Murilo Cleto: Democracia em xeque

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De acordo com o último Ibope, somente 40% dos brasileiros percebem a democracia como regime preferível a qualquer outro. E enquanto PT, PMDB e PSDB duelam para saber quem tem mais dinheiro na cueca, o fundamentalismo religioso e o moralismo apolítico avançam para tomar conta do que uma democracia sequestrada por interesses privados não parece capaz Por Murilo Cleto Há quem insista que a maior fortalecida, ao final deste processo de impeachment, é a democracia. Não é verdade. E quem isso diz está muito longe de ser a imprensa governista. Divulgada ontem, a última pesquisa do Ibope deveria chamar muito mais a atenção de oposição e situação, mas deve passar ao largo do debate público em torno do mandato de Dilma Rousseff. De acordo com o instituto, a democracia é a forma de governo preferível para apenas 40% dos brasileiros. Para 34%, tanto faz. Para 15%, governos autoritários são preferíveis aos democráticos em algumas circunstâncias. E não é muito difícil de supor quais circunstâncias são essas. Na antiguidade, os romanos eventualmente abriam mão da república em períodos de crise para que um ditador tomasse as suas rédeas em nome da estabilidade. À época, o termo “ditador” não era carregado de juízo negativo de valor. Pelo contrário: sua figura era considerada necessária para a solução de imbróglios irresolvíveis em condições normais. Retórica semelhante adotaram lideranças políticas em momentos diferentes da história. O próprio golpe de 1964, no Brasil, não se apresentou como golpe – e muito menos como definitivo. No auge da Guerra Fria, a tomada do poder pelos militares foi vendida como a transição necessária de um país assombrado pelo “comunismo” de João Goulart. Nem todos supunham que ela duraria 21 anos. E estabilidade política é o que menos se viu no Brasil pós-Estado Novo. De lá para cá, a média é de 3 anos de mandato por presidente – incluindo os militares. Nos últimos 90 anos, somente 5 presidentes eleitos completaram os seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma.  No restante da América Latina o quadro não é muito diferente: desde 1990, 13 presidentes já foram cassados sob diversas acusações – uma delas de “insanidade mental”, caso de Abdalá Buracan, no Equador, em 1997. Cultura democrática e presidencialismo de coalizão De 2005 para cá, são muitos os eventos que contribuíram para gestar outra ruptura democrática no país. O mensalão, talvez o marco inicial desta caminhada rumo ao precipício, já escancarou as fragilidades de um sistema político absolutamente dependente de arranjos espúrios com o poder legislativo, num ciclo vicioso que alimentou corruptos e corruptores enquanto o país crescia, diminuindo desigualdades, mas sem ruptura alguma que pudesse, enfim, dar outra dimensão à cultura pública no país. 11 anos depois, o PT cometeu – ou tentou cometer – os mesmos erros de outrora. Encerrado o ciclo de apropriações abomináveis da máquina pública para fins partidários ou pessoais, graças à Operação Lava Jato, o partido tentou barrar o impeachment oferecendo cargos aos mesmos atores que, no primeiro mandato de Lula, lhe deram sustentabilidade política e ajudaram a levar a república à convulsão após as denúncias de Roberto Jefferson. Mas não deu tempo nem de respirarem aliviados aqueles que temiam outra escalada pela corrupção diante da mais nova aliança entre PT, PP e PR: Sandro Mabel, ex-deputado pelo PMDB de Goiás, articulou 142 cargos por deputado do PR que dissesse “sim” ao impeachment, segundo Guilherme Amado n’O Globo. E, ainda, parece ter funcionado a estratégia petista de exposição exaustiva dos escândalos de corrupção de outros partidos, inclusive dos que votaram efusivamente pelo impeachment em nome da moralidade na política. E é impossível não lembrar da deputada Raquel Muniz, que apontou o marido, prefeito de Montes Claros-MG, como exemplo de um Brasil que pode dar certo. Preso no dia seguinte pela Polícia Federal sob a acusação de sabotar hospitais públicos, Ruy Muniz é símbolo de uma retórica vazia que já esgarçou faz tempo. Durante anos, e especialmente depois da Lava Jato, o PT insistiu na ideia de que a corrupção é um problema de ordem estrutural no país. A estratégia foi necessária para a sobrevivência do partido e parte, evidentemente, de uma realidade concreta. Mas, em longo prazo, contribuiu para minar a confiança dos brasileiros nas suas instituições políticas. Nunca é demais destacar: hoje, tão ou mais impopulares do que a presidenta Dilma, são os próprios deputados que a cassam. E o espetáculo tragicômico na sessão do impeachment, transmitido ao vivo para todo o país em TV aberta, parece ter descortinado de vez a real situação de desgraça em que se encontra aquela que vez ou outra é lembrada como a casa do povo. O Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), coordenado por Fabio Malini, cravou: antes tomada pela polarização, a rede se viu em uníssono no dia 17, esculachando congressistas que, em sua imensa maioria, mentiam descaradamente e ofereciam votos à família. Dono do voto 342, que selou o destino do impeachment celebrando a “honra” que o “destino” lhe reservou, Bruno Araújo (PSDB-PE) aparece na lista da Odebrecht como um dos recebedores de propina. Mais do que isso, não deu nem tempo de o Senado admitir o impedimento de Dilma e deputados já falavam abertamente em conceder anistia a Eduardo Cunha. Réu no STF e alvo de 6 inquéritos, Cunha não fez a menor questão de esconder que colocou o impeachment para votação em retaliação ao PT, que havia liberado deputados a votarem contra ele no Conselho de Ética, já o mais longo de todos os tempos, graças às manobras do presidente da casa com aliados. Noutra ponta, o PSDB tem prestado desfavores cada vez maiores à estabilidade democrática: duvidou do resultado das urnas, colocando em dúvida um dos sistemas eleitorais mais transparentes do mundo e alimentando o que há de pior nas redes sociais, como o submundo dos boatos de Whatsapp e Facebook. Semanas depois, passou a dedicar suas forças ao impeachment e desistiu assim que viu na cassação de Dilma pela via eleitoral uma oportunidade para eleger seu candidato, até então líder nas intenções de voto. Foi despencar nas pesquisas que a cúpula tucana resolveu abrir mão do Tribunal Superior Eleitoral para retornar de vez à pauta do impeachment, atualmente negociando cargos com Michel Temer, que, apesar de articular abertamente contra Dilma, não quer ser chamado de golpista. E, como já sinalizaram as últimas pesquisas, para a periferia que não sai às ruas defender Dilma ou exigir a sua deposição, o impeachment virou briga da elite política e nada além disso. As minorias sociais, tão reivindicadas por governistas para a sobrevivência do mandato da presidenta, tiveram poucos avanços que justifiquem, de fato, engajamento em favor de um governo mergulhado no fisiologismo. Mas a promessa decisiva para que os empresários comprassem a ideia de um governo Temer e financiassem a sua viabilidade também é qualquer coisa menos favorável à classe trabalhadora ou mesmo ao papel do Estado na economia: flexibilizações e o incentivo a parcerias público-privadas, além do conteúdo da “Ponte Para o Futuro”, têm soado como música para os representantes do PIB. Também não é verdade que, apesar da promessa, as instituições têm funcionado perfeitamente e em harmonia no Brasil. Quem repete este mantra ignora, por inocência ou má fé, o que foi especialmente o ano de 2015 na Câmara dos Deputados. E a inclusão das pautas-bomba em pleno ano de recessão econômica, por parte de um Congresso que processa a presidenta por irresponsabilidade fiscal (!), é só mais uma evidência disso. Logo depois de a casa aprovar o impeachment, Eduardo Cunha já avisou que não coloca mais projeto algum do governo em votação enquanto a matéria não for apreciada pelo Senado. Não tem outro nome: é sabotagem. Por outro lado, o governo erra a mão ao evocar com tanta frequência a memória autoritária do último regime militar no país para salvar a própria pele. Primeiro porque Dilma não é Jango. E a reforma agrária, gota d’água das reformas de base nos anos 1960, não passa de uma realidade atualmente muito distante. São os números: no governo Dilma, a reforma agrária tem o pior ritmo em 20 anos. Mas tem mais: ao pretender tutelar o pensamento dos que foram torturados pelo regime, parte da mídia governista reforça a desconfiança de um país mal resolvido com a própria memória e alimenta a ideia de ela tem sido usada para fins político-partidários. É o caso das ondas de ataque a Miriam Leitão, jornalista da Rede Globo que, a despeito das tantas imprecisões na leitura dos fatos, tem o direito de pensar como quiser – e inclusive o de se opor ao governo. “Contra tudo isso que está aí” E é no interior deste vácuo que figuras como Jair Bolsonaro ganham espaço. Com a percepção cada vez maior de que todos os políticos são iguais e dignos de repúdio, cresce o fenômeno, tão alardeado pelo historiador Clóvis Gruner, da despolitização da política. Como destacou Pablo Ortellado em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a instrumentalização da política pela moral tem um papel fundamental neste processo que não tem outro fim senão a catástrofe da cultura pública. Não é por acaso que, entre eleitores do deputado carioca pré-candidato à presidência em 2018 pelo PSC, o discurso corrente seja que Bolsonaro diz “a verdade” “doa a quem doer”, “sem hipocrisia”. Um Estado forte e autoritário, como defende Bolsonaro em resposta às imperfeições e vaidades dos homens, está longe de ser uma novidade na história. Era o que previa o contrato social proposto por Hobbes já no século XVII em O Leviatã. Fernando Henrique Cardoso pediu, mas até agora as principais lideranças do PSDB não repudiaram publicamente as palavras de Bolsonaro na sessão do impeachment, quando dedicou o voto ao “terror de Dilma Rousseff”, o torturador Ustra. Romero Jucá, presidente do PMDB, disse, com discrição ontem no Roda Viva, que a fala “foi uma irracionalidade”, mas que cabe ao Congresso eventualmente julgar. Enquanto Dilma for a inimiga, vale tudo. Com 8% das intenções de voto, segundo o último Datafolha, Bolsonaro já deixou faz tempo de ser apenas um bufão em busca de atenção no meio da política institucional. É a negação da política que se tornou, ela própria, um fenômeno político. E não é excluindo os que o aderem da lista de amigos no Facebook que ele vai desaparecer. Hoje, enquanto PT, PMDB e PSDB duelam para saber quem tem mais dinheiro na cueca, o fundamentalismo religioso e o moralismo apolítico avançam em velocidade progressiva para tomar conta do que uma democracia sequestrada por interesses privados não parece capaz de resolver. De acordo com o Ibope, 62% dos brasileiros querem novas eleições. E somente 8% acreditam que a solução para a crise política seria o impeachment de Dilma com a ascensão de Temer à presidência. Há um recado aí: não dá mais. Então ou a democracia se reinventa, ou convida de vez a barbárie para ocupar o seu lugar. Foto de capa: Ananda Borges/Agência Câmara