Cavaleiro da condição humana

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“Tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.”

Estas linhas marcam o surgimento da loucura que dominou um senhor rural chamado Alonso Quijano, que de tão apaixonado por livros de cavalaria imaginou-se um cavaleiro andante. Tomado de ilusões, saiu pelos povoados espanhóis empunhando velhas armas da própria família. Generoso, imaginou estar defendendo os necessitados e oprimidos. Como um estranho e tardio Nazareno, convenceu o camponês Sancho Pança a deixar mulher e filhos para segui-lo. Carente de amor, criou do nada a sua querida Dulcinéia del Toboso. E precisando de um novo nome para o novo homem que brotava de dentro de si, decidiu que se chamaria Quixote. Ao fim, tendo um amor por quem lutar, armado com velharias, montando seu Rocinante e com um fiel escudeiro ao lado, deixou a cidade de La Mancha para ganhar as glórias do mundo, reafirmando a máxima shakespeariana de que toda loucura tem a sua própria órbita; e, nessa órbita, se navega ao infinito.

Seu próprio criador – o militar, aventureiro e escritor Miguel de Cervantes Saavedra – informa que Quijano tinha por volta de 50 anos quando mergulhou em seus sonhos de grandeza, sendo “rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caça”. Fidalgo dado à reclusão, dividia sua casa apenas com uma ama de 40 anos e uma sobrinha de 20. Homem de hábitos alimentares, de vestuário e sociais modestos, compensava sua simplicidade com seu gosto literário, que acreditava ser refinado. Dos incontáveis romances de cavalaria que lia, tinha especial apreço pelos do famoso autor Feliciano de Silva. Sublinhava trechos que considerava o máximo da arte escrita, como este: “A razão da sem-razão que à minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queixo de sua formosura.” Eram trechos que lia e relia à exaustão, a exemplo deste outro: “... os altos céus que de vossa divindade divinamente com as estrelas vos fortificam, e vos fazem merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza.”

Vítima inocente de tão esdrúxulas elaborações estilísticas, e no esforço de, segundo Cervantes, “desentranhar-lhes o sentido, que nem o próprio Aristóteles o lograria, ainda que só para isso ressuscitara”, Quijano espremeu seu cérebro a ponto de encontrar no colapso mental o seu túnel do tempo. Retornou à era das cavalarias para passar de fidalgo medíocre a criador e senhor de seu próprio mundo, tornando-se o engenhoso, tocante, inacreditável e valente Dom Quixote de La Mancha.

Desse modo, iniciaram-se as suas mais de 300 aventuras, que seu criador registrou nos 100 capítulos de sua obra-prima. São histórias ao mesmo tempo hilárias e tristes, exatamente por expor toda a fragilidade da condição humana, revelando todo o despropósito que há entre as grandezas de nossas aspirações e as limitações terríveis de nossos intelectos, corpos e espíritos.

A loucura deu a Quixote a força típica daqueles que se recusam a aceitar a não-maleabilidade da realidade. Esta impermeabilidade aos fatos é a sua mais marcante característica, como bem ilustra o episódio da famosa batalha contra os moinhos de vento, os quais tomou por “trinta ou mais desaforados gigantes”. Ao investir contra eles e ser “miseravelmente rodado campo afora” pelo impacto de uma das velas, foi acudido por Sancho, que o repreendeu por agir como se também tivesse moinhos de vento na cabeça. A surpreendente resposta de Quixote ao seu escudeiro é a essência da arte do auto-engano que todos nós, em maior ou menor grau, praticamos ao longo da vida: “Cala a boca, amigo Sancho. As coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão de valer as suas más artes contra a bondade de minha espada.”

Totalmente convencido de seu grande destino, Dom Quixote não toma conhecimento dos risos e escárnios suscitados pela triste figura que é seu corpo cinqüentenário coberto por uma velha armadura a atravessar campos, casas e ruas que se desfiguram perante seus olhos de alucinado. Ele também não teme a dor, pois sabe que a carne deve servir incondicionalmente ao espírito, que, com determinação, conduzirá a medrosa carcaça à realização dos grandes ideais. Assim, as incontáveis surras e tombos que leva não são nada, a exemplo de quando se depara com dois rebanhos de ovelhas, atribuindo a esses animais irritantes de tão pacíficos, armas, coroas e escudos. Ensandecido, avança contra os rebanhos, para terminar espancado pelos pastores que perdem a paciência diante de louco tão exasperante.

Entre dores físicas e desmoralizações que rapidamente supera, Quixote vai se impondo como o representante maior do lado espiritual e nobre da natureza humana; enquanto que seu escudeiro, Sancho Pança, camponês ignorante, de lealdade canina, surge como símbolo maior do lado materialista do ser humano. Esta é a visão esquemática com a qual se costuma introduzir escolares ao mundo quixotesco, apresentando essa aventura picaresca como a perfeita representação da dualidade do ser: enquanto um volta-se plenamente para o céu a ponto de enlouquecer; outro continua preso a terra e à sensatez limitada que caracteriza os medíocres.

Mas outras interpretações são possíveis. O historiador Evaldo Cabral de Mello, por exemplo, diz que Dom Quixote também pode ser visto como uma parábola crítica ao império castelhano, que alimentava sonhos de conquista para além de suas forças. Também é desse historiador a interessante observação de que o quixotismo diferencia-se do utopismo radicalmente, uma vez que Quixote não buscou um mundo melhor, mas sim punir os injustos e os opressores que surgiam à sua frente; e tudo isso com o objetivo bem mundano de impressionar o seu grande e ilusório amor, Dulcinéia del Toboso.

A luta de Quixote não é a luta do mundo, mas sim sua batalha pessoal – e é justamente isso que o faz tão caro para a cultura ocidental. E se trouxermos esse esforço quixotesco de busca de individualidade para nosso tempo, pode-se tomar Quixote como metáfora para a necessidade de se ir contra a “característica do momento, que é o fato de a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte”, conforme bem disse Ortega y Gasset em seu imprescindível A Rebelião das Massas.

E o que Anthony Burguess escreveu sobre James Joyce também serve para definir uma das principais características de Quixote: “Sua imensa capacidade de descobrir manifestações da beleza e da verdade no sórdido e no banal.” Quando o engenhoso fidalgo transforma vendas sujas em luxuosos castelos, pilantras em cavalheiros e rematadas vagabundas em mulheres dignas do mais profundo respeito, realiza um trabalho ilusório de melhoramento do mundo. Uma obra falsa, mas nem por isso menos desgastante que as obras práticas e reais que terminam em revoluções inúteis e carnificinas.

Após muitas e dolorosas batalhas inúteis, Quixote termina por deparar com um cavaleiro (na verdade seu vizinho) que o desafia para um combate, com a condição de que aceite voltar para sua aldeia se for vencido. Quixote empenha sua palavra, luta e perde. Cavaleiro honrado, volta ao lar para cair doente de melancolia e de dor, mortalmente exausto de tantas aventuras e desvarios. Rodeado por sua família, pelo fiel Sancho Pança e por um amigo, Quixote recobra a razão, afirmando que já tem o “juízo livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância” causadas pela “amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias.” Homem crédulo, também lamenta não ter se emendado a tempo de ler “outros livros que fossem luz da alma”.

Assim como se aventurou pelo perigoso mundo da loucura totalmente alheio à realidade, morreu sem ter noção da importância de seu quixotismo para o engrandecimento do espírito humano. Por isso, antes de expirar, comemorou: “Daí-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou mais Dom Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano”. Finalmente liberto da maravilhosa órbita da sua loucura, viu-se novamente protegido pelo espesso manto da mediocridade – e, desse modo, foi de encontro ao seu deus cristão.