Depois do bate-boca

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Foto: Antonio Cruz/ABrFoto: Antonio Cruz/ABr

Nos dias seguintes à discussão entre os dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, ambos fizeram exatamente o que Barbosa afirmou que os diferenciava, o “sair às ruas”. Mendes deu entrevistas para negar que havia uma crise institucional, visitou a Câmara dos Deputados e recebeu o apoio de outros ministros do tribunal. Barbosa foi na sexta-feira a um bar no centro do Rio, acompanhado de amigos, e foi recebido nas ruas como celebridade, com direito a fotos e pedidos de autógrafo. Por outro lado, fez questão de não falar sobre o assunto a jornalistas.
Mas não era preciso estar ao lado dele nas ruas para saber de que lado as pessoas ficaram após a acirrada discussão entre os ministros em plena sessão do STF, com direito a transmissão ao vivo na TV Justiça. Dos sítios mais populares aos especializados na cobertura de assuntos jurídicos, a imensa maioria dos comentários foi a favor de Barbosa. Os leitores-comentaristas diziam ter se sentido de “alma lavada” ao ouvir o primeiro ministro negro da história da Suprema Corte Brasileira acusar o presidente do órgão de estar “destruindo” a imagem da Justiça.

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Um advogado criminalista, que preferiu não se identificar por ter diversos processos tramitando naquela corte, sintetizou a diferença entre os dois: “Barbosa é o Lula do Supremo”. Em meio a expressivas diferenças em suas trajetórias, os dois têm em comum a origem humilde. Se Lula veio para São Paulo em um pau-de-arara e se tornou o primeiro operário a chegar à presidência da República, Barbosa é filho de pedreiro e começou sua vida profissional em funções simples, como faxineiro e contínuo. Mas se Lula é conhecido desde a época de líder sindical, nos anos 1970, por seu estilo conciliador, Barbosa mostra no STF que não tem medo de se envolver em polêmicas.
Em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, ele afirmou que não costuma silenciar quando vê algo errado. Além de discutir com colegas como Marco Aurélio, Eros Grau e mais de uma vez com Gilmar Mendes, Barbosa chegou a acusar o ex-presidente da Corte Maurício Corrêa de tráfico de influência. Neste assunto, ele acabou recuando da acusação.
A maneira com que o ministro recebe os advogados também é uma queixa constante na categoria. Para o criminalista entrevistado, em alguns momentos Barbosa parece atuar mais como procurador do que como juiz. “Não dá para julgar sempre em razão do clamor social, pois o povo muitas vezes quer vingança e não justiça. Mas considero que as diferenças de trajetória e de ideias são salutares para um órgão colegiado como o Supremo. Além do mais, ele é tecnicamente muito bom”, pondera. As decisões de Barbosa são conhecidas também pela forma clara e didática, que ajuda as pessoas mesmo sem grande conhecimento jurídico a entender o seu teor.
Para a procuradora regional da República na 3ª Região (sede em São Paulo) Janice Ascari, as palavras de Barbosa durante a discussão com o presidente do Supremo deveriam causar mais reflexão no meio jurídico. “Ele chama a atenção para que os juízes e promotores se vejam como pessoas comuns também. Um juiz pode ser muitas vezes objeto de sua decisão. Por exemplo, quando trata de uma taxa de cobrança de celular: ele será prejudicado ou beneficiado como usuário do aparelho”, diz a procuradora, que fez parte do Conselho Nacional do Ministério Público.
Ela usa uma declaração do próprio Mendes, feita em abril, para mostrar uma suposta preferência do STF para tratar das questões dos ricos. O presidente da corte rebateu a afirmação de que o Supremo se interessa apenas pelos mais favorecidos dizendo que o órgão havia dado, em 2008, 18 habeas corpus pelo “princípio da insignificância”, que em sua maioria beneficiavam os mais pobres, de um total de 350 pedidos. “Quando ele destaca 18 para pobres no meio de 350 concedidos, fica subentendido que os outros 332 foram para ricos, que são uma minoria no nosso país”, afirma. O ministro havia usado o número justamente para dizer que as acusações de elitismo tinham “caráter ideológico” e eram “injúrias” ditas “sem grande responsabilidade”.
Ascari também acredita que a exibição ao vivo da discussão dos ministros é importante para a Justiça. “É bom que as pessoas saibam que as decisões estão sendo tomadas por seres humanos. Os juízes não são deuses, têm qualidades e defeitos como qualquer pessoa”, opina.
O promotor Roberto Livianu, presidente do Movimento do Ministério Público Democrático, acredita que, por mais que as pessoas possam ter concordado com o que foi dito, a discussão foi negativa. Ele também critica a habitual atitude de Mendes em manifestar opiniões sobre temas que pode julgar depois. “Promotores e juízes devem dar entrevistas para prestar satisfações e dar explicações sobre atitudes já tomadas, pois a população, que paga seus salários, tem o direito de saber. Mas um juiz não deve dar opiniões que constituem pré-julgamentos. Isto é um princípio básico do Direito”, opina. No mesmo sentido, o jurista Fábio Konder Comparato não quis se manifestar sobre a discussão, para não diminuir ainda mais o “prestígio do Supremo”, mas afirmou que entrou com uma proposta no Conselho Federal da OAB para que os juízes sejam proibidos de dar entrevistas. Para ele, esta seria a única forma de evitar “abusos”.
Outro que também lamenta o nível da discussão entre os ministros é o jurista Dalmo Dallari. Ele avalia que os discursos dos dois ministros durante a discussão foi muito vago. “A gente imagina sempre que todos juízes levam em conta os efeitos sociais na hora de decidir. É uma preocupação louvável. É claro que a base de uma sentença está no ordenamento jurídico, mas os efeitos sociais precisam ser levados em conta na hora de interpretar e aplicar a lei”, acredita.

Transparência Quando se fala em transparência nas decisões judiciais, existe um intenso debate a respeito de como a sociedade pode e deve participar. Para o coordenador geral de administração da Defensoria Pública do Estado de São Paulo Renato de Vitto, os operadores do Direito não devem se guiar pela opinião pública, mas precisam sim estar atentos à realidade social. “No âmbito criminal, muitas vezes as decisões são ditadas a partir do clamor social pela punição, o que impede a realização plena da Justiça. Por outro lado, no âmbito cível, especificamente no que diz respeito às ações fundiárias, muitas vezes o Poder Judiciário não considera que a concessão de uma liminar ordenando a desocupação imediata de determinada área por centenas de famílias trará sérios problemas de ordem social”, explica.
O defensor acredita que, apesar do grande número de ações na Justiça, o acesso a ela ainda é um privilégio. “A maior parte das ações e medidas judiciais é manejada, por vezes de forma abusiva, pelos litigantes habituais, dentre os quais se destacam o próprio Estado e as grandes corporações”, diz. Segundo de Vitto, a solução passa por aumentar o número de profissionais e melhorar as condições de trabalho nas defensorias públicas. “Considerando o perfil socioeconômico dos atendimentos da Defensoria, existem no Estado 58 mil potenciais usuários por defensor (contamos com um quadro de apenas 400 defensores, atuando em 7% das comarcas do Estado). No entanto, nosso Estado dispõe de pelos menos 1,8 mil promotores, uma evidente distorção entre quem acusa e quem é acusado. Então é evidente que a população abastada goza de melhores condições para acessar o Poder Judiciário”, destaca.
Já o constitucionalista Oscar Vilhena considera que o Supremo acaba ficando muito exposto não só pelas atitudes de seus ministros mas pelas próprias características do sistema brasileiro. “O STF é três em um: funciona ao mesmo tempo como corte de apelações, foro privilegiado e tribunal constitucional”, diz. Para ele, os ministros do Supremo devem ser primordialmente os guardiães da Constituição. “Quem deve analisar as consequências de suas decisões é o representante eleito, que poderá ser punido nas urnas por tomar decisões erradas. A boa decisão é aquela que é mais fiel possível aos princípios constitucionais”, diz.
Ele lembra que o Supremo não declarou a inconstitucionalidade do confisco das cadernetas de poupança no Plano Collor, com o argumento de que algo deveria ser feito para combater a hiperinflação. “O plano foi um desastre e a corte foi mal, porque não é sua obrigação ajudar a governar”, opina Vilhena.
Além do debate sobre as funções do STF e da própria Justiça brasileira, após o bate-boca entre os dois ministros, veio novamente à baila a discussão sobre a aprovação do projeto de autoria do deputado Flávio Dino (PCdoB-MA) que transforma o Supremo em corte constitucional e fixa um mandato de 11 anos para seus ministros, que hoje podem permanecer no cargo até se aposentarem compulsoriamente, aos 70 anos. Ao que parece, as consequências do embate entre Barbosa e Mendes ainda vão render. F