Decolonialismo cultural, religioso e ideológico

As ancestralidades não eurocêntricas, outrora subalternizadas no mundo, estão dando a volta por cima através do protagonismo de novas narrativas com a ajuda do cinema

Cena do filme brasileiro “Todos os mortos”- Foto: Hélène Louvart/Divulgação
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Por Filippo Pitanga*

Coincidência, destino ou convergência cósmica, justo na edição do 70° aniversário da Berlinale e de 30 anos da queda do Muro de Berlim, alguns fantasmas do passado apareceram para tentar soprar as velinhas da revolução. Uma nova faceta nada lisonjeira foi revelada do ex-diretor do Festival de Cinema de Berlim, Alfred Bauer, cujo nome, inclusive, batiza um dos prêmios da competição. Seu envolvimento pregresso com o nazismo veio à tona apenas este ano de 2020, culminando na expiação pública de mea culpa por parte da produção e curadoria, que cancelaram o prêmio. Afinal, tais representantes simbolizam a escolha de filmes vindos do mundo inteiro no Festival de maior audiência popular da Europa e devem possuir uma ética condizente.

Na realidade, parece que os responsáveis talvez já soubessem a importância disso, especialmente porque a seleção deste ano reflete uma forte declaração política antiautoritarista e decolonialista global. Vide a declaração pública do atual diretor, Carlo Chatrian, em favor do cinema brasileiro, que anda enfrentando censuras e desmobilização de um governo de extrema direita conservadora.

Por isso, essa leitura decolonialista se engrandece ainda mais através do subtexto do recorde brasileiro de 19 filmes espalhados nas Mostras Competitivas. A começar pelo nosso exemplar que conseguiu ingressar na corrida pelo Urso de Ouro: “Todos os Mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que se passa logo após a abolição da escravatura, em 1899. Demonstrando que o Brasil não mudou suas políticas públicas, de fato, para incorporar e conviver com a pluralidade, e sim manteve a mentalidade do racismo estrutural.

Na verdade, há duas histórias se digladiando ali dentro, como se numa crônica sobre os conflitos inerentes à dicotomia clássica do livro "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre – às vezes dando mais voz à Casa Grande do que o necessário, mas reconhecendo a importância de ver o lugar da branquitude a enlouquecer sem o sustentáculo exploratório. Poderia até ser considerado uma falha, no entanto, ainda assim, uma falha necessária, como a própria história escamoteada de nosso país.

Independentemente disso, a maior contribuição deste longa-metragem está numa especialidade atual do audiovisual brasileiro, que é dar imagens e corpo à teoria decolonialista. Essa parte é focada com primor na personagem da revelação Mawusi Tulani, cuja família é quem vai trazer ao filme de época, a princípio barroco e naturalista, o elemento que faltava: a pegada de gênero do cinema fantástico e de horror psicológico, que costuma ser a assinatura de um dos diretores, Marco Dutra, como em filmes como “Quando Eu Era Vivo” e “As Boas Maneiras” (este codirigido por Juliana Rojas, que é a montadora de “Todos os Mortos”).

E é através de Mawusi que surge a ancestralidade de cultura e religião de matrizes africanas, o que também desdobrará a brilhante trilha sonora numa dialética tensionada ainda entre as músicas eurocêntricas do piano da personagem “sinhá”, encarnada com vigor por Carolina Bianchi, e o canto popular da cozinheira interpretada por Andréa Marquee (será que o elenco feminino tem chances de ganhar melhor atriz de forma coletiva? Não é tão raro em Festivais...).

Por fim, vale ressaltar que a influência decolonialista brasileira como resistência contra o totalitarismo ascendente no mundo também transbordou para além do recorde dos 19 filmes brasileiros, num pequeno balanço da competição.

Inúmeros filmes estrangeiros da Mostra principal concorrendo pelo Urso de Ouro também possuem menções ou membros brasileiros: “Minamata”, novo longa-metragem de Johnny Depp, exibido hors-concours, por exemplo, faz tributo à nossa tragédia de Brumadinho. O argentino “El Prófugo” possui pós-produção em São Paulo (Quanta Post), trilha com brasileiro (Ney Matogrosso) e fotógrafa uruguaia que trabalha atualmente conosco (Barbara Alvarez, de filmes de Anna Muylaert como “Que Horas Ela Volta?”).

E, por falar em estrangeiro trabalhando no Brasil, Welket Bungué, da Guiné Bissau, brilhou no nosso “Corpo Elétrico”, há três anos, e agora é favorito para ganhar melhor ator pela hipnotizante readaptação do cult de Fassbinder: “Berlin Alexanderplatz” – mais um filme altamente decolonialista, denunciando o racismo estrutural europeu contra imigrantes africanos, como num espelho distorcido.

Outros concorrentes ao Urso de Ouro também tocam no tema do ano, mesmo sem referência ao nosso país. Como é o caso de outro forte candidato do cenário indie hollywoodiano, “First Cow”, da prodigiosa diretora/roteirista Kelly Reichardt, que trabalha bastante no subtexto, como na história de dois caubóis que começam negócio de venda de biscoitos... Como exemplifica a brilhante cena: A certa altura da projeção, um chefe britânico serve chá chinês para a visita de um chefe indígena, a quem ele irá apresentar a vaca recém-importada da Europa (a vaca referida no título “First Cow”), cujo leite está sendo roubado pelo melhor amigo do caubói chinês para fazer biscoitos!

Eita reviravolta! Isso são séculos de exploração econômica, ideológica e cultural, revisitada por governos contemporâneos, e ora sendo decolonizada pela arte. As ancestralidades não eurocêntricas, outrora subalternizadas no mundo, estão dando a volta por cima através do protagonismo de novas narrativas com a ajuda do cinema! E o Brasil é uma das pontas de vanguarda, guiando o caminho e deixando sua marca na Berlinale... ou deveria dizer, Brasinale! Este ano, mais do que nunca, Berlim é brasileira. E isso já é um caso a ser estudado e um prêmio por si só.

Para ver a coletiva de imprensa de “Todos os Mortos” na íntegra:

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=475277856690307&id=278624863280

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum