As eleições de 2016 e o futuro das esquerdas brasileiras

Com o fim do 2º turno das eleições municipais é possível organizar uma avaliação mais consistente sobre o (trágico) desempenho das esquerdas e, assim, sugerir algumas pistas para enfrentarmos o complexo desafio da renovação do pensamento e da ação política de esquerda no Brasil.

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Acreditamos que é preciso superar as cisões que nos (des) organizaram nos últimos dez anos e avançar para a formação de uma frente política e social plural e democrática que possa não só resistir à restauração neoliberal como também reinventar as esquerdas no Brasil dos próximos anos Por Josué Medeiros e Vinícius Wu* Com o fim do 2º turno das eleições municipais é possível organizar uma avaliação mais consistente sobre o (trágico) desempenho das esquerdas e, assim, sugerir algumas pistas para enfrentarmos o complexo desafio da renovação do pensamento e da ação política de esquerda no Brasil. Nos concentraremos no desempenho do PT, um dos principais protagonistas do processo político partidário brasileiro desde 1989, partido que governou o Brasil entre 2003 e 2016, e do PSOL, o principal antagonista, à esquerda, no campo ainda hegemonizado pelo PT, mas não sem reconhecer a importância da incorporação dos demais partidos de esquerda em um balanço mais abrangente. No 1º turno, o grande derrotado havia sido, de fato, o PT, “varrido” das capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores. O quadro se repetiu agora, quando o partido perdeu todas as sete disputas de 2º turno que participou. O PT que disputou esse pleito é um partido acéfalo, incapaz de se posicionar adequadamente no Brasil pós-golpe de Temer e Cunha. Um partido em profunda crise, que emite poucos sinais de que aceitará rever suas práticas e estratégias, preferindo, ao contrário, esconder-se enquanto vítima de uma brutal perseguição das elites. Que há um ataque feroz da direita brasileira ao PT, não resta nenhuma dúvida. Mas, o que o partido se recusa compreender é que o sucesso dessa cruzada anti-petista se deve à contradições, erros e impasses do próprio PT, que deveriam ser debatidos a fundo, algo pouco provável a depender da vontade da maioria de sua direção partidária. Nesse contexto, o PSOL chegou a supor sua emergência como alternativa ao PT, animado pelas perspectivas de vitória em três importantes capitais: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belém do Pará. A maioria do partido parece haver compreendido que é a hora de transformar a mera negação do PT em projeto político concreto, superando o viés parlamentarista que marca o partido desde sua fundação. O que, por óbvio, não deixa de ser um sinal de amadurecimento do PSOL, que não deve ser obliterado pela tripla derrota sofrida pelo partido nessas capitais. Ao contrário, é importante para as esquerdas brasileiras que seu ethos purista seja derrotado, o que ampliará a possibilidade de construção de convergências entre o PSOL, setores do PT, PC do B, PDT, Rede e entre esses e os movimentos sociais que se encontram na Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo, ou que se expressam através de novas formas de ativismo – algo indispensável para a resistência à atual ofensiva neoliberal. Refletir sobre eventuais erros do PSOL é também refletir sobre o futuro da esquerda e sobre os caminhos da democracia no Brasil. De tudo o que vivemos nos últimos dois anos, talvez o mais importante seja a abertura da possibilidade de compreensão, por parte da esquerda radical, de que estão muito mais próximos da experiência do PT do que puderam imaginar. E que, portanto, o aprendizado e a reflexão sobre o futuro podem - e devem - ser feitas em conjunto. Afinal, o principal erro do PSOL nessas eleições foi o de não compreender que o golpe de Cunha e Temer havia sido, acima de tudo, um golpe contra a esquerda, contra as políticas sociais, contra a distribuição de renda, os valores humanistas e democráticos, e contra a noção de que a política é o caminho mais adequado para a transformação social dentro da ordem democrática. O PSOL acreditou que poderia ocupar o lugar que antes era do PT sem perceber, no entanto, que o que ocorreu foi uma brutal diminuição do espaço existente para a atuação da esquerda. Esse ponto é fundamental porque ele se manifeste, por exemplo, no crescente número de não votantes no país (abstenções, nulos e brancos). Algumas análises (inclusive à esquerda) tendem a minimizar esse fato, atribuindo-o a questões técnicas como a defasagem de lista de eleitores ou número expressivo de eleitores que alteraram seu domicílio eleitoral. Nada mais distante da realidade e uma análise simples do quadro eleitoral de São Paulo nos últimos anos demonstra que parece haver uma relação direta entre crise da esquerda e crescimento dos não votantes: em 2000, a esquerda conquistou 2 milhões de votos no 1º turno, enquanto o contingente de não votantes somou 1 milhão e 500 mil. Em 2016, as esquerdas caíram para cerca de 1 milhão de votos, enquanto o número de abstenções, nulos e brancos na cidade subiu para 3 milhões. Trata-se de um crescimento recente, pois os não votantes se mantiveram estáveis entre 2000 e 2008, oscilando em torno de 22%, passando para 29% em 2012 e para 35% em 2016. No Rio de Janeiro, o processo de crescimento dos não votantes começou antes, já em 2008, quando esse número chegou a 28%, contra 22% em 2004. Em 2012 foram 31% os que não escolheram nenhum candidato e 39% em 2016, ao todo 2 milhões de pessoas. Sem compreender adequadamente o atual período político, o PSOL terminou por se perder durante as disputas municipais numa retórica udenista, vazia, na qual coube até loas à operação Lava Jato em pleno período eleitoral por parte da candidata do partido em Porto Alegre. Em certa medida, o PSOL repete o que parte do PT fez nos anos 1990, com o agravante de que agora, na atual conjuntura, o “udenismo de esquerda” se revelou totalmente ineficaz do ponto de vista eleitoral. Ao aderir à onda de negação da política, o PSOL pavimentou o caminho para outro erro estratégico, que marcou as campanhas no Rio e em Porto Alegre – a exceção foi Belém – qual seja, o autoelogio ao sectarismo e ao isolamento ("não fazemos alianças em troca de tempo de TV"). Ao invés de buscar ampliar sua base eleitoral com alianças no campo democrático, o PSOL preferiu fazer de um de seus principais defeitos, virtude. Em Porto Alegre, Luciana Genro se recusou a fazer um pacto de apoio mútuo das esquerdas, caso uma das candidaturas chegasse ao segundo turno. No Rio, o PSOL rejeitou formar uma chapa mais ampla já no primeiro turno, e mesmo quando passou ao segundo graças à migração massiva dos votos que estavam com a deputada Jandira Feghali, do PC do B, não soube ou não quis envolver formalmente em sua campanha os partidos que passaram a apoiar Freixo. Nos parece fora de questão que tais erros do PSOL não anulam o fato de que Freixo seja, hoje, a principal liderança da esquerda carioca, protagonista de um notável feito, que foi levar esse campo político ao 2º turno depois de 24 anos. Mas, a superação de tais erros será fundamental para que Freixo possa seguir liderando as esquerdas na cidade e também para que ele se projete no plano nacional. Cumpre registrar que o péssimo resultado eleitoral das esquerdas deve ser creditado, acima de tudo, à correlação de forças que permitiu o golpe da dupla Cunha/ Temer, e que segue sustentando o governo ilegítimo originado a partir dele. Há fortes indícios de que estejamos diante de uma transição: de uma ordem democrática, pactuada por todos os setores sociais, para um arranjo autoritário de novo tipo, no qual se bloqueia a ação das classes subalternas não através de tanques nas ruas, mas pela ação política do judiciário. Há de se registrar, ainda, como fator explicativo para a profunda derrota que a esquerda acaba de experimentar, uma fragilidade comum aos dois partidos, que é a incapacidade de elaborar uma leitura mais apurada das transformações no tecido social brasileiro ocorridas na última década. O caso dos evangélicos no Rio é emblemático. A incompreensão no meio da esquerda é generalizada. Trataram a emergência das igrejas neopentecostais de maneira simplista, como se tudo se tratasse de manipulação. Ignoram os espaços de sociabilidade construídos por essas instituições, o caráter comunitário que elas apresentam tanto para as parcelas mais fragilizadas das nossas classes trabalhadoras quanto para seus setores emergentes. Igrejas evangélicas, em muitos bairros e comunidades pobres do país, ocupam importantes vazios deixados pelo Estado, criam espaços de acolhimento, de solidariedade, geram empregos, formam pessoas, ensinam música, criam um ambiente de esperança e fé na prosperidade que as "elites esclarecidas" jamais compreenderam ou sequer buscaram entender. Sem uma compreensão generosa e mais aprofundada desse fenômeno, a esquerda seguirá vociferando contra as igrejas evangélicas, unificando-as apesar delas estarem muito longe de serem um bloco monolítico, transformando-as, equivocadamente, em um todo único e coeso quando se trata de um conjunto complexo e diverso de processos sociais. Se pretende ter futuro no Brasil, a esquerda deverá transcender suas limitadas formulações a respeito dos diferentes fenômenos sociais que fizeram emergir novos sujeitos na cena pública, com suas novas agendas e dinâmicas políticas desafiadoras. E se é verdade que os governos do PT promoveram um avanço civilizatório ao erradicar a miséria, é igualmente verdade que o mesmo se deu através de um processo de ascensão sob a égide do mercado, e que tais setores agora são hegemonizados pelo moralismo conservador e dão respaldo popular à condenação da política por parte das elites que se volta, fundamentalmente, contra as esquerdas. Finalmente, em que pese o tom crítico desse breve balanço, acreditamos que é preciso superar as cisões que nos (des) organizaram nos últimos dez anos e avançar para a formação de uma frente política e social plural e democrática que possa não só resistir à restauração neoliberal como também reinventar as esquerdas no Brasil dos próximos anos. * Josué Medeiros é doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ e Vinícius Wu é mestrando em Comunicação Social pela PUC-Rio Foto de capa: Jornalistas Livres