ironiza o jornalista, Aran Aharoniam, correspondente internacional na Venezuela quando do golpe e, ao fim da edição do livro, diretor da Telesur.