Branda. Pra quem?

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Há 45 anos, no dia 1º de abril de 1964, um golpe de Estado era efetivado no Brasil. O país foi governado durante 20 anos por militares, e somente em 1989 o povo voltaria a eleger um presidente de forma democrática. Nem Argentina nem Chile tiveram um período tão longo de autoritarismo: a última ditadura portenha vigorou entre 1976 e 1983, enquanto Augusto Pinochet permaneceu 17 anos à frente de seu país. Mesmo assim, há quem diga que o Brasil viveu uma “ditabranda”.
A expressão em si não é nova, e foi utilizada algumas vezes para definir o período entre 1964 e 1968, primeira fase do regime militar, que Elio Gaspari denominou em um de seus livros como Ditadura Envergonhada, segundo a tese de que o “escancaramento” só viria com o AI-5. Mas o jornal Folha de S.Paulo quis alargá-lo para abarcar todo o período da ditadura, remetendo também à utilização da mesma expressão pelo ditador chileno Pinochet, em discurso oficial. O periódico justificou ainda, em resposta à carta de um leitor: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”. Uma conta equivocada, mas que incrivelmente encontra eco ainda hoje em setores da sociedade brasileira.
“Sem dúvida nenhuma é totalmente equivocado chamar a ditadura brasileira de ‘ditabranda’, ela não foi uma ‘ditabranda’, ela foi uma ditadura. Foi diferente das ditaduras da Argentina e Chile em alguns aspectos, mas similar em outros, porque todas surgiram na Guerra Fria, todas derivam dessa lógica pela segurança nacional, todas perseguiam aqueles que consideravam inimigos, militantes de esquerda, e tinham como principal alvo deter a ‘ameaça comunista’”, explica Glenda Mezarobba, autora do livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do caso brasileiro. No entanto, veículos como o periódico paulistano seguiram a lógica da segurança nacional à época do regime militar. “Fiquei horrorizada, pois como um veículo como a Folha de S.Paulo pôde se colocar de uma maneira dessas? Sem prestar o mínimo de solidariedade àqueles perseguidos? Mas, aí, me lembrei que a história da Folha nunca foi de solidariedade. Ela estava a serviço da ditadura, houve uma colaboração. Mesmo assim, a gente esperava um pouco de respeito”, lamenta Cecília Coimbra, psicóloga e uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais.
“Em geral, deve-se dizer que as violações de direitos humanos não podem ser vistas como um dado quantitativo. Um ato de tortura é uma violação de direitos fundamentais, do mesmo modo que são 100 ou mil. Quem argumenta que o passado deve ser esquecido porque os militares brasileiros não mataram tantas pessoas como os militares guatemaltecos fazem uso de uma aritmética perversa. Por esse raciocínio, os crimes horríveis deveriam ser perdoados se são atípicos. Esta é uma aritmética imoral”, contesta o sociólogo peruano Eduardo Gonzales. Não só a comparação baseada em números de mortos e desaparecidos é equivocada na essência como tende a esconder dados que são fundamentais para avaliar os danos causados pelos regime autoritário brasileiro: desde o que ele deixou como “herança” para o país e a ainda discutida questão da anistia até aspectos como o que ele representou para outros países da América do Sul, em termos de colaboração para a consolidação de outras ditaduras no continente.
“O dano causado pela ditadura brasileira deve ser contabilizado além de uma consideração numérica. Em primeiro lugar, em todo o processo político, os militares brasileiros foram indispensáveis para o surgimento de ditaduras semelhantes no resto da região. Foram os primeiros a estabelecer una ditadura institucional, que respondia à corporação militar e não a um caudilho, desenvolveram e difundiram a chamada Doutrina de Segurança Nacional e participaram ativamente do ‘Plano Condor’ para capturar ou matar opositores em toda a América do Sul”, argumenta Eduardo Gonzales, que atenta para outra “contribuição” do governo militar. “O número absoluto de vítimas fatais da ditadura, ainda que menor que o causado pela ditadura chilena ou argentina, não deve desviar a atenção de outros dados importantes: o uso da tortura e a perseguição, inclusive fora das fronteiras do país, eleva significativamente os números de vítimas de violações de direitos humanos. E o fato de a tortura, o desaparecimento forçado e a execução extrajudicial terem sido usados de maneira sistemática por meio de instituições estatais explicitamente criadas para esse fim”, completa.

A abertura dos arquivos
O episódio da “ditabranda” reflete também a dificuldade com que o Brasil lida até hoje com seu passado. Até hoje ainda se discutem pontos da transição democrática que foram superados em países que passaram por situação semelhante, como a abertura dos arquivos do período de repressão, uma reivindicação bastante antiga de diversos movimentos.
“A lei nº 11.111 na prática cria um regime pouco transparente, que amplia de maneira potencialmente indefinida a classificação de materiais e que não possibilita nenhum acesso significativo ao passado”, esclarece Gonzales. “Esta debilidade é um profundo problema. Afeta os direitos das vítimas de violações de direitos humanos e de suas famílias. Esta informação deveria ser entregue aos familiares de mortos ou desaparecidos, inclusive por um simples ato humanitário”, defende.
“A negação da informação afeta também a imagem das Forças Armadas: na medida em que não se separa quem teve as mais altas responsabilidades na execução das políticas repressivas, o descrédito atinge toda a instituição, em lugar dos responsáveis diretos. Por último, toda a sociedade brasileira é envolvida, expropriando-se seu próprio passado: os meios de imprensa, os educadores, os historiadores, todos perdem quando o passado se esconde.” Cecília Coimbra segue o mesmo raciocínio e crê que um pedido de desculpas de parte das Forças Armadas seria um passo importante para esse acerto de contas com o passado. “Agora seria o momento das Forças Armadas pedirem desculpas pelo que se passou. Mas isso ainda não aconteceu, nenhum militar veio a público para isso. E o que vemos é que se faz uma mise-en-scène para abrir pífios arquivos da ditadura e ainda não sabemos como as pessoas eram presas – não só quantas exatamente, mas por quê, como e para onde eram levadas”, protesta.
James Green, historiador de estudos latino-americanos e professor da Universidade da Califórnia fala sobre as dificuldades que enfrentou para pesquisar as relações entre Brasil e Estados Unidos durante o regime militar. E, incrivelmente, as dificuldades para se acessar os documentos públicos na América do Norte também foram significativas, evidenciando que a “terra da democracia” encontra dificuldades para reconhecer seu passado de colaboracionismo com ditaduras do hemisfério sul. “Fiquei muito frustrado na minha própria pesquisa ao saber que tinha pelo menos 500 documentos no Arquivo Nacional do Departamento de Estado sobre o Brasil que são parcialmente ou totalmente ‘readaptados’ para que não possamos entender exatamente a relação entre os Estados Unidos e o governo militar brasileiro. Espero que, com os novos critérios do governo Obama, estes documentos possam ser liberados”, auspicia. “Abrir os arquivos é fundamental para compreender o passado não falado. O povo brasileiro, tanto quanto o povo americano, tem o direito de saber as ações do Estado e livre acesso à informação sobre tudo que o governo militar fez é fundamental para a constituição e a permanência de uma democracia verdadeira.”
Na prática, tal falta de transparência que perdura até hoje foi uma característica da ditadura militar que a distingue – de forma negativa – dos vizinhos. Enquanto na Argentina e no Chile houve uma participação no cenário político significativa de enviados da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e mesmo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aqui não ocorreu o mesmo. E foi justamente isso que propiciou aos movimentos em prol dos direitos humanos nesses países, especialmente na Argentina, mobilizarem instituições internacionais. Assim, diversas organizações constatam rapidamente as graves violações aos direitos humanos. “No Brasil, nossa diplomacia consegue barrar isso para impedir registros. O movimento pelos direitos humanos no Brasil praticamente começa com a mobilização pela anistia. Na Argentina havia uma tradição muito importante nesse sentido, e lá eles vão conseguir trabalhar essas questões de uma maneira muito mais pró-direitos do que aqui”, relata Mezarobba.

Fonte: Blog São Paulo Urgente

A questão da anistia
Especialistas na área de Direitos Humanos entendem que o legado de sistemáticas violações de direitos proporcionadas pelos regimes de exceção gera obrigações posteriores aos Estados. Estas alcançariam não apenas as vítimas, mas a sociedade como um todo, conforme explica Glenda Mezarobba. Para ela, o aparelho estatal se obriga a quatro tarefas fundamentais: investigar, processar e punir os violadores; revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade; oferecer reparação adequada e afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de funções de autoridade.
Um dos aspectos controversos do processo de democratização é justamente a Lei da Anistia. “Durante os anos 1970, o regime militar chega em um momento em que tem que se ‘reinventar’ para poder continuar – porque a intenção era poder prosseguir. Aí a anistia ganha ainda mais força nesse debate, porque havia muita gente exilada, muitas lideranças, e havia uma pressão forte para que essa lideranças de oposição voltassem”, conta Mezarobba. “Outra preocupação do regime militar é que, como ele está pensando em se ‘reinventar’, havia uma preocupação em ocultar os crimes que foram cometidos naquele período. A anistia entra nesse momento.”
A sociedade brasileira se envolveu com o processo de anistia, tornando-se uma bandeira daqueles que defendiam a volta do processo democrático. Porém, apesar de ter avanços, como permitir a volta dos exilados, ela não pode ser chamada de “ampla, geral e irrestrita”, já que atendia aos interesses do regime militar naquele momento: colocar uma pedra no passado. “Ao mesmo tempo em que ela perdoava as punições infligidas aos opositores do regime militar, nem mesmo isso era verdade absoluta, pois muitos tiveram que continuar presos depois da promulgação da lei, porque ela atingia os que não haviam sido condenados. E por que isso? Porque os torturadores não tinham sido condenados e ela sempre foi pensada na ótica de garantir o interesse de quem violou os direitos humanos”, sustenta Mezarobba.
O sociólogo Eduardo Gonzales endossa a argumentação de Mezarobba. “Os opositores do governo condenados por crimes violentos pagaram suas condenações e não se beneficiaram da anistia. Os torturadores se beneficiaram, inclusive sem terem sido formalmente o objeto da mesma”, observa. “Na prática, então, a anistia de 1979 inclui duas vertentes completamente distintas: uma benéfica para perdoar a quem só foi para o exílio por suas opiniões políticas, e uma autoanistia para os crimes de Estado. Este segundo aspecto é contrário às obrigações internacionais do Brasil, em particular de sua obrigação de investigar e sancionar as violações de direitos humanos”, analisa. “Em qualquer interpretação razoável, esta anistia não protegia os servidores do Estado, pois estes não podiam ter cometido ‘delitos políticos’ como, por exemplo, pertencer a um partido proibido. Tampouco podiam ter cometido delitos ‘conexos’ aos delitos políticos, se não tinham cometido os mesmos. O que ocorre é que o Brasil considerou em uma forma excêntrica que o delito de um criminoso que tortura um estudante opositor é de alguma maneira ‘conexo’ ao delito desse estudante em se opor à ditadura.” Uma interpretação jurídica sui generis.
Esse processo de anistia brasileiro tem peculiaridades que o tornam bem mais permissivo que os similares na Argentina e no Chile, países onde não se reivindicou a anistia. “As sociedades destes países não pediram perdão nem esquecimento. Em determinado momento das ditaduras, os ditadores decretam anistia, sem que ninguém tenha reivindicado, e estas são vistas claramente como decretos ditatoriais, como mais uma arbitrariedade”, sustenta Mezarobba, que também faz outra observação a respeito do porquê de tais processos terem sido distintos nos vizinhos. “Quando acabam as ditaduras na Argentina e no Chile, nos dois imediatamente tem eleição direta para presidente. No fim da ditadura daqui, nós não temos eleições diretas para presidente, há uma eleição em um colégio eleitoral, indireta, que escolhe Tancredo Neves. Quando há eleição direta, há debate, quando o candidato tem que se posicionar a respeito de temas. E um dos temas nessas eleições logo após a ditadura é a questão das violações dos direitos humanos, dos mortos e desaparecidos, dos torturados”, argumenta. “É óbvio que os candidatos na Argentina e no Chile têm que dizer e a questão é colocada imediatamente após o fim do regime militar, então o tema está em evidência.”
Por conta dessa distância temporal, hoje os representantes do Estado mostram bastante hesitação para discutir o tema. O ministro da Defesa Nelson Jobim é contra a revisão da Lei da Anistia e já manifestou a opinião que, se a anistia está politicamente consolidada, a discussão a respeito fora do ambiente do Poder Judiciário é “perda de tempo”. Já o ministro-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, tem posição oposta e chegou a pedir em um evento em fevereiro deste ano que as vítimas da repressão do regime militar, assim como seus familiares e entidades de classe, se organizem para propor ações judiciais em massa questionando a abrangência da lei. Ele também pediu que se articulem campanhas para pressionar o Estado para que informações e documentos sobre o paradeiro de desaparecidos políticos sejam revelados.

Panoptico/FlickrPanóptico/Flickr

Um legado nada agradável
“Quando a gente pega regimes políticos autoritários, [temos que ver] quais foram suas consequências em várias dimensões. É preciso ver quais foram as violações de direitos humanos, o quanto inibiu a atuação política, a formação de grupos na sociedade, a militância social e política. Outra coisa são os efeitos econômicos, no plano internacional. É lógico que no caso do Brasil, 20 anos foram um período bastante longo e bastante complexo também.” A observação de Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de são Paulo (NEV/USP), leva em conta um aspecto essencial para se analisar a ditadura, que é sua longa duração. Obviamente que as marcas estruturais desse hiato democrático são difíceis de reverter a curto prazo.
“O Geisel falava de uma busca da democracia, mas estava em pleno regime militar, [com] uma série de medidas arbitrárias. Acho que quanto maior o período, o lapso de tempo, mais fica complexa essa avaliação”, avalia Salla.
Mesmo com um aspecto formalmente democrático na esfera legislativa, com o funcionamento do Congresso Nacional durante boa parte do regime militar, tanto o cerceamento à casa legislativa como a interferência no processo eleitoral eram brutais. “De certa forma, a ditadura impediu a participação política nos partidos, sindicatos, nas associações da sociedade civil. Não que ela tenha bloqueado, mas inibiu fortemente, causando uma reação em gerações que ficaram contidas por causa da repressão. Esse é um efeito muito silencioso, mas altamente devastador que um regime autoritário provoca”, explica Salla. “Talvez o maior problema da ditadura militar são os efeitos que permanecem no funcionamento da instituições, com vários vícios que o regime autoritário não cria, mas viabiliza, como, por exemplo, a violência policial”, pontua.

Marcelo Noah/FlickrMarcelo Noah/Flickr


Luiz Eduardo Soares também destaca que o problema da violência policial e da tortura não começaram com o regime autoritário (tendo um caráter classista que persiste até hoje), mas analisa que um dos principais problemas na área da segurança pública, a função da polícia militar (PM). “Ela [a PM] passou a ter a função de atuar controlando o crime na ponta, deixou de ser uma força reserva do exército para circunstâncias mais graves, e se tornou efetivamente a grande responsável pela prevenção do crime”, assegura. Isso cria, na verdade, um imbróglio jurídico, já que há normas díspares em relação ao papel que cabe à polícia militar. “Ela é polícia de um lado, ligado ao governo do estado, e ela é força reserva ligada ao exército. As funções definidas são muitas vezes contraditórias. Nunca se levantou toda essa legislação, há muitas leis que são contraditórias entre si e continuam todas em vigência. Se todas fossem usadas ao mesmo tempo nós poderíamos ter uma baderna institucional”, define.
No que diz respeito ao sistema político, vícios também permanecem. “A Constituição de 1988 foi congressual, dela participaram senadores biônicos, e os deputados eram os mesmos de pouco tempo atrás. Essa Constituição só garante direitos individuais”, registra o advogado Reginaldo Oscar de Castro. Para Fernando Salla, um dos maiores desafios para a nossa democracia é garantir que ela seja transparente. “20 anos depois da ditadura ser colocada de lado, percebe-se a dificuldade que a gente tem para fazer com que instituições importantes, como o Poder Judiciário e a polícia sejam transparentes, divulguem suas informações. Quando você fala de controle externo ao Poder Judiciário é como se você estivesse xingando alguém”, aponta. “Mas não se trata de um controle técnico, ninguém vai ensinar ao juiz o que ele tem que fazer, mas tem que haver o controle social”, esclarece. “Como pode funcionar bem uma república se você tem uma polícia que não é controlada por ninguém, em que os governos não querem dialogar e nas prisões acontece o que se bem entende?”. Responder a isso é papel da sociedade democrática e também um passo importante para superar o legado nefasto do regime autoritário. Nada brando. F

Colaborou Glauco Faria